As Profundezas do Lobo
do Homem no Congo Belga e Joseph Conrad em Texto e Imagem
Fruto da experiência
pessoal de Joseph Conrad, durante sua estadia no Congo, em plena colonização
genocida belga e um dos mais intensos cânones da literatura universal, O Coração das Trevas, ganha adaptação
para quadrinhos.
Por César Alves
Certa manhã, no limiar do século XX, missionários
europeus, dedicados a espalhar a boa nova entre os selvagens da África e salvar
da danação suas pobres almas condenadas, receberam um cesto pesado. A princípio,
acreditaram tratar-se de um presente, uma demonstração de gratidão dos nativos
aos arautos da santidade entre os homens.
O Horror! Não eram frutas nativas.
O Horror! Estava cheia até a borda.
O Horror! Dezenas de mãozinhas negras
decepadas.
O Horror! Membros, separados dos corpos de
crianças nativas, para castigar seus pais rebeldes.
O Horror! O conteúdo do cesto era o resultado
de mais de duas décadas da colonização belga, perpetradas pelos homens de boa
vontade.
O Horror! Um dos maiores e mais terríveis
massacres, hoje esquecido pelos livros de história.
O Horror! Cerca de 13 milhões de mortos!
O Horror! O silêncio sepulcral de Deus quase
tão sombrio quanto o silêncio dos homens de bem, frente aos massacres em nome
civilização e do progresso.
Apelidado de “O Açougueiro do Congo”, foi como
filantropo, o bom monarca que, em socorro ao sofrimento do povo africano, empreende
uma missão civilizadora e humanitária para curar os doentes, educar os
ignorantes e alimentar os famintos do Congo, Leopoldo II assumiu um dos poucos
territórios ainda inexplorados, durante o neo-colonialismo europeu na África.
Terreno difícil, selva invencível, o Congo era
o inferno, mesmo para exploradores experimentados. No final do século XIX,
ainda evitado pelas nações ricas que investiam e lucravam com a exploração das
riquezas dos territórios vizinhos.
Ambicioso, Leopoldo II chegou ao poder como o
soberano que iria mudar o papel de seu país na história. A Bélgica havia ficado
de fora da colonização do Novo Mundo, era vista como uma nação pacífica e
próspera, mas sem grande atuação no jogo político internacional. Vencer o
inferno do Congo poderia ser a cartada definitiva para mudar o jogo. Mas a
empreitada era por demais arriscada. As chances de fracasso eram imensas e,
ainda que obtivesse sucesso, os lucros certos com as riquezas naturais levariam
tempo para cobrir as despesas da aventura.
Para evitar jogar a conta no tesouro belga, o
rei arquitetou um plano para financiar equipamentos, armas e mão de obra, sem
tirar do próprio bolso. Fundou, em seu nome e em nome de seus parentes,
diversas associações filantrópicas de fachada e, através delas, arrecadou os
fundos necessários, sob a alegação de tratar-se de uma expedição humanitária. Algo
bem parecido com o golpe de políticos, ativistas inescrupulosos e ONGs falsas
de hoje em dia. Na verdade, sua majestade tinha verdadeiro interesse era na
riqueza de marfim e extração de borracha – o potencial das riquezas minerais da
região ainda não tinha sido percebido, mas o leitor não está errado se pensou nos
“Diamantes de Sangue”, que não é nada mais do que um dos capítulos mais
recentes dessa mesma tragédia.
Os trinta anos de dominação belga no Congo,
resultou num número aproximado de 13 milhões de mortos. Portanto, quando você
pensar nos grandes genocídios da história, lembre-se também do Holocausto Negro
no Congo; quando falarem em campos de trabalhos forçados e de extermínio, pense
no estupro de mulheres negras liberados para soldados e emissários do rei e no
único caso conhecido na história de um povo e um país inteiro como propriedade
e mão de obra escrava de um individuo, o Rei Leopoldo.
Quando ler sobre a crueldade perpetrada por
grupos paramilitares, milicianos e guerrilheiros nas florestas africanas de
hoje, pense no “Manual de Dominação e Condicionamento”, elaborado pelos
alto-funcionários da coroa belga em fins do século dezenove, que incluía tortura,
desmembramento, decapitação e cabeças enfiadas em estaca, como forma de
imposição da ordem, ainda hoje usado para educar os integrantes dos grupos
citados anteriormente.
O horror, segundo
Joseph Conrad, em quadrinhos
Ainda hoje praticamente ignorado pelos livros
de história, a tragédia colonial do Congo não passou despercebida pela
literatura e acabou gerando uma das obras mais importantes de literatura
universal, através da pena mestra de Joseph Conrad, autor de O Coração das Trevas e testemunha ocular
do massacre – Conrad seguiu a carreira de marinheiro por 16 anos, experiência
que foi base para sua obra. Em um de seus últimos empregos marítimos, o autor
trabalhou para uma empresa de exploração belga, justamente conduzindo um barco
a vapor através do Rio Congo. O período de dominação de Leopoldo II.
A obra, que já ganhou duas adaptações para
cinema e pode ser encontrada em diversas traduções em nossas livrarias, acaba
de chegar às nossas prateleiras em adaptação para os quadrinhos.
Roteirizado pelo premiado dramaturgo
norte-americano, David Zane Mairowitz, com desenhos de Catherine Anyango, do Royal College of Arts of London, e
tradução para o português de Ludimila Hashimoto, no ótimo lançamento da heróica
editora Veneta.
Inspiração para o roteiro de Apocalypse Now de Francis Ford Coppola, O Coração das Trevas narra a saga do
capitão Charles Marlow e sua busca pelo misterioso senhor Kurtz. Lobo do mar e
aventureiro, Marlow se vê entediado após longo período sem trabalho. Para quem
tem em um navio seu único lar e na vastidão do mar sua única pátria, nada pior
que terra firme. Contratado por uma companhia inglesa de exploração de marfim,
Marlow assume o comando de um barco a vapor. É enviado a uma colônia africana
para, pelo rio, transportar de um posto a outro o produto extraído da selva.
Antes, no entanto, é incumbido de resgatar o senhor Kurtz, funcionário que
dirige o posto mais produtivo, localizado na parte mais alta e inóspita da
rota. A busca por Kurtz mergulha Marlow em uma jornada sombria em direção às
profundezas da selva e da alma humana.
Serviço:
Título: O Coração das
Trevas
Autores: Joseph
Conrad, David Mairovitz e Catherine Anyango
Editora Veneta
128 páginas
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