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terça-feira, 3 de abril de 2018

Bob Dylan e Greil Marcus




Bob Dylan e Greil Marcus

Menos disponível nas prateleiras brasileiras do que sua prosa merece, Greil Marcus se inscreve entre os cronistas do universo musical predileto deste que vos escreve.
Por César Alves

Nascido em 1945, Greil Marcus presenciou – às vezes in loco – momentos que redefiniram a musica contemporânea, trabalhando para veículos como Rolling Stone, Creem e Village Voice. Alguns de seus livros, como “Mystery train” (1975) são considerados revolucionários na forma de se fazer crítica de rock. Marcus não acredita no hype e, quando segue uma pauta, vai além do objeto estudado considerando fenômenos sociais e seu contexto histórico.
Daí que seus textos podem citar heréticos medievais, o Dada (é sempre bom lembrar que não existe dadaísmo e, se você não concorda, você é Dada!) e os Situacionistas para chegar ao punk. Infelizmente no Brasil seus livros não são publicados com frequência. Que eu saiba, saiu por aqui apenas a coletânea “A última transmissão”, parte da ótima coleção iêiêiê da Conrad Books (que saudades dessa editora!), cuja reportagem sobre o novo punk (Pós-punk, se preferir), representado por bandas como o Gang of Four e o, ainda iniciante, selo Rough Trade é exemplo do que escrevi acima.
Agora chega às nossas livrarias “Like a Rolling Stone: Bob Dylan na Encruzilhada”, lançamento da Companhia das Letras. Aqui, Marcus debruça-se sobre a histórica gravação de mister Robert Zimmermann de “Like a Rolling Stone”, canção que abre o álbum histórico “Highway 61 Revisited”. O jornalista teve acesso às sessões de gravações do clássico, ocorridas em 15 de junho de 1965, período conturbado na carreira do artista. Dylan vinha de sua estréia com instrumentos elétricos, ocorrida no álbum anterior “Bringing it all back home”, e suas apresentações normalmente culminavam com gritos de “Judas!” vindo da platéia mais purista, que o havia alçado a posto de seu porta-voz – só não perguntaram antes se ele aceitava o cargo.
A verdade é que “Like a Rolling Stone” representa uma virada no conceito criativo do rock. A partir dali, o rock, que também havia influenciado Dylan para sua guinada elétrica, começa a abandonar os temas leves e pode-se dizer que só a partir dai ganha status de arte. Marcus, no entanto, não se fecha numa biografia da música, fazendo uma análise da importância de Dylan através dos artistas que influenciou e o fato de sua obra ainda ser relevante nos dias de hoje.
Curiosidade: Os teclados, que são uma das marcas da canção são tocados pelo lendário guitarrista Al Kooper. A verdade é que Kooper nunca havia tocado um instrumento de teclas antes – pelo menos é o que reza a lenda – e o que está ali é o guitarrista “tentando” fazê-lo.




domingo, 27 de agosto de 2017

O Itinerário de Benjamin de Tudela - Livro



A Jornada de Benjamin

Depoimento histórico de valor inquestionável e obra inaugural do gênero literário de relatos de viagens, O Itinerário de Benjamin de Tudela, aporta nas livrarias brasileiras.
Por César Alves

Talvez um dos mais importantes registros sobre as rotas de comércio e o modo de vida dos povos da Europa, África e Ásia, durante a Idade Média, O Itinerário de Bejamin de Tudela chega às livrarias brasileiras numa bela edição da editora Perspectiva sob a dedicação e os cuidados do professor Jacó Guinsburg.
Baseada nas anotações feitas pelo rabino Benjamin (1130-1173) que, em meados do século XII, teria empreendido uma jornada de aproximadamente uma década através dos territórios citados – no período que coincide com a conquista da Península ibérica, entre a segunda e a terceira Cruzadas, e antes da ascensão de Saladino –, a obra surpreende por anteceder em aproximadamente cem anos As Viagens de Marco Polo, famoso relato do mercador, embaixador e explorador veneziano.
Partindo de Tudela, ao norte da Espanha, rumo à Terra Santa, o que deveria ser uma rápida viagem de alguns meses, acabou se transformando numa aventura muito além da planejada peregrinação à Jerusalém, com longas escalas durante as quais o rabino Benjamin procurou visitar comunidades judaicas e não judaicas, informando-se sobre seu estilo de vida, os governos vigentes, suas tradições, cultura, economia e, acima de tudo, suas populações.
A narrativa revela o olhar atendo do viajante maravilhado diante de tudo o que vê, o que a torna uma espécie de Guia de viagens, repleto de endereços úteis, para os peregrinos judeus do período, contendo informações sobre as cidades que ofereciam hospitalidade aos viajantes, como Montpellier, Gênova e Constantinopla, por exemplo.
Aqui também são descritas as condições econômicas dos mercadores de Barcelona, Montpellier e Alexandria, e também quais eram as principais atividades dos judeus, descrevendo o dia a dia dos tintureiros em Brindisi, tecedores de seda em Tebes, curtidores de couro em Constantinopla e vidraceiros em Alepo e Tigre. O relatório também inclui informações demográficas sobre as comunidades judaicas de algumas cidades da época: 20 judeus em Pisa, 40 em Lucca, 200 em Roma, 300 em Cápua, 500 em Nápoles, 600 em Salerno, 20 em Amalfi, entre outras.
Em seu diário de viagem, o rabino tomou o cuidado de registrar os nomes das principais lideranças comunitárias das regiões por onde passou; das cidades que possuíam boas escolas para estudos judaicos, como Montpellier, ou como Lunet, onde a comunidade subsidiava a educação dos jovens. Mencionou, também, a existência de uma escola de medicina cristã em Salerno e chamou-lhe a atenção, por exemplo, os acadêmicos de Constantinopla por serem dotados de um profundo conhecimento da literatura grega.
Durante sua viagem, Benjamin visitou igrejas e mesquitas. Descreveu Roma como “a capital do cristianismo, governada pelo papa, seu líder espiritual”. Constantinopla, em suas palavras, “sedia o trono dos patriarcas gregos, pois estes não obedecem ao papa”. Em suas andanças descobriu, ainda, que as cidades de Trani e Messina eram os principais pontos de partida dos peregrinos cristãos à Terra Santa.
Compondo um panorama histórico e geográfico de seu tempo, O Itinerário de Benjamin de Tudela confirma-se como registro histórico de relevância inquestionável. O livro deve agradar muito os historiadores e pesquisadores da Idade Média, mas também pode ser apreciado pelos leitores comuns que certamente irão se sentir parte da jornada realizada pelo rabino Benjamin, seduzidos pelo deleite da escrita de fácil leitura e a riqueza de seus relatos.

Serviço:
O Itinerário de Benjamin de Tudela
Organização e Tradução: J. Guinsburg
Editora: Perspectiva
160 páginas




terça-feira, 1 de agosto de 2017

Gertrude Stein - Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários



Brincando com tia Gertrude Stein

Edição brasileira de Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários revela uma faceta pouco conhecida da intelectual que batizou a Lost Generation, a de autora de textos direcionados ao público infantil.
Por César Alves

Zed era uma garotinha francesa que queria uma zebra como presente de aniversário. Para que o animal se sentisse confortável e o seguisse até em casa, seria preciso que o pai de Zed pintasse o mundo inteiro com listras. O conto está na letra “Z” do abecedário de brincadeiras e jogos concebido por Gertrude Stein em seu livro Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários que a editora Iluminuras disponibiliza nas livrarias brasileiras, com tradução de Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin.
Escrito em 1940, o livro seria a segunda investida da autora no universo infantil, seguindo o relativo sucesso de The World is Round (O Mundo é Redondo), publicado no ano anterior. Seus editores, no entanto, se recusaram a publicá-lo alegando que a obra não era exatamente apropriada para os pequenos. Stein não se deu por vencida e, após oferecê-lo a diversas editoras, chegou a engatar o projeto em 1942. Problemas com os ilustradores e, principalmente, as dificuldades com material e pessoal enfrentadas pelo mercado editorial durante a II Guerra fizeram com que a obra não chegasse a ser publicada, o que só aconteceu postumamente quinze anos depois pela Yale University Press.
Trata-se de um alfabeto – cada letra ligada às iniciais dos nomes das personagens ou relacionada com as datas de seus aniversários – permeado por contos que fogem do formato tradicional de “começo, meio e fim”, privilegiando o que a autora chamava de “presente contínuo”. Se as histórias, poemas e anedotas aqui reunidas muitas vezes beiram o delicioso nonsense, a autora não se acanha em tocar em temas delicados como a morte e a guerra, por exemplo.
Nome de peso entre os artistas, escritores, poetas e intelectuais norte-americanos que se mudaram para Paris no período entre guerras e batizados por ela como a “Geração Perdida” – que contava com nomes como Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, entre outros –, Stein teve participação efetiva na efervescência modernista parisiense, travando uma estreita relação com Picasso e Apollinaire, por exemplo, e acompanhando de perto a construção de movimentos de vanguarda como o Cubismo. Vem daí sua vocação para os experimentos de linguagem que fizeram de sua obra uma das mais relevantes do período e que aqui são explorados, a partir de colagens sonoras, de maneira a tornar a experiência da leitura num convite ao jogo e brincadeiras de desconstrução da linguagem.
Já foi dito que a leitura da obra de Gertrude Stein representa um verdadeiro desafio lingüístico. Aqui, o desafio também ganha ares de aventura e merece ser aceito por crianças e adultos.
Em tempo. Antes tarde do que nunca, a obra de Gertrude Stein vem ganhando as livrarias brasileiras. Recentemente, a mesma Iluminuras que está lançando a obra tema deste texto também publicou O que você está olhando – Teatro (1913-1920), reunindo 18 peças de sua autoria. A extinta Cosac & Naify publicou há alguns anos sua tradução de Autobiografia de Alice B. Toklas e, mais recentemente, a editora Âyné publicou Picasso. Esperemos que mais coisas venham por ai...

Serviço:
Título: Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários
Autor: Gertrude Stein
Tradução: Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin
Editora: Iluminuras
144 páginas





quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Ziembinski, Aquele Bárbaro Sotaque Polonês



Ziembinski, Aquele Bárbaro Sotaque Polonês

Livro da pesquisadora polonesa, Aleksandra Pluta, conta a trajetória de um dos mais importantes encenadores do teatro moderno brasileiro.
Por César Alves


No limiar da década de 1940, circulava entre o meio teatral brasileiro notícias sobre “a chegada de um polonês fabuloso, que tinha todo um espetáculo dentro da cabeça antes que se fizesse o menor ensaio ou se batesse o primeiro prego do cenário”.
O mundo amargava os tormentos da segunda guerra mundial e, em meio às notícias trágicas e alarmantes que só um conflito de tais proporções pode gerar pelo menos aquela era uma boa notícia. O polonês era Zbigniew Ziembinski (1908-1978) e o espetáculo – que ensaiava e estrearia em 1943, tornando-se um marco na história do teatro moderno brasileiro – era Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues.
Publicado primeiro na Polônia em 2015, chega agora às livrarias brasileiras, Ziembinski, Aquele Bárbaro Sotaque Polonês, biografia assinada por Aleksandra Pluta e editada pela Perspectiva, com tradução de Luiz Henrique Budant.
Falar sobre a importância de Ziembinski para o teatro brasileiro e, principalmente, sobre o impacto que teve sua colaboração com a companhia Os Comediantes e Nelson Rodrigues na concepção de nossa modernidade cênica já foi feito tantas vezes que é quase impossível fugir do lugar comum. Ziembinski também construiu uma trajetória muito relevante nas telas, como ator de filmes e novelas – sucessos de audiência, como O Rebu (1975) da Rede Globo –, e, antes de chegar ao Brasil, possuía uma sólida carreira nos palcos de seu país de origem. É justamente ai que o livro de Pluta se destaca.
Ator e diretor, formado na Faculdade de Letras da Universidade Jagielonska e na Escola de Arte Dramática do Teatro Municipal de Cracóvia, Zigbniew Ziembinski atuou – como encenador e ator – em mais de 60 espetáculos das maiores companhias e com alguns dos maiores nomes do teatro polonês, além de ter sido professor no lendário Instituto de Arte Teatral de Varsóvia. Metade do livro é dedicada à importância do encenador para também para o teatro e a cultura de seu país de origem.
Aqui ficamos sabendo que Ziembinski chegou a dirigir um filme e a atuar em diversos outros produzidos na Polônia. Além de sua célebre atuação – muito elogiada pela imprensa na época – na montagem de Verão em Nohant, de Jaroslaw Koczanowicz, interpretando o pianista Frédéric Chopin, o livro também revela que “Zimba”, como era carinhosamente chamado pelos amigos da classe teatral brasileira, chegou a conhecer pessoalmente o diretor russo e influência para o teatro mundial do século vinte, Meyerhold (1874-1940) e descreve os bastidores da estréia mundial de Genebra, peça de Bernard Shaw que zombava dos ditadores fascistas, Hitler, Mussolini e Franco. Verdadeiro ato de coragem, tendo em vista que o espetáculo, que estreou em 1938, permaneceu em cartaz cerca de quatro dias depois de a Polônia ser ocupada, no ano seguinte, numa resistência que poderia custar – e, em alguns casos, custou – a vida dos envolvidos.
Sobre a autora
Mestre em Jornalismo pela Università La Sapienza em Roma, com pós-graduação em Protocolo Diplomático pela Pontificia Universidad Católica de Chile, Eleksandra Pluta também é autora de Na onda da história. Imigração polonesa no Chile (2009), Raul Nałęcz – Małachowski Memórias de dois continentes (2012) e Andrés, uma vida em mais de 3000 filmes (2013).

Serviço:
Ziembinski, Aquele Bárbaro Sotaque Polonês
Autor: Aleksandra Pluta
Tradução: Luiz Henrique Budant
Editora Perspectiva
320 páginas



sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Não Confie em Nenhum Disco com Menos de 50



Jubileu ou Não Confie em Nenhum Disco com Menos de 50
Por César Alves

Sendo previsível, na cobertura de música, posso dizer que será o ano da previsibilidade.
2017 marca o jubileu de lançamento de diversos discos que revolucionaram o segmento musical a partir daí. Obras como Sgt. Peppers dos Beatles; Velvet Underground and Nico da banda de Lou Reed e John Cale; Forever Changes do Love; High Priestess of Soul da Nina Simone; Astral Weeks do Van Morrison; Surrealistic Pillow do Jefferson Airplane e uma infinidade de outros títulos que tomariam mais de “textão” só para relacioná-los, correndo o risco de deixar muita coisa boa de fora.
Conhecendo bem a cobertura musical como é feita no Brasil, posso antecipar desde já o festival de clichês e até as frases prontas de quem e sobre que obras escreverão nos próximos meses.
Deixei de escrever sobre musica há mais de dez anos, tendo em vista que perdi o interesse na musica como assunto e percebi que havia gente muito mais gabaritada para cobrir o tema do que eu. Por outro lado, gosto de muita coisa feita no ano de 1967, não só pela qualidade musical, mas também pelo contexto histórico e social em que foram compostos e gravados.
Do meu ponto de vista ignorante, sempre achei que 67 foi apenas o ápice de um período de três a cinco anos, a partir da segunda metade de cada década, em que a produção musical popular passa por uma inquietação criativa que antecipa o que será a musica da década seguinte. Então, sempre conforme a visão do amigo aqui, seria o ponto mais alto de algo que começa em 1966 e vai até 1970, preparando o terreno para o rock progressivo (que tem raiz no produção Baroquee), a musica Disco (o Funk e Soul e a produção musical voltada para pistas de dança), o Heavy Metal (os discos do Blue Chear e Black Sabath) e até o punk (o já citado VU e as estréias do MC5 e The Stooges).
Foi assim nas décadas seguintes, com o surgimento do punk rock e rock industrial, a invasão das festas de quarteirão e suas Sound Machines nos bairros negros pobres da Jamaica aos Estados Unidos e a musica eletrônica tocada em pistas de boates gays que abrem caminho para o pós-punk, os selos de rock independentes, Rap e o movimento Hip Hop e a House Music. Assim como os álbuns do Sonic Youth, Jesus and Mary Chain, Dinosaur Jr, entre outros, e as estréias do Public Enemy, N.W.A. e outros marcariam o que seria o rock e o rap dos anos 90.
Do lado de cá, fico tentando adivinhar qual de meus amigos irá assinar o primeiro de muitos artigos clichês sobre o jubileu do “ano mágico” de 1967 na música. Mas o que eu gostaria mesmo era de poder antecipar quais discos e artistas representam hoje algo que nos faça ter boas expectativas quanto ao que está por vir nos anos 2020...
Surpreendam-me!


sábado, 3 de dezembro de 2016

Histórias da Mesa - Massimo Montanari



Casos gastronômicos saborosos

Livro de Massimo Montanari reúne histórias curiosas dos séculos XIII ao XVII sobre nosso comportamento à mesa.
Por César Alves

Na Nápoles do século XIV, durante uma refeição oferecida pelo rei Roberto I a Dante Alighieri, o monarca teria ficado espantado com o comportamento nada convencional do poeta à mesa. Rompendo com todos os protocolos de bons modos, principalmente diante de um membro da realeza, o autor de A Divina Comédia esfregava carne e vinho nas próprias vestimentas.
Em Rivotorto, por volta do ano de 1225, Francisco de Assis pretendia suplicar ao imperador que lançasse um édito geral, obrigando todos que tivessem recursos a espalhar trigo e grãos pelas ruas para que “os passarinhos e as irmãs cotovias pudessem tê-los em abundância”, como parte de sua concepção do que seria uma verdadeira ceia de Natal. Um banquete geral, no qual os pobres e os mendigos fossem saciados pelos ricos e que mesmo os animais comecem mais.
As duas histórias, aqui bem resumidas, são exemplos de alguns dos casos deliciosos e curiosos reunidos pelo historiador e pesquisador, Massimo Montanari no ótimo livro Histórias da mesa, que acaba de sair no Brasil.
Dividido em 22 capítulos, o livro traz casos – alguns verídicos, outros um tanto quanto duvidosos – pinçadas pelo autor de registros históricos que vão do século XIII ao XVII. Alguns, como os citados acima, protagonizados por celebridades históricas, outros tendo como personagens figuras anônimas.
Aqui ficamos sabendo como, durante a celebração de um casamento, os convidados foram intimados a comparecer diante dos magistrados, em até três dias, para se defender das infrações contra a “Sereníssima”, tendo como prova do crime a carne de caça na mesa e as espinhas de peixe das sobras. “Não sabeis que, nos banquetes de núpcias, é proibida a mistura de carne e peixe?” Observava a acusação.
Professor de história medieval na Universidade de Bolonha, Itália, Massimo Montanari é pesquisador gastronômico e organizador de História da Alimentação (Estação Liberdade) e O mundo na cozinha – História, identidade, trocas (Estação Liberdade e Editora Senac-SP).

Serviço:
Histórias da Mesa
Autor: Massimo Montanari
Tradução: Federico Carotti
Editora: Estação Liberdade

232 páginas

(Publicado originalmente na edição número 27 da revista Cenário - www.revistacenario.art.br)


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Alfred Musset – A confissão de um filho do século



Alfred Musset – A confissão de um filho do século
Por César Alves

L´enfant Terrible do romantismo francês, Alfred de Musset já produzia versos aos 14 anos. Seu talento precoce não passou despercebido e logo foi aceito como o mais jovem escritor no seleto grupo de artistas do Cénacle, salão literário dirigido por Charles Nodier.
Embora a importância do convívio com os notáveis tenha tido forte impacto no jovem Musset, é justamente na maneira como o autor trata tal honraria que deixa claro sua independência criativa e indisposição para abrir concessões.
Exemplo é o episódio que marcou sua saída da confraria poética, envolvendo seu freqüentador mais famoso. Ninguém menos do que Victor Hugo.
Contrariando seus colegas, o jovem teria se recusado a prestar homenagem ao maior dos poetas franceses, como faziam todos ali. O que, embora possa ser visto como a mais infeliz demonstração de arrogância e pretensão, não deixava de ser também um ato de autenticidade.
Tamanha ousadia bastaria para por fim à carreira de qualquer poeta, mas não à carreira de Alfred de Musset.
Aos 19 anos, já era respeitado como autor dos Contos da Espanha e Itália, Pensamentos secretos de Rafael e Votos Estéreis, demonstrando desenvoltura na composição de poemas, contos, romances e peças de teatro. Idade também em que começa a desenvolver seu gosto pelos excessos, principalmente o alcoolismo – que viria a matá-lo precocemente anos depois –, pela vida noturna e pelas mulheres.
Ao longo de sua curta existência, o Musset teve muitas paixões, mas nenhuma tão intensa quanto a que compartilhou com a poeta George Sand – Amandine Aurore Lucile Dupin, que assinava com pseudônimo masculino, posto que mulheres escritoras não eram aceitas pela sociedade e o próprio meio intelectual da época.
Dotada do mesmo espírito livre do poeta, Sand também teve muitos amantes, incluindo o compositor Frédéric Chopin, e a tórrida paixão compartilhada entre eles rendeu rompimentos e reatamentos catastróficos e dolorosos. Seu relacionamento turbulento teria sido a inspiração para que o autor escrevesse A confissão de um filho do século que, depois de muito tempo fora de catálogo, volta às livrarias brasileiras numa bela edição da editora Amarilys.
Obra claramente autobiográfica, A confissão de um filho do século foi publicada em 1836, três anos depois da primeira traição de Sand, com seu médico de confiança, quando o poeta se encontrava enfermo, e depois das diversas tentativas de reatamento, marcadas por conflitos e ataques violentos de ciúmes de ambos os lados.
Narrado em primeira pessoa, o livro conta a história de Otávio, jovem bon vivant, apaixonado pela vida, mas inexperiente quanto às incertezas dos relacionamentos amorosos e no que podem trazer de dor. Inspirado nos poetas e crente no amor idealizado e trágico que movem os heróis românticos, como o jovem Werther de Goethe, o personagem é surpreendido pela traição de sua amante com um de seus melhores amigos, a quem desafia para um duelo.
Derrotado por seu oponente na peleja com pistolas, que deveria lavar com sangue sua honra ofendida, Otávio mergulha na depressão, provocada pela vergonha e o amor que ainda nutre por sua amante, apesar da traição. É em busca de uma cura para a mistura de ódio irracional com paixão e ciúme coléricos que o personagem empreende uma jornada pelas profundezas da noite parisiense, povoada por prostitutas, poetas libertinos e orgias etílicas.
Citado, ao lado de obras como Em busca do tempo perdido de Proust, entre os principais romances de descoberta e marca de sua geração, A confissão de um filho do século é a primeira de uma trinca de livros, escritos por Musset, que versam sobre a experiência amorosa no que ela traz de sofrimento, mas também de amadurecimento ao espírito, seguida de Noites (1837) e Recordações (1841).

Serviço:
A confissão de um filho do século
Autor: Alfred de Musset
Tradução: Maria Idalina Ferreira Lopes
Editora: Amarilys
296 páginas

(Texto extraído da edição número 27 da revista Cenário que começa a circular na próxima semana)


quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Friedrich Schiller – Do Sublime ao Trágico



Friedrich Schiller – Do Sublime ao Trágico

Destaque da 26ª edição da revista Cenário, lançamento da Autêntica joga luz sobre os conceitos estéticos de um dos maiores nomes do Romantismo alemão.
Por César Alves

Em meados do século dezoito, a beleza mostrou-se insuficiente para descrever o que faz da criação artística uma obra de arte. Mais do que os valores impressos na proporção e conveniência que convergem em delicadeza, pureza, clareza de cor, graça e elegância, a experiência estética também exigia o desafio aos sentidos, “(...) aquilo que produz a mais forte emoção que o espírito é capaz de sentir”, como descreve Edmund Burke em sua Pesquisa filosófica sobre a origem de nossas idéias do Sublime e do Belo, publicado em 1759. Assim, em reação ao Belo artístico, o conceito de Sublime ganha a atenção dos estudiosos e apreciadores das belas artes.
O Sublime, na definição de Burke, caracterizava-se por provocar em quem aprecia um quadro ou uma obra literária emoções antagônicas de admiração e terror. Tal conceito não era exatamente uma novidade, tendo em vista que já havia sido proposta, séculos antes, por Pseudo-Longino, autor de um tratado sobre o Sublime, escrito na era Alexandrina, que circulava entre intelectuais setecentistas. O autor britânico também não foi o único pensador da época a se debruçar sobre o tema e é na Crítica da faculdade de juízo (1790), de Emmanuel Kant, que as diferenças entre o Belo e Sublime são definidas com precisão.

Vem da leitura de Kant o interesse de Friedrich Schiller pelas manifestações do Sublime na arte, objeto de alguns de seus mais importantes escritos teóricos, publicados nas revistas Neue Thalia e Die Horen – em parceria com Goethe – e depois revistos nas suas obras completas. O artigo Do Sublime ao Trágico, publicado recentemente no Brasil pela editora Autêntica, está catalogado entre suas diversas e importantes contribuições para as pesquisas e estudos sobre estética.
Para o autor, assim como o é para Kant, a experiência Sublime remete à natureza e nossos instintos naturais. Ao contrário do Belo, cuja atração está ligada a um sentimento nato que nos leva ao deleite frente ao que parece agradável e organizado aos nossos olhos, o Sublime instiga nossa natureza física e racional. Diante do objeto Sublime, como seres físicos, dotados de corpos frágeis que podem ser feridos por uma avalanche ou tempestade, despertamos para nossa inferioridade frente à magnitude do mundo natural; e, como criaturas racionais, capazes de sobrepujar e alterar a natureza, experimentamos de uma liberdade que vai além dos limites.
Schiller também chama a atenção para a característica diversa do Sublime em suas representações artísticas. É possível experimentar o Sublime de forma passiva, como quando observamos o Viajante diante do mar de nuvens (1818), de Caspar David Friedrich; ou de forma direta, tomado pelas águas ameaçadoras que levam ao naufrágio a embarcação da cena pintada por William Turner em O Navio Negreiro (1840), exemplos deste que vos escreve.

Segundo ele, o distanciamento proporcionado pela reprodução em um quadro é o que faz da experiência Sublime nas artes superior a Natureza. Como no caso do segundo exemplo, quem aprecia a cena de Turner, uma vez distante do evento trágico, pode provar do horror do episódio e racionalizá-lo, o que seria impossível fazê-lo estivesse ele no lugar das vítimas ali representadas.
Ao contrário do Belo, a experiência do Sublime não seduz e sim provoca. Apela para nossos instintos de sobrevivência e autopreservação e, ao mesmo tempo, para nossa razão, o que torna o gosto pelo Sublime uma característica dos espíritos mais elevados.

Serviço:
Do Sublime ao Trágico
Autor: Friedrich Schiller
Tradução: Pedro Sussekind e Vladimir Vieira
Editora: Autêntica
128 páginas

(O artigo faz parte da edição de número 26 da revista Cenário, atualmente em circulação: www.revistacenario.art.br)



segunda-feira, 14 de março de 2016

Sobre Mitos, Heróis e Deusas - Joseph Campbell



Sobre Mitos, Heróis e Deusas

Joseph Campbell vive nas livrarias brasileiras com a reedição de O Herói de Mil Faces, livro de cabeceira de roteiristas e mitólogos mundo afora, e a publicação de Deusas – Os Mistérios do Divino Feminino e As Transformações do Mito Através dos Tempos.
Por César Alves


Falecido em 1987, Joseph Campbell entrou para a história do século vinte como um dos mais importantes especialistas em mitologia universal, ganhando respeito e notoriedade no meio acadêmico e também no universo da indústria cultural, como o autor predileto de nove entre dez roteiristas de Blockbusters Hollywoodianos, principalmente depois de George Lucas citá-lo como referência na construção de sua saga Star Wars.

Embora sua bibliografia em português esteja longe de ser completa, já que o autor, além de seus trabalhos publicados em vida, deixou, sob os cuidados de instituição que leva o seu nome, uma enorme quantidade de textos, transcrições de palestras e entrevistas, que costumam render obras póstumas, Campbell possui uma boa quantidade de títulos publicados por aqui. A lista acaba de engrossar com a chegada às nossas livrarias de O Herói de Mil Faces, As Transformações do Mito Através dos Tempos e Deusas.

O primeiro, O Herói de Mil Faces (Editora Pensamento), é a reedição de sua obra mais conhecida e que despertou a atenção dos figurões da indústria do entretenimento. Publicado originalmente em 1949, o livro parte do conceito do “Monomito”, no qual é possível identificar pontos em comum e similaridades na estrutura lógica das narrativas antigas sobre diversos personagens míticos, em inúmeras culturas e povos, mesmo que separados na história, tanto no tempo como no espaço. Dos contos de fada e do folclore às narrativas sobre os feitos dos heróis mitológicos clássicos, passando também pelas narrativas bíblicas e livros sagrados das demais religiões, o autor defende que todas representam simultaneamente as várias fases de uma mesma história. Valendo-se da psicologia, estabelece o relacionamento entre seus símbolos intemporais e os símbolos detectados nos sonhos e a interpretação das palavras proferidas por grandes líderes espirituais, como Moisés, Jesus, Maomé, Lao-Tzu e os Anciãos das tribos australianas.
As Transformações do Mito Através do Tempo (Editora Cultrix) compila uma série de treze palestras ministradas por Campbell no final de sua vida que examinam o vasto campo do desenvolvimento da mitologia em todo o mundo e em todas as épocas. Ilustrado com imagens que acompanham as conferências originais, a obra expõe a compreensão de Campbell sobre como o mito reconcilia os seres humanos com os mistérios da vida.
Embora nunca tenha escrito um livro específico sobre as manifestações do divino feminino nas mitologias universais, Joseph Campbell tinha muito a dizer sobre o tema. Tanto que, entre 1972 e 1986 ministrou cerca de 20 palestras dedicadas ao tema que a especialista e editora Safron Rossi reuniu no ótimo Deusas – Os Mistérios do Divino Feminino (Editora Palas Athena). Aqui Joseph Campbell traça a evolução do divino feminino desde a Grande Deusa até as muitas deusas da Antiga Europa do Neolítico até a Renascença. Lança nova luz sobre temas clássicos e revela seus símbolos das energias arquetípicas de transformação, iniciação e inspiração.
Ainda hoje considerado uma das maiores autoridades em mitologia, Joseph Campbell teve seu interesse pelo tema despertado ainda na infância, incentivado por seu pai, que costumava levá-lo ao Museu Americano de História Natural de Nova York, onde, maravilhado, tomou contato com impressionantes coleções antropológicas. Embora tenha começado seus estudos na área da biologia e matemática, dirigiu os seus estudos acadêmicos para a literatura inglesa e literatura medieval, tema de seu mestrado na Universidade de Columbia.
Também é autor das Séries As Máscaras de Deus (Palas Athena) e O Poder do Mito.




Serviço:
Título: O Herói de Mil Faces
Autor: Joseph Campbell
Editora: Pensamento
416 páginas

Título: As Transformações do Mito Através do Tempo
Autor: Joseph Campbell
Editora: Cultrix
264 páginas

Título: Deusas – Os Mistérios do Divino Feminino
Autor: Joseph Campbell
Editora: Palas Athena


domingo, 27 de setembro de 2015

Peças Faladas - Peter Handke



A Palavra Encenada de Peter Handke

Chega às livrarias Peças Faladas, contendo quatro peças do autor austríaco até agora inéditas no Brasil.
Por César Alves

No alvorecer do que seriam os conturbados anos de 1960, um jovem e desconhecido cineasta alemão sentiu-se provocado ao assistir a montagem (se é que a palavra faz sentido em se tratando do texto em questão) de uma peça escrita por um dramaturgo austríaco, também ainda pouco conhecido.
O espetáculo, que rompia com tudo o que tradicionalmente entendemos por peça teatral, indo muito além do despojamento cênico e dramatúrgico, o atingiu profundamente, ao ponto de, logo após a experiência, o cineasta sair a procura de quem o havia escrito, o que acabou dando início a uma longa e produtiva parceria.
O Jovem cineasta se chamava Wim Wenders.
A peça, Autoacusação.
Seu autor, Peter Handke.
Autoacusação é um dos quatro textos de Handke traduzidos por Samir Signeu e reunidos na antologia Peças Faladas, que a editora Perspectiva acaba de publicar, em edição bilíngüe (Alemão-Português), para o deleite dos leitores brasileiros.
Focado na produção dramatúrgica de Handke em que o autor subvertia o ato da escrita teatral, abrindo mão de todos os recursos cênicos tradicionais, limitando ao uso da palavra, além do texto que aproximou o autor de Wim Wenders, completam o livro as peças Predição, Insulto ao Público e Gritos de Socorro. Todas, até então, inéditas por aqui.
Os textos que compõem este Peças Faladas causaram polêmica, como é do feitio de seu autor, desde as primeiras montagens, devido ao estranhamento que causavam no público e não é difícil entender o motivo. Provocador de carteirinha, ao criar suas peças faladas, Handke tinha como intenção eliminar todos os recursos de palco que, para ele, davam às montagens teatrais e à experiência cênica, uma condição sensorial ilusória. Suas peças, então, teriam como único instrumento criativo e condução cênica a palavra falada.
Aqui não há encenação de um drama, tragédia ou comédia; não há personagens, uma história sendo contada ou qualquer coisa parecida; é o próprio texto que protagoniza, desenvolve e provoca a ação dramática e experiência cênica. Como nos é informado em Insulto ao Público: “Vocês não verão nenhum espetáculo. Suas curiosidades não serão satisfeitas. Vocês não verão nenhuma peça”.
Tal proposta é levada ao extremo em Gritos de Socorro, onde toda a ação é composta de recortes que parecem extraídos de campanhas publicitárias, slogans, manchetes de jornais e revistas, com o único intuito de impedir que o público se divirta.
Poeta, romancista, contista, dramaturgo e cineasta, Peter Handke possui uma série de títulos publicados no Brasil, desde meados dos anos 1970. Apesar disso, o autor é mais citado como colaborador de Wim Wenders do que lido entre os brasileiros.
Fruto da relação entre uma austríaca e um soldado nazista, durante os anos de ocupação alemã da Áustria, só depois de adulto o autor foi conhecer seu pai biológico. Ainda criança se mudou com a mãe para Berlim, passando a infância e adolescência, entre os escombros de edifícios e casas, em um país dividido e arrasado pela guerra, pela culpa e pelos crimes megalomaníacos de Hitler e seus asseclas.
Handke obteve reconhecimento cedo, aos 22 anos de idade, com a publicação de seu primeiro romance Die Hornissen, em 1966, mesmo ano em que passa a fazer parte do Gruppe 47, coletivo de autores dedicado ao debate da educação, literatura e democracia na Alemanha do pós-guerra, do qual fizeram parte também Paul Celan, Hans Magnus Hezensberg, Gunter Grass e Heinrich Boll.
Autor de diversas obras importantes, entre elas O Medo do Goleiro Diante do Penalt e Kaspar, adaptado para a tela grande em uma de suas várias parcerias com Wenders, também dirigiu seus próprios filmes, passeando com desenvoltura pelas mais varias linguagens, da poesia à prosa, do teatro ao cinema e etc.


Serviço:
Título: Peças Faladas
Autor: Peter Handke
Tradução: Samir Signeu
Editora: Perspectiva
240 páginas


terça-feira, 8 de setembro de 2015

Duna de Alejandro Jodorowsky



Duna: entre o épico de Frank Herbert e o maior filme de ficção-científica jamais realizado

De volta às livrarias brasileiras, em novas edições da Aleph, Duna não só se tornou uma das maiores séries ficcional-científicas, como  também se tornou obsessão para Alejandro Jodorowsky.
Por César Alves

Um elenco de peso que incluía Orson Welles, Salvador Dalí e Mick Jagger, entre outros; trilha sonora composta exclusivamente para a película pelo Pink Floyd; uma super produção de ficção-científica, sob a direção de Alejandro Jodorowsky. Sugiro ao amigo leitor (a) que imagine como seria tal obra, pois imaginá-la é tudo o que se pode fazer, tendo em vista que se trata de uma das mais influentes e cultuadas obras cinematográficas, jamais realizadas: Duna de Jodorowsky!
Considerada um marco na produção literária de ficção-científica moderna, Duna, que inaugura a série épica, escrita por Frank Herbert, foi publicado originalmente em 1965 e ainda hoje ostenta o título de obra de ficção-científica mais vendida em todo o mundo.
Vencedor do Prêmio Hugo de 1966 – primeiro dos muitos que colecionaria durante sua trajetória –, Duna daria início a saga que viria a se tornar uma das mais longevas do gênero, sendo seguido por mais outros cinco títulos, que estão ganhando novas edições em português, através da editora Aleph – já estão disponíveis os livros que formam a primeira trilogia: Duna, Filhos de Duna e Messias de Duna.
Num futuro distante, muito depois do desaparecimento de nossa civilização da qual, embora praticamente esquecida, ainda sobrevivem, numa espécie de memória ancestral, conceitos e tradições religiosas e filosóficas, adaptadas ao novo ambiente, a história se desenrola durante a expansão de um Império Intergaláctico, dividido em feudos planetários controlado por Casas Nobres, sob a liderança da casta imperial da Casa Corrino.
O herói da trama, Paul Atreides, é filho do Duque Leto Atreides e herdeiro da Casa Atreides, tem seu destino mudado na ocasião da transferência de sua família para o planeta Arrakis, fornecedor e única fonte no universo do cobiçado Melange, especiaria cobiçada, espécie de alucinógeno ou droga capaz de proporcionar ao usuário poderes psíquicos e extra-sensoriais inimagináveis.
É na jornada de descobertas de Paul e outros personagens do universo expandido de Duna que Herbert parte para explorar a complexidade das relações políticas, religiosas e emocionais, passando pelo debate em torno da interação entre avanço tecnológico, exploração de meios naturais e seu impacto ecológico, muito pertinente na época de seu lançamento, o que explica o fato de a série ser ainda hoje apontada como uma das mais importantes e inovadoras obras de ficção e fantasia publicadas na segunda metade do século vinte.
Não é de se admirar que a série tenha se tornado uma das franquias literárias mais cultuadas da história e recebesse uma adaptação cinematográfica, o que aconteceu em 1984, sob a direção do não menos cultuado David Lynch. O filme de Lynch, no entanto, – pelo menos para este escriba – ficou muito aquém não só do original, como também da obra cinematográfica de seu diretor.
O que nem todo mundo sabe é que a aventura audiovisual de Duna não começa com Lynch, mas quase uma década antes, como uma obsessão quase religiosa de outro cultuado diretor, o chileno Alejandro Jodorowsky, rendendo uma obra que se tornou tão revolucionária quanto lendária, mesmo que nunca tenha sido concluída.

Duna de Jodorowsky



Na primeira metade dos anos 1970, o multimídia Alejandro Jodorowsky gozava de respeito quase devoto entre a nata intelectual e artística internacional. Entre seus admiradores e colaboradores estava o ex-beatle John Lennon, por exemplo.
Personalidade do primeiro time das vanguardas latino-americanas, passeando com desenvoltura nas mais diversas funções; entre elas as de ator, diretor, dramaturgo e poeta – também psicólogo ou “psicomago”, como prefere –, era como cineasta que seu nome ganhava mais atenção. Adepto dos experimentos estéticos do surrealismo, seus projetos cinematográficos sempre foram marcados por sua obsessão inquestionável de ter controle indiscutível sob cada detalhe da produção, escrevendo, dirigindo e atuando. Postura que tinha como princípio sua visão de cinema como algo além do entretenimento e mercado e sim como expressão artística máxima, mais de linguagem, uma experiência sensorial e religiosa.
Assim foram realizados filmes como Pando y Lis (1968), El Topo (1970) e A Montanha Mágica (1973) que, mesmo considerados de público restrito, relegados às sessões especiais, exibidos após a meia noite, ganharam reconhecimento da crítica e do público, que formavam filas para assisti-los, apesar do horário.
Reconhecendo tais qualidades e baseando-se no sucesso que seus filmes obtinham entre o público europeu, seus distribuidores franceses decidiram lhe oferecer carta branca e orçamento ilimitado para seu próximo projeto. Reza a lenda que, durante a reunião com seu produtor, Michel Seydoux, lhe foi perguntado o que ele gostaria de filmar. Olhando para a estante de livros, Jodorowsky teria apontada uma das obras e respondido:
“Duna!”
Ao que foi apoiado de imediato, tendo em vista o sucesso que o livro vinha obtendo nas livrarias e a quase certeza de se repetir na grande tela. O mais engraçado é que, segundo o próprio diretor, até ali, embora soubesse do que se tratava o livro de Frank Herbert, Jodorowsky não o havia lido, o que tratou de fazer no mesmo dia, já preparando seu roteiro.
Um castelo francês teria sido alugado para funcionar como sede da equipe de pré-produção e ao diretor foi dado total controle e liberdade para contratar quem bem entendesse. Alejandro abraçou o projeto como uma verdadeira missão religiosa, cruzada revolucionária em busca de corações e mentes que fariam daquela sua obra definitiva. Para a produção gráfica, criação de storyboards e figurinos, foram convocados os geniais H. R. Giger, Moebius e Chris Foss. Com o aval de seus produtores, Salvador Dalí foi contratado, mesmo tendo exigido receber como “o ator mais bem pago da história de Hollywood”; Orson Welles teria a sua disposição o chef de seu restaurante francês predileto, como cozinheiro particular, durante as filmagens; Mick Jagger colocou-se a disposição para atuar no filme, antes mesmo de ser solicitado, ao saber das intenções do diretor de incluí-lo na película, assim como David Carradine.

Jodorowsky chegou a dispensar o responsável pelos efeitos especiais de 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, por achar que ele não abraçaria o projeto como um apóstolo devotado e sim como um investidor financeiro, preferindo o, até ali pouco conhecido, Dan O´Bannion dos filmes de John Carpenter, futuro criador da série Helloween.
Reunindo-se com os integrantes do Pink Floyd, nos estúdios Abbey Road, durante as gravações de The Dark Sido of the Moon, ficou acertado que a banda assumiria a composição da trilha sonora.
Com tudo isso, não há duvidas de que estava pronta a estrutura que faria do Duna de Jodorowsky um clássico e chega a ser inacreditável nunca ter sido concluído.
O projeto caminhava bem até esbarrar na burocracia e visão mercantilista do braço norte-americano da produção. Para apresentá-lo aos grandes estúdios de Hollywood, um storyboard, com descrições técnicas, movimentos de câmeras, cenas desenhadas por Moebius e tudo o mais, foi criado e passou pelas mãos de cada um dos manda-chuvas da indústria, recebendo elogios, mas pouca disposição para arriscar em uma obra tão ousada. Além do mais, Jodorowsky não abria mão de concluir e exibir seu filme exatamente como o concebera, recusando-se a aceitar as mudanças sugeridas pelos magnatas da indústria e, muito menos, editá-la – o filme teria cerca de doze horas de duração!
O projeto acabou engavetado, mas sua influencia sobre tudo o que foi feito depois, ainda hoje, é visível. O storyboard, concebido por Jodorowsky e Moebius, acabou circulando como um guia nas mãos de diretores e produtores da indústria, sendo suas indicações de enquadramento, movimento de câmera, estética gráfica e, inclusive, cenas inteiras, aproveitadas em obras como Star Wars, Alien, Blade Runner, Prometheus e diversas outras grandes e médias produções de Sci-Fi até hoje.

A saga de Alejandro Jodorowsky e seu Duna, aliás, foi alvo de um ótimo documentário, Jodorowsky´s Dune (2013), dirigido por Frank Pavich.



quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Absinto, Uma Historia Cultural (Livro)



A Fada Verde dos Boêmios e Artistas

Livro traça a história de uma das bebidas mais controversas e cultuadas, já criadas pelo homem, o absinto.
Por César Alves

Elixir divino, musa esmeralda capaz de ampliar e desinibir a criatividade dos artistas; ou veneno demoníaco, destilado pelo próprio Satã com o intuito de destruir a civilização?
Poucas bebidas na história da humanidade despertaram tanta controvérsia quanto o Absinto. Cantada como a fada de olhos verdes nos versos de Mussil, Charles Cros, Lord Byron , Verlane e muitos outros, tem entre seus cultores célebres nomes como Oscar Wilde, Charles Baudelaire, Alfred Jarry, Picasso, Hemmingway, Hunter Thompson e Johnny Depp. Era a bebida preferida de Tolousse Lautrec que, segundo reza a lenda, teria introduzido o colega Vincent Van Gogh no vício do destilado mítico, o que, para muitos, teria agravado ainda mais o quadro esquizofrênico no qual este já se encontrava.
Muito popular na França do Século XIX, o absinto era para seus detratores símbolo de tudo o que de ruim acontecia naquele país. Estes chegavam a pedir sua proibição, o que realmente acabou acontecendo, advertindo para o fato de que a bebida acabaria por destruir a nação. Aos seus olhos, os franceses estavam tão mergulhados no vício, que logo não haveria mais França, pois metade de seu povo estaria enlouquecida pelos efeitos da bruxa verde, enquanto a outra ocupada demais amarrando a primeira com camisas de força.
Em Absinto – Uma história Cultural (Ed. Nova Alexandria), Phil Baker traça um histórico do absinto desde os primeiros registros conhecidos sobre a Artemísia Absynthia, cujas folhas são o composto básico da bebida.
De acordo com a mitologia grega, a planta, de sabor amargo e desagradável e propriedades curativas, seria um presente da Deusa Artemis ao Centauro Quíron. Baker desvenda a construção do mito de elixir dos artistas boêmios, passando pela já citada febre absintomaníaca do século XIX, quando o hábito de bebê-lo tornou-se tradição diária entre os populares franceses ao ponto de o happy hour parisiense ganhar o elegante apelido de “A hora verde”. Questiona até que ponto o absinto representava mesmo o perigo que justificasse sua proibição ou era apenas vítima de uma paranóia conservadora ainda hoje em voga – há quem defenda que a bebida deveria ser classificada como narcótico e, em meados dos anos 2000, o ex-Primeiro Ministro Britânico Tony Blair chegou a abrir o debate a este respeito, declarando publicamente que talvez fosse hora de pedir novamente sua proibição.
Praticamente banido e esquecido por quase todo o século XX, a redescoberta do absinto remete ao final da década de 1980, quando voltou a ser difundido em inferninhos do Leste Europeu em pleno declínio do regime soviético. Segundo Baker, a moda teria começado com o músico John Moore, ex-integrante das bandas The Jesus And Mary Chain e Black Box Recorder. Entusiasta do absinto, Moore foi peça chave para sua redescoberta em finas dos anos 1980.
A bebida teria voltado à moda depois de uma entrevista e uma série de artigos assinados por ele, nos quais o músico comparava o ato de preparar o absinto ao de aplicar heroína, uma vez que ambos utilizavam fogo e uma colher, de forma quase ritualística. Essa forma de preparo, com um isqueiro para ascender o liquido e derreter o torrão de açúcar, no entanto, só surgiu no Leste Europeu em de finais do século XX, o que para os tradicionalistas pode ser uma ofensa, tendo em vista a importância do ritual. Para estes, o verdadeiro Absyntheur, termo pelo qual os adoradores da bebida eram conhecidos no século XIX, sabe que deve diluir o liquido viscoso apenas com água, despejada aos poucos sobre um torrão de açúcar colocado sobre uma colher furada, própria para o preparo da dose. A graça está em observar a água serpenteando por entre o líquido verde, de preferência, ao som de Erik Satie e nada de indie rock.
Crítico literário do The Sunday Times e o The Times Literary Supplement, Phil Baker é autor de um livro sobre Samuel Becket e uma biografia de William S. Burroughs. Sua História Cultural do Absinto deixa claro que se trata de uma das bebidas mais fortes já produzidas. Logo, é bom nem experimentar. Mas o aviso é só para deixar claro que bom amigo ele é. O livro é praticamente um guia para os que pretendem se deixar levar pelos encantos da fada verde, com dicas de novas marcas, onde encontrar, teor alcoólico e tudo o que precisa saber os Absyntheurs modernos.
Mas, ainda que o leitor não tenha interesse em experimentar o elixir esmeralda ou mesmo conhecer sua história, o livro também vale pelas curiosidades envolvendo famosos adeptos do absinto e sua relação com a bebida. Uma de minhas prediletas conta que o dramaturgo Alfred Jarry, autor de “Ubu Rei”, precursor dos surrealistas e influência no Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, tinha duas paixões, além de escrever: armas e bicicletas.
Cabelos tingidos de verde, depois de uma maratona de tudo quanto é bebida alcoólica que encontrasse – declarava-se inimigo da água, “liquido maldito que só fora criado para lavar corpos e esfregar o chão” –, tomava uma dose de absinto, um pouco de éter, escolhia uma de suas armas – tinha duas pistolas e uma carabina – e saia a pedalar pelas ruas da Paris noturna. Trabuco na cintura, ficava aguardando até que alguém perguntasse: “Tem fogo?” Era a deixa para que Jarry sacasse de sua arma e mandasse bala.

“Merdra!”

Devem ter dito alguns deles...


(Artigo publicado originalmente na revista Brasileiros, em janeiro de 2011, com o título O Elixir Verde da Boemia)



segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Ficção Científica no Cinema Brasileiro (Livro)



Arquivo-B, a Ficção-científica no Cinema Brasileiro

Atmosfera Rarefeita, de Alfredo Suppia, promove uma jornada ao quase desconhecido universo do cinema de ficção-científica praticado no Brasil.
Por César Alves

De tão incorporado a nossa vida cotidiana, nem parece que, quando surgiu, o cinema era feito algo saído da ficção científica. Assim como poucos gêneros literários parecem ter sido feitos sob medida para o que viria a ser chamado de linguagem cinematográfica – muito antes de ela sequer existir, como é característico do estilo – quanto o explorado por mestres como Julio Verne, H.G. Wells, Phillip K. Dick, Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Robert Heinlein, Ray Bradbury e etc, de uma lista imensa demais para citar todo mundo.
Dos experimentos visuais e colagens dos efeitos especiais avant la lettre de Georges Meliés, que resultaram em obras memoráveis como Viagem à Lua (1902), passando pelos B-movies de Ed Wood, 2001: Uma Odisséia no Espaço, Blade Runner, Alien, o Oitavo Passageiro, os mega-orçamentos e bilheterias de Steven Spielberg até chegarmos aos recentes Avatar, Eu, Robô e outros, a parceria Cinema e FC parece longe de chegar ao fim.
Além da industria de Hollywood, a ficção-científica aparece no cinema russo, alemão – Metrópolis (1927), de Fritz Lang é um marco –, japonês, entre outros; se você acha que Truffaut atuando em Contatos Imediatos do Terceiro Grau é o mais perto que a Novelle Vague esteve do gênero, lembre-se de Alphaville (1965) de Godard e a lista segue adiante.
“E no Brasil?” Pode estar se perguntando o amigo leitor ao que respondo com a sugestão de uma leitura, tão agradável quanto obrigatória, de Atmosfera Rarefeita – A Ficção Científica no Cinema Brasileiro, de Alfredo Suppia, publicado pela editora Devir.
“Minha entrada no cinema não foi planejada. Na verdade, comprei minha primeira câmera para ver se conseguia filmar um disco voador”, confessou-me mais de uma vez Ozualdo Candeias, responsável por obras emblemáticas de nosso áudio visual, como A Margem (1967).
Apesar de nunca ter realizado um Sci-Fi Rural, infelizmente, o fato de Candeias ter passado de caminhoneiro à cineasta por influência dos aliens é simbólico sobre o quanto nós fomos feitos para o gênero. Convenhamos, esse país parece coisa de outro planeta e chega a ser imperdoável que a trama de um filme como Distrito 9, não tenha sido pensada por um cineasta brasileiro. Como não poderia deixar de ser, nossa aventura cinematográfica está cheia de visitas de óvnis, viagens no tempo, cientistas loucos e suas experiências catastróficas ou cômicas, desde o início.
Já em 1908, descrita como “fita cômico phantastica”, a comédia Duelo de Cozinheiras, de Antonio Leal, já trazia características do gênero. Mas é no ano de 1947, com a estréia de Uma Aventura aos 40, de Silveira Sampaio, que um longa ousaria imaginar o mundo do futuro, imaginando o Brasil no distante ano de 1975. A partir daí marcianos desfilaram na avenida em Carnaval em Marte (1954), de Watson Macedo; Carlos Manga introduziu a guerra pela supremacia tecnológica da Guerra Fria em O Homem do Sputnik (1959), cientistas brasileiros promoveram a conquista da lua em Os Cosmonautas (1962), de Victor Lima; e até Nelson Pereira dos Santos flertou com o futuro apocalíptico zumbi de George Romero em Quem é Beta (1973).
Didi, Dedé, Mussum e Zacarias foram ao “Planalto” dos Macacos e lutaram na Guerra dos Planetas e, de sátiras eróticas como O ETesão (1988) até sucessos recentes como O Homem do Futuro (2011) o cinema brasileiro produziu tanta ficção científica quanto as curvas futuristas de Niemeyer poderiam sugerir.
Membro da Sociedade Brasileira para Estudos do Cinema e do Audiovisual, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), autor de diversos textos sobre cinema e fundador da Zanzalá, primeira revista acadêmica dedicada ao estudo de ficção científica e fantasia do Brasil (http://www.ufjf.br/lefcav/revista-zanzala), Alfredo Suppia nos oferece um excelente estudo que vai além da pesquisa histórica e avaliação crítica, resultando numa obra única e indispensável.


Serviço:
Título: Atmosfera Rarefeita – A Ficção Científica no Cinema Brasileiro
Autor: Alfredo Suppia
Editora: Devir
400 páginas



terça-feira, 18 de agosto de 2015

O Coração das Trevas em Quadrinhos e o Holocausto Negro do Congo



As Profundezas do Lobo do Homem no Congo Belga e Joseph Conrad em Texto e Imagem

Fruto da experiência pessoal de Joseph Conrad, durante sua estadia no Congo, em plena colonização genocida belga e um dos mais intensos cânones da literatura universal, O Coração das Trevas, ganha adaptação para quadrinhos.
Por César Alves

Certa manhã, no limiar do século XX, missionários europeus, dedicados a espalhar a boa nova entre os selvagens da África e salvar da danação suas pobres almas condenadas, receberam um cesto pesado. A princípio, acreditaram tratar-se de um presente, uma demonstração de gratidão dos nativos aos arautos da santidade entre os homens.
O Horror! Não eram frutas nativas.
O Horror! Estava cheia até a borda.
O Horror! Dezenas de mãozinhas negras decepadas.
O Horror! Membros, separados dos corpos de crianças nativas, para castigar seus pais rebeldes.
O Horror! O conteúdo do cesto era o resultado de mais de duas décadas da colonização belga, perpetradas pelos homens de boa vontade.
O Horror! Um dos maiores e mais terríveis massacres, hoje esquecido pelos livros de história.
O Horror! Cerca de 13 milhões de mortos!
O Horror! O silêncio sepulcral de Deus quase tão sombrio quanto o silêncio dos homens de bem, frente aos massacres em nome civilização e do progresso.
Apelidado de “O Açougueiro do Congo”, foi como filantropo, o bom monarca que, em socorro ao sofrimento do povo africano, empreende uma missão civilizadora e humanitária para curar os doentes, educar os ignorantes e alimentar os famintos do Congo, Leopoldo II assumiu um dos poucos territórios ainda inexplorados, durante o neo-colonialismo europeu na África.

Terreno difícil, selva invencível, o Congo era o inferno, mesmo para exploradores experimentados. No final do século XIX, ainda evitado pelas nações ricas que investiam e lucravam com a exploração das riquezas dos territórios vizinhos.
Ambicioso, Leopoldo II chegou ao poder como o soberano que iria mudar o papel de seu país na história. A Bélgica havia ficado de fora da colonização do Novo Mundo, era vista como uma nação pacífica e próspera, mas sem grande atuação no jogo político internacional. Vencer o inferno do Congo poderia ser a cartada definitiva para mudar o jogo. Mas a empreitada era por demais arriscada. As chances de fracasso eram imensas e, ainda que obtivesse sucesso, os lucros certos com as riquezas naturais levariam tempo para cobrir as despesas da aventura.
Para evitar jogar a conta no tesouro belga, o rei arquitetou um plano para financiar equipamentos, armas e mão de obra, sem tirar do próprio bolso. Fundou, em seu nome e em nome de seus parentes, diversas associações filantrópicas de fachada e, através delas, arrecadou os fundos necessários, sob a alegação de tratar-se de uma expedição humanitária. Algo bem parecido com o golpe de políticos, ativistas inescrupulosos e ONGs falsas de hoje em dia. Na verdade, sua majestade tinha verdadeiro interesse era na riqueza de marfim e extração de borracha – o potencial das riquezas minerais da região ainda não tinha sido percebido, mas o leitor não está errado se pensou nos “Diamantes de Sangue”, que não é nada mais do que um dos capítulos mais recentes dessa mesma tragédia.
Os trinta anos de dominação belga no Congo, resultou num número aproximado de 13 milhões de mortos. Portanto, quando você pensar nos grandes genocídios da história, lembre-se também do Holocausto Negro no Congo; quando falarem em campos de trabalhos forçados e de extermínio, pense no estupro de mulheres negras liberados para soldados e emissários do rei e no único caso conhecido na história de um povo e um país inteiro como propriedade e mão de obra escrava de um individuo, o Rei Leopoldo.
Quando ler sobre a crueldade perpetrada por grupos paramilitares, milicianos e guerrilheiros nas florestas africanas de hoje, pense no “Manual de Dominação e Condicionamento”, elaborado pelos alto-funcionários da coroa belga em fins do século dezenove, que incluía tortura, desmembramento, decapitação e cabeças enfiadas em estaca, como forma de imposição da ordem, ainda hoje usado para educar os integrantes dos grupos citados anteriormente.

O horror, segundo Joseph Conrad, em quadrinhos
Ainda hoje praticamente ignorado pelos livros de história, a tragédia colonial do Congo não passou despercebida pela literatura e acabou gerando uma das obras mais importantes de literatura universal, através da pena mestra de Joseph Conrad, autor de O Coração das Trevas e testemunha ocular do massacre – Conrad seguiu a carreira de marinheiro por 16 anos, experiência que foi base para sua obra. Em um de seus últimos empregos marítimos, o autor trabalhou para uma empresa de exploração belga, justamente conduzindo um barco a vapor através do Rio Congo. O período de dominação de Leopoldo II.
A obra, que já ganhou duas adaptações para cinema e pode ser encontrada em diversas traduções em nossas livrarias, acaba de chegar às nossas prateleiras em adaptação para os quadrinhos.
Roteirizado pelo premiado dramaturgo norte-americano, David Zane Mairowitz, com desenhos de Catherine Anyango, do Royal College of Arts of London, e tradução para o português de Ludimila Hashimoto, no ótimo lançamento da heróica editora Veneta.

Inspiração para o roteiro de Apocalypse Now de Francis Ford Coppola, O Coração das Trevas narra a saga do capitão Charles Marlow e sua busca pelo misterioso senhor Kurtz. Lobo do mar e aventureiro, Marlow se vê entediado após longo período sem trabalho. Para quem tem em um navio seu único lar e na vastidão do mar sua única pátria, nada pior que terra firme. Contratado por uma companhia inglesa de exploração de marfim, Marlow assume o comando de um barco a vapor. É enviado a uma colônia africana para, pelo rio, transportar de um posto a outro o produto extraído da selva. Antes, no entanto, é incumbido de resgatar o senhor Kurtz, funcionário que dirige o posto mais produtivo, localizado na parte mais alta e inóspita da rota. A busca por Kurtz mergulha Marlow em uma jornada sombria em direção às profundezas da selva e da alma humana.


Serviço:

Título: O Coração das Trevas
Autores: Joseph Conrad, David Mairovitz e Catherine Anyango
Editora Veneta
128 páginas