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sábado, 9 de dezembro de 2017

Uma Jornada Pelas Distopias Literárias



Admirável Mundo Hoje

Depois de anos fora de catálogo no Brasil, obra mais conhecida de Zamiatín – que teria influenciado Huxley, Orwell e Ray Bradbury – ganha não uma, mas duas novas edições.
Por César Alves

Reflexo do espanto e admiração da espécie humana diante da velocidade com que os avanços técnicos se apresentavam desde o advento da Revolução Industrial e seu impacto no modo de vida e comportamento das civilizações ocidentais – somados ao uso da tecnologia bélica e propagandística no contexto político, não só por regimes ditatoriais, mas também com grande desenvoltura por governos democráticos, para o controle de corações e mentes e demarcações de territórios –, as Distopias foram vistas durante muito tempo como gênero característico do século vinte e pareciam ter perdido a força com o suposto fim da Guerra Fria.
Não é de se admirar, no entanto, que, quando termos como pós-verdade, pós-democracia e pós-humanidade, entre outros, passam a pautar o debate político e social no que diz respeito à compreensão dos rumos da sociedade contemporânea, com direito a artigos e discussões que vão além do universo acadêmico, fazendo-se parte do vocabulário cotidiano, a chamada literatura distópica volte a despertar interesse. De livros e filmes voltados ao público adolescente, passando por séries de tevê, até novas edições dos grandes clássicos do gênero, as sombras das velhas e novas distopias pairam sobre a cultura – pop, de massa e também acadêmica – do século 21, como elemento simbólico essencial para analisar os dias que correm ou advertência para os dias que estão por vir. Prova disso foi o alto número de vendas e empréstimos nas bibliotecas da obra 1984, de George Orwell, registrado nos Estados Unidos, logo após a confirmação da vitória de Donald Trump.
Ao amigo leitor (a), este pobre escriba pede perdão pela longa introdução, que, no entanto, se faz necessária, tendo em vista que este artigo se dedica a fazer um breve passeio pelas principais Distopias literárias do século 20, aproveitando a volta de Nós – para muitos o texto inaugural do gênero distopico na ficção contemporânea –, escrita pelo russo Zamiátin que, após anos fora de catálogo, acaba de ganhar não uma, mas duas novas edições. Ambas traduzidas diretamente do russo.
Antes de entrarmos no tema, no entanto, este que vos escreve pede licença para mais um aparte para tentar descrever o conceito de Utopia. Já que, para os não familiarizados, pode ser difícil compreender sua contraparte sombria, verdadeiro tema de nosso texto.

Bem vindo a Lugar Nenhum ou Paraísos Imaginários para preencher o vazio de um suposto Paraíso Perdido – Palavra de origem grega, significando algo como “lugar que não existe” ou “lugar nenhum” – topos = lugar; u-topos = não lugar –, Utopia quase sempre se refere aos lugares imaginários representando sociedades ideais, conduzidas pela razão, direitos e deveres igualitários, tanto para seus cidadãos quanto para aqueles que os governam, conduzindo a um verdadeiro Paraíso terreno, livre da fome, da ganância, da guerra e os demais males que contaminam e apodrecem a civilização como a conhecemos. Clássicos como A República de Platão; A Cidade do Sol de Tomaso Campanella e Nova Atlantis de Francis Bacon são exemplos dos mais famosos, mas o termo remete diretamente à obra de Thomas Morus, Sobre o Melhor Estado de uma República que Existe na Nova Ilha Utopia.
Idealizadas e sonhadas por pensadores humanistas indignados com as desigualdades e injustiças da Idade Média e impulsionadas por racionalistas e humanistas a partir do Renascimento, as narrativas utópicas foram populares até meados do século dezenove e se tornaram as bases para a idealização das comunidades igualitárias propostas por pensadores como Charles Fourier, identificadas como “Socialismo Utópico” por Karl Marx.

Sobre a Necrópole da Liberdade, a Nova Ordem ergue sua Cidade - Se as Utopias representavam o sonho de um futuro dourado para a evolução de nossa espécie como sociedade, o aguardado raiar das luzes sobre o longo domínio das trevas históricas, revelando uma fé quase ingênua na inclinação dos homens para o bem, o Reinado do Terror que se seguiu à Revolução Francesa, as crueldades perpetradas pelas nações esclarecidas, massacrando os povos que prometiam salvar da selvageria, culminando em barbárie colonial e neo-colonialista, mas, principalmente, com a chegada do século vinte, que trouxe consigo duas guerras mundiais, seus genocídios sistemáticos e morte em escala industrial, representaram um choque de realidade e a confirmação de que as sombras que cobriam o coração humano eram ainda mais densas do que o pior dos pessimistas poderia imaginar.
O resultado no imaginário literário ocidental foi o surgimento da contra-utopia ou Utopia negativa, chamada corretamente Distopia. Aqui, o sonho das sociedades fraternas e igualitárias dá lugar ao pesadelo do controle estatal de sociedades formatadas e automatizadas.
Em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, o autor de As Portas da Percepção, Contraponto e A Ilha (que também cabe no gênero distopico) concebe um mundo organizado através de castas, onde as pessoas são concebidas em laboratórios, através da engenharia genética, já programadas para exercer as funções que lhe cabem e o lugar que devem ocupar dentro do sistema organizacional que rege a sociedade. Aqui o controle é exercido através de uma droga, o soma, espécie de fármaco tranqüilizante de efeito social e político que inibe pensamentos e questionamentos contrários ao Estado, bloqueando as idéias perigosas com a falsa sensação de felicidade, o que é reforçado com o incentivo, quase obrigatório, do exercício pleno do hedonismo programado. (Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley – tradução: Lino Vallandro – Globo Livros – 312 páginas)
Talvez a mais famosa das Distopias, 1984 foi escrito por George Orwell e publicado em 1948, pouco depois do término da segunda grande guerra. Fortemente influenciado pelos horrores revelados durante e ao final do conflito, em face às nuvens carregadas que se formavam no horizonte, com a inauguração da era atômica e o início das disputas entre os vitoriosos por espólios de guerra e territórios dos derrotados, que culminariam na pesada tormenta que ganharia o nome de Guerra Fria, a distopia de Orwell ganhou tanta notoriedade que termos como Big Brother e novilíngua, entre outros, passaram ao vocabulário ocidental como expressões de significado reconhecido mesmo por quem nunca leu o livro.

Descrevendo uma sociedade sob o comando do Grande Irmão – espécie de “Pai da Pátria”, cuja mão pesada educa, pune e controla, e olhos que vigiam, através de telões espalhados nos prédios, repartições, fábricas e até mesmo nos dormitórios dos cidadãos –, que comanda através de técnicas baseadas na ordem e na aniquilação do individuo, tendo como instrumentos a propaganda, o controle da mídia e da própria história, como nos mostra o personagem central, cujo trabalho burocrático consiste em pesquisar e reescrever matérias e trechos de livros para que não contradigam a versão do regime.
O autor costumava dizer que a ideia teria surgido de sua experiência e do trauma histórico causado pela ameaça fascista de Hitler e Mussolini e a maneira como os déspotas conseguiram levar adiante sua loucura e conquistar a adesão de seus compatriotas que abraçaram, com raros focos de resistência, sua insanidade. Orwell, que até o fim de seus dias considerava-se um socialista, no entanto, não limita sua crítica aos regimes de direita e reconhecia o quanto havia em sua distopia (e no próprio Grande Irmão) da União Soviética sob o comando de Stalin. Portanto, sua obra era um alerta contra os perigos dos regimes ditatoriais e sua propaganda doutrinária, independente do viés ideológico.
Ou seja, 1984 é fruto tanto de Auschwitz e do Holocausto fascista quanto o é dos Gulags e campos de trabalhos forçados da Rússia comunista de Stalin. (1984 – George Orwell – Companhia das Letras – 416 páginas)

Entretenha-nos até a morte - Não só por ser a distopia predileta deste que vos escreve, mas, principalmente, por ser aquela que mais se aproxima dos dias que correm, Fahrenheit 451 não poderia ficar de fora. Aqui não estamos falando de uma sociedade em um futuro distante controlada por um regime totalitário, mas sim de um lugar em um tempo e espaço imaginário que pode muito bem ser comparado com o nosso presente. Em Fahreinheit 451 o condicionamento social é feito através do entretenimento barato, da indústria cultural e de medicamentos.
Concebida pelo genial Ray Bradbury, o ponto principal dá obra já nos é dado no excelente título: 451 graus fahrenheit é a temperatura de combustão do papel. Num mundo onde as pessoas são condicionadas a evitar ideias que as conduzam ao questionamento de seu modo de vida e seu papel social como indivíduos, os livros foram banidos como perigoso instrumento desestabilizador social. Todos vivem sob o efeito de uma felicidade anestésica, mantida através de equipamentos audiovisuais, espécie de monitores televisivos que ocupam uma parede inteira, transmitindo novelas e shows de variedades exibidos 24 horas por dia, em tempo real, e com os quais os telespectadores podem interagir – única forma de interatividade aceitável, aliás, já que mesmo os encontros com amigos e familiares são dedicados a falar sobre a grade de programação e seu “conteúdo” –, o que é reforçado com doses diárias de um poderoso fármaco. As casas são à prova de fogo e, não havendo mais a necessidade de um corpo de bombeiros, aos antigos combatentes de incêndios foi dada uma nova missão: incinerar livros e caçar aqueles que cometem o crime de esconder bibliotecas em suas casas.
Ao contrário da maioria das tramas do gênero, em Fahreinheit 451 as bases estruturais da sociedade não foram criadas após uma hecatombe nuclear, uma guerra ou a tomada do poder por um sistema ditatorial. Como o autor deixa claro em algumas das passagens mais marcantes do livro, não se trata de uma sociedade iletrada e analfabeta. As pessoas sabem ler, mas o conhecimento da leitura serve apenas para interpretar os manuais de funcionamento dos equipamentos e gadgets que os mantém distraídos e as bulas dos remédios que garantem sua anestesia comportamental. Logo, a opção pelo conformismo e a recusa aos livros foram tomadas pelas próprias pessoas. O que é mais assustador. (Fahrenheit 451 – Ray Bradbury – Globo Livros – 215 páginas)

Se não a Distopia das Distopias, Nós, do russo Ievgenin Zamiatín, merece lugar de destaque como a Distopia que teria inspirado todas as tramas distópicas que a seguiram. Ou, pelo menos, teria tido forte influência sobre as obras mais relevantes, dentre aquelas que ousaram imaginar o perigo de Utopias negativas, como um alerta para o que pode nos aguardar na esquina de um futuro não muito distante. É inegável sua influência sobre as obras comentadas anteriormente e outras A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, que só não foi descrita aqui por ter sido alvo de outro texto, assinado pelo amigo aqui, que pode ser lido no link: http://orebitedoverbo.blogspot.com.br/2014/01/laranja-mecanica-distopia-horrorshow-de.html
Narrado em primeira pessoa na forma de um diário por D-503, operário que trabalha na construção de uma espaçonave projetada por engenheiros do governo para a missão de espalhar para o resto do universo o evangelho do Estado Único, Nós descreve uma sociedade controlada através da eliminação do conceito de liberdade e da noção de indivíduo, além da criminalização da imaginação.
Como o próprio nome do personagem deixa claro, na realidade imaginada por Zamiatin o conceito de indivíduo foi completamente apagado, em prol de uma existência coletiva. Aqui, as pessoas são identificadas por números e letras, como setores de uma linha de montagem ou engrenagens de um motor. A população mundial foi reduzida para 10 milhões de habitantes que vivem em casas padronizadas, com paredes de vidros transparentes da cor verde, de maneira a coibir desvios comportamentais ou qualquer ato fora do padrão preestabelecido.
Com suas vidas expostas, todos vigiam e são vigiados, tornando-se também responsáveis pela manutenção da existência de paz e felicidade, alcançadas depois da revolução que eliminou e criminalizou a liberdade. Um preço pequeno, segundo eles, a ser pago pela segurança e felicidade perpétuas, já que a liberdade engendra a violência e alimenta pensamentos inadequados, que podem envenenar a sociedade com o mal da solidão, da tristeza e – ainda mais perigoso – da imaginação.
Para compensar, todos tem direito a uma hora de isolamento para momentos de intimidades sexuais, desde que na data, horário e com o parceiro autorizados, conforme consta no cartão rosa, emitido por burocratas do governos e sem o qual qualquer relação íntima ou ato de socialização clandestina constitui crime mortal. D-503 parece satisfeito com sua condição, chegando a exaltar as benesses do Estado Único, mas é justamente depois de um destes encontros que acontece a grande reviravolta e suas certezas são abaladas. O tremor ideológico e emocional é causado por I-330, uma mulher misteriosa, com hábitos e idéias que, a princípio, D-503 condena, embora não consiga se afastar dela. Logo o personagem é apresentado a um mundo de emoções e sentimentos como o sonho, a fantasia e o amor, proibidos e condenáveis com a morte.
Nascido em Moscou, em 1884, Ievguenin Zamiátin formou-se em engenharia naval e trabalhou como supervisor na construção de navios russos. Apoiou Revolução de Outubro de 1917, mesmo ano em que passa a dedicar-se à literatura em tempo integral. Ministra aulas na recém-fundada Casa das Artes de Petrogrado e é eleito presidente da União Pan-Russa de Escritores. Em 1919 é preso por suspeita de associação ao partido dos Socialistas Revolucionários. Nos anos seguintes termina a redação de Nós, sua obra mais conhecida, mas o romance não recebe autorização de publicação no país. O livro acaba sendo publicado numa tradução para o inglês, nos EUA, em 1924 – na Rússia, a obra só seria publicada em 1988.
 O livro já ganhou diversas edições no Brasil – uma delas com o título de O Muro Verde –, mas estava fora de catálogo há anos. O que dá ainda mais motivos para celebrar a chegada de duas novas traduções em português. Ambas feitas diretamente do russo.

A edição da Aleph, traduzida diretamente do russo por Gabriela Soares chama atenção por seu belo acabamento gráfico e por conter extras de respeito, como uma carta do próprio autor a Stalin, na qual solicitava ao ditador autorização para deixar seu país, já que sua permanência ali não fazia sentido, uma vez que seus livros não eram publicados e não podia trabalhar; e também um artigo assinado por George Orwell no qual o autor de A Revolução dos Bichos estabelece conexões entre a obra de Zamiatin e o Admirável Mundo Novo de Huxley – concluindo que o primeiro, certamente, influenciou o segundo, o que também pode ser dito a respeito de 1984, publicado anos depois. A edição da Editora 34 faz parte da coleção Narrativas da Revolução (que será alvo de um próximo artigo aqui). Com tradução de Francisco Araújo, também traz o excelente prefácio de Cássio de Oliveira que ajuda o leitor a entender a importância da obra no contexto em que foi escrita e seu valor ainda para nossos dias. Embora se trate do mesmo texto, ambas as edições possuem qualidades e complementos que as distinguem e – em caso de dúvida e condições financeiras – recomendo aos amigos ficarem com as duas.


Serviço:

Nós
Autor: Ievguêni Zamiátin

Tradução: Francisco de Araújo
Editora 34
288 páginas

Tradução: Gabriela Soares
Editora Aleph
344 páginas

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Gertrude Stein - Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários



Brincando com tia Gertrude Stein

Edição brasileira de Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários revela uma faceta pouco conhecida da intelectual que batizou a Lost Generation, a de autora de textos direcionados ao público infantil.
Por César Alves

Zed era uma garotinha francesa que queria uma zebra como presente de aniversário. Para que o animal se sentisse confortável e o seguisse até em casa, seria preciso que o pai de Zed pintasse o mundo inteiro com listras. O conto está na letra “Z” do abecedário de brincadeiras e jogos concebido por Gertrude Stein em seu livro Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários que a editora Iluminuras disponibiliza nas livrarias brasileiras, com tradução de Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin.
Escrito em 1940, o livro seria a segunda investida da autora no universo infantil, seguindo o relativo sucesso de The World is Round (O Mundo é Redondo), publicado no ano anterior. Seus editores, no entanto, se recusaram a publicá-lo alegando que a obra não era exatamente apropriada para os pequenos. Stein não se deu por vencida e, após oferecê-lo a diversas editoras, chegou a engatar o projeto em 1942. Problemas com os ilustradores e, principalmente, as dificuldades com material e pessoal enfrentadas pelo mercado editorial durante a II Guerra fizeram com que a obra não chegasse a ser publicada, o que só aconteceu postumamente quinze anos depois pela Yale University Press.
Trata-se de um alfabeto – cada letra ligada às iniciais dos nomes das personagens ou relacionada com as datas de seus aniversários – permeado por contos que fogem do formato tradicional de “começo, meio e fim”, privilegiando o que a autora chamava de “presente contínuo”. Se as histórias, poemas e anedotas aqui reunidas muitas vezes beiram o delicioso nonsense, a autora não se acanha em tocar em temas delicados como a morte e a guerra, por exemplo.
Nome de peso entre os artistas, escritores, poetas e intelectuais norte-americanos que se mudaram para Paris no período entre guerras e batizados por ela como a “Geração Perdida” – que contava com nomes como Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, entre outros –, Stein teve participação efetiva na efervescência modernista parisiense, travando uma estreita relação com Picasso e Apollinaire, por exemplo, e acompanhando de perto a construção de movimentos de vanguarda como o Cubismo. Vem daí sua vocação para os experimentos de linguagem que fizeram de sua obra uma das mais relevantes do período e que aqui são explorados, a partir de colagens sonoras, de maneira a tornar a experiência da leitura num convite ao jogo e brincadeiras de desconstrução da linguagem.
Já foi dito que a leitura da obra de Gertrude Stein representa um verdadeiro desafio lingüístico. Aqui, o desafio também ganha ares de aventura e merece ser aceito por crianças e adultos.
Em tempo. Antes tarde do que nunca, a obra de Gertrude Stein vem ganhando as livrarias brasileiras. Recentemente, a mesma Iluminuras que está lançando a obra tema deste texto também publicou O que você está olhando – Teatro (1913-1920), reunindo 18 peças de sua autoria. A extinta Cosac & Naify publicou há alguns anos sua tradução de Autobiografia de Alice B. Toklas e, mais recentemente, a editora Âyné publicou Picasso. Esperemos que mais coisas venham por ai...

Serviço:
Título: Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários
Autor: Gertrude Stein
Tradução: Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin
Editora: Iluminuras
144 páginas





segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A Jornada do Escritor - Christopher Vogler (Livro)




A Jornada Heroica do Autor

Depois de anos fora de catálogo, A Jornada do Escritor, de Christopher Vogler, volta às livrarias brasileiras em nova edição da editora Aleph.
Por César Alves

Em conversas com amigos já disse mais de uma vez que a única regra válida para a escrita criativa é a de regras existem para ser quebradas. Não se aprende a ser criativo; não se ensina a ser escritor, o artista forma-se e, formando-se, desenvolve, inventa e reinventa suas próprias formas e linguagens.
Mas isso não significa que a arte de contar histórias não possui suas próprias formas inevitáveis e que o bom contador de histórias deve ignorá-las. Conhecê-las bem, aliás, mesmo que para subvertê-las, como é do feitio de escritores realmente bons, é quase uma obrigação. Como defende Christopher Vogler forma não significa fórmula e é às formas que compõe uma grande história a que se dedica em seu A Jornada do Escritor, que após anos longe de nossas prateleiras ganha nova edição em português pela editora Aleph.
Desde que o herói Gilgamesh empreendeu sua epopéia no poema épico da Mesopotâmia, registrados em escrita cuneiforme em placas no século sétimo antes de Cristo, até a última aventura de Batman ganhar as telas dos cinemas e faturar milhões em bilheteria; passando pelo bravo Odisseu e sua argúcia para vencer as armadilhas de Posseidom em sua jornada de volta a Ítaca, depois de vencer praticamente sozinho a guerra contra os troianos, com a brilhante estratégia do cavalo de madeira, certas características na narrativa de uma aventura continuam as mesmas.
Tais características e passagens, denominadas A Jornada do Herói, foram tema recorrente na obra de Joseph Campbell, especialista em mitologia e religião comparada norte-americano. Em sua obra O Herói de Mil Faces, Campbell disseca passagens recorrentes na trajetória heróica dos mitos ancestrais, tanto na mitologia clássica, quanto na bíblica e cristã, de Homéro a Shakespeare, tais como O Chamado à Aventura e A Descida aos Infernos, por exemplo. Foi justamente inspirado em O Herói de Mil Faces, de Campbell, que Vogler desenvolveu seu A Jornada do Escritor.
O livro apropria-se dos tópicos abordado pelo genial mitólogo norte-americano em seus estudos obrigatório, usando uma linguagem atual e acessível, fazendo uso não só dos exemplos mitológicos clássicos de Campbell como também de obras contemporâneas como a trilogia Star Wars, de George Lucas, entre outras, por exemplo.
Além de Campbell, Vogler baseou-se nos estudos de Carl G. Jung sobre arquétipos e Inconsciente Coletivo para estruturar seu livro que é considerado uma das obras mais importantes sobre estrutura literária hoje, utilizada como guia por escritores de roteiros cinematográficos, peças de teatro e literatura.
Longe de ter a intenção de estabelecer fórmulas – o próprio autor sugere aos seus leitores que as desconstrua, afinal, a simples leitura do livro não faz de ninguém um escritor –, a obra oferece uma série de dicas e observações importantes para se compreender o processo de construção de uma narrativa, como amarrar bem uma história e, através de uma leitura atenta, ajudar na formação de escritores como escrever com maestria.
Consultor de grandes estúdios, o autor colaborou com filmes de grande sucesso como O Rei Leão, Clube da Luta e Cisne Negro, entre outros. Leitura indicada tanto para estudantes e profissionais das mais diversas áreas da escrita criativa, quanto para leigos.

Serviço:
Título: A Jornada do Escritor
Autor: Christopher Vogler
Editora: Aleph
488 páginas





segunda-feira, 30 de março de 2015

Anatole France - A Rebelião dos Anjos



Para Acabar com a Tirania de Deus

Considerada por muitos uma obra-prima da literatura francesa e universal, A Rebelião dos Anjos, último livro do Prêmio Nobel de Literatura de 1921, Anatole France, explora o inconformismo de anjos rebelados para descrever a condição conflituosa da sociedade ocidental no início do século XX e criticar o fanatismo religioso e a intolerância.
Por César Alves

Muito antes de Wim Wenders dar voz aos conflitos existenciais e sentimentos dos seres celestiais que, como emissários do Deus único das religiões monoteístas, protegem nossos espíritos, virtudes e, desde antes de existirmos, o Paraíso Perdido por Adão e Eva; ou nos seduzem, corrompem e negociam nossas almas, quando rebelados e caídos, Anatole France (1844-1924) compôs uma das mais belas e impressionantes tramas protagonizadas por tais criaturas, em A Rebelião dos Anjos.
Título que encerra a brilhante obra do autor de O Crime de Silvestre Bonnard, Thais, O Lírio Vermelho e o Poço de Santa Clara, A Rebelião dos Anjos faz parte daquela lista de obras que os leitores que ainda não leram precisam ler, antes da morte e, aqueles que já tiveram a oportunidade de um mergulho por suas páginas, nunca devem perder a chance de uma nova leitura – quantas vezes forem possíveis, até o final de seus dias. Parte do catálogo da editora Axis Mundi, a tradução de Merle Scoss, reeditada recentemente, oferece a imperdível chance de imersão nas águas – tão turbulentas quanto profundas, em sua fluidez narrativa, lírica, dramática e filosófica – aos novos marujos e escolados lobos do mar literários.
Mas não se engane amigo leitor, o livro vai muito além da uma fábula moral religiosa ou subversão imoral da mitologia cristã e demais religiões monoteístas, que um resumo breve pode sugerir.
Às vezes descrita como alegoria política ou compêndio filosófico e social realista, sob o disfarce do Maravilhoso e Fantástico, a trama narrada por France, apropria-se da imaginação e realidade, do cômico e trágico e do profano e sagrado para descrever seu tempo, com as cores dos mitos de criação ancestrais e atemporais; e o que há de mais demasiadamente humano, através de seres divinos mitológicos, com afrescos cristãos e gnósticos.
Protagonizado por Maurice, jovem, pertencente à elite burguesa, boêmio, bon-vivant e libertino; e Arcade, um anjo encarregado de protegê-lo, aconselhá-lo e guiá-lo, como seu anjo da guarda, em direção ao caminho da virtuosidade cristã, é na curiosidade do último, em relação às descobertas mundana, que a trama toma forma. 
Influenciado pela leitura de grandes pensadores da ciência, filosofia, matemática e literatura – lidos na vasta biblioteca pertencente à família de seu protegido, enquanto este se diverte com mulheres casadas, empregadas bonitas e ingênuas, jogatina e bebedeira, certa noite – Arcade se apresenta a Maurice para informá-lo de que abdica de sua função e, vestindo as calças de um suicida, sai pelo mundo em busca de outros anjos caídos como ele para arquitetar um segundo levante dos anjos, contra a ditadura de Deus.
É na jornada de Arcade, por entre ruas estreitas, povoadas por miseráveis e tavernas violentas e mal iluminadas, freqüentadas por almas perdidas e ébrias, ladrões, vagabundos, comunistas e anarquistas, que arquitetam levantes e atentados contra a burguesia e os representantes do estado para promover a desordem; promover a vingança popular definitiva que pouco avança além das mesas dos bares e o banho de sangue nas ruas de amanhã, termina por ser adiado ou substituído por um banho de vômito de inconformistas bêbados, sobre o assoalho da bodega, onde poucas horas antes, como em todas as outras noites, recitavam seus manifestos, convocavam o povo às armas, tendo como público, nada além de um punhado de sem-tetos maltrapilhos e uma multidão de ratos, cães e gatos sem dono, mais interessados em recolher sobras e migalhas.
Que o leitor não se deixe levar por um resumo breve, devido a natureza de alguns de seus personagens. Em Anatole France, a história de um anjo da guarda que desiste de seu protegido e a busca do último para reencontrá-lo é muito mais do que uma fábula moral ou provocação imoral anticristã, como pode sugerir a alguns.
Escrito em meio as convulsões ideológicas, sociais e culturais que marcam os primeiros anos de um século explosivo. Avanços tecnológicos e descobertas científicas, em contraste com um abismo de desigualdade, separando uma multidão de miseráveis que passavam fome nas ruas ou definhavam nas fábricas em jornadas diárias desumanas por um salário dos mais injustos de um punhado de poderosos glutões financeiros e políticos; acirramento do diálogo entre os representantes das classes prejudicadas com os representantes de industriais gananciosos, proprietários das fábricas e donos não eleitos do poder, como compradores de um Estado corrupto.
Há muito do autor, da sociedade e do contexto histórico. Exemplos do que dito, existem vários, mas fico no meu predileto, o anjo caído Sophar, que no mundo dos homens usa a alcunha de Barão Max Everdingen. Responsável por guardar o ouro do soberano celeste, devido a seu talento para administrar tesouros e sua paixão pelo brilho dos minerais preciosos, até descobrir seu verdadeiro Paraíso na economia dos homens, quando a França, “terra abençoada da Economia e do Crédito”, desperta sua curiosidade. Seduzido, o anjo rouba os cofres que deveria guardar e foge para o mundo dos homens, onde se torna um capitalista respeitado e poderoso. Ao contrário de seus semelhantes, ele não apóia a revolução, mas também não está do lado dos que buscam a manutenção do status quo. Entre Deus e o Diabo, prefere o dinheiro e, como todo bom capitalista, aproveita a tensão para fazer ficar mais rico, como fornecedor de armas para ambos os lados.
Obra madura de um autor já reconhecido e experimentado, A Rebelião dos Anjos sintetiza, em cada capítulo, os temas e idéias que marcaram o pensamento de Anatole France por toda a sua vida; o desprezo por toda a forma de agrilhoar as liberdades, através do fanatismo religioso, ideologias políticas impostas, através de leis arbitrárias ou pelo cerceamento da livre expressão da censura de estado e amordaçamento dos contrários. Como diz uma de suas citações mais famosas: “Há que se duvidar sempre, mesmo da dúvida”.
Frase nada descabida, aliás, principalmente, em se tratando de A Rebelião dos Anjos. Assim como “aqueles que combatem monstros correm o risco de tornarem-se monstros também”, é no sonho de um dos personagens que a revelação se mostra aos rebelados:  o risco dos que se propõe a derrubar o Demiurgo é de obter sucesso em sua empreitada e, sendo assim, ver-se obrigado a se fazer Demiurgo.


Serviço:
Título: A Rebelião dos Anjos
Autor: Anatole France
Editora: Axis Mundi

288 páginas

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Cinco Relacionamentos Abertos que Revolucionaram as Artes (Livro)



A Vida Amorosa dos Artistas

Cinco casais, formados por artistas consagrados e notórios em suas épocas, cujas relações abertas desafiaram as convenções matrimoniais vigentes e revolucionaram as artes e comportamento, são estudados em livro.
Por César Alves


Lou-Andreas Salomé, não dava muito crédito ao talento de seu jovem amante e aspirante a poeta, quando – aos 36 anos, casada e com o consentimento do marido – deu início ao caso com o ainda desconhecido e muito mais jovem, Rainer Maria Rilke. Na época a bela, inteligente e libertária Salomé já havia sido a terceira parte de uma tríade sexual e amorosa, cujos outros dois amantes célebres eram o filósofo Friedrich Nietzsche e Paul Reé e escandalizava a sociedade de sua época com seus escritos e idéias de mulher a frente de seu tempo – rezam as más línguas que o filósofo do martelo teria saído da relação aos pedaços, Salomé foi a Lilith que destroçou o coração do “homem que matou Deus”.
Mais madura e com uma carreira e trajetória definida, mesmo Salomé, talvez não pudesse imaginar que aquele relacionamento iria ultrapassar o ardor da alcova, evoluindo para uma parceria amorosa e criativa, num matrimônio que refletiria nas obras de ambos. Um casamento que desafiaria as convenções. Artisticamente, íntimo e limitado a cumplicidade do casal, e, do ponto de vista sexual, aberto a diversos parceiros, com o conhecimento e consentimento de ambos.
Esta e outras histórias de cinco casais avant-la-lettré, todos formados por artistas e intelectuais respeitados, cujos relacionamentos desafiaram as convenções e puseram em dúvida a sacralidade do casamento, fazem parte do fascinante e delicioso Amores Modernos, livro de Daniel Bullen que acaba de chegar às livrarias brasileiras pela editora Seoman.

A obra estuda as relações de Lou Salomé e Rainer Rilke; Georgia O´Kieffe e Alfred Ztieglitz; Frida Khalo e Digo Rivera; Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir e Henry Miller e Anais Nin, analisando o reflexo que a maneira por eles escolhida para conduzir suas vidas, tanto afetiva, quanto íntima, teve sobre suas obras e até que ponto tais artistas e seus modos de vida estavam à frente de seu tempo e em sintonia com o comportamento amoroso de casais contemporâneos – principalmente nos casos de Sartre e Beauvoir e Henry Miller e Anais Nin, cujas relações foram inspiração para muitos dos casais surgidos pós-Revolução Sexual e Contracultura.
O autor diz que o ponto de partida para seu estudo tem origem na diversidade de acordos, cumplicidades, limites e formas estabelecidas por casais contemporâneos para conduzir suas relações amorosas que atualmente, mais do que nunca, se distancia do formato familiar tradicional do matrimônio civil e religioso, sob as bênçãos dos pais de ambos os cônjuges condenados a amarem-se até a morte, “na saúde e na doença; na alegria e na tristeza”.
Bom, nos dias em que não é mais surpresa para ninguém o declínio do casamento convencional, como instituição sagrada. O próprio autor revela que o livro teve início mais por uma questão pessoal do que por motivação acadêmica. Tentando entender seu próprio relacionamento, a princípio, teria se voltado para a vida destes artistas mais por uma questão pessoal do que acadêmica, confessa o autor. Foi quando percebeu que o material biográfico oficial sobre tais nomes, no que se referia a seus relacionamentos, perdia-se em clichês como o do infant terrible mulherengo e a esposa que, incapaz de lidar com os relacionamentos extraconjugais de seu homem, busca em outras aventuras uma compensação; ou a mesma história do ponto de vista feminino, substituindo o infant terrible por uma femme fatale, no caso. Quando muito, recorriam a justificativas como “eram artistas, cujos modos de vida excêntricos eram reflexos de suas condições”.

O autor preferiu explorar o quanto a maneira como tais casais levaram seus relacionamentos teve impacto na concepção da obra de ambas as partes. Daí a escolha desses nomes; todos eles, casais em que ambos eram artistas consagrados, mantiveram seus relacionamentos abertos e, embora tenham convivido com as conseqüências e desentendimentos, comuns em qualquer forma de relacionamentos – principalmente, quando abertos –, mantiveram-se duradouros.
Apesar do título escolhido para a tradução brasileira não dizer muita coisa – teria sido melhor traduzir literalmente o título original, The Love Lives of The Artists –, Amores Modernos, no mínimo, contribui com as biografias pessoais e criativas de seus personagens, através da perspectiva de seus relacionamentos.

Serviço:
Título: Amores Modernos.
Autor: Daniel Bullen.
Editora: Seoman.

304 páginas.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Iluminuras - Arthur Rimbaud




O Desregramento dos Sentidos de Rimbaud

Depois de quase duas décadas fora de catálogo, obra testamento de um dos maiores poetas franceses volta às livrarias brasileiras.
Por César Alves

Dentre as personalidades inaugurais da poesia moderna, Arthur Rimbaud é o tipo de artista que, embora possa ser considerado o primeiro de muitos, possui obra e biografia únicas. Como o próprio Rimbaud previra – arroubos provocativos de arrogância juvenil, para alguns; momento visionário e exposição corajosa de alguém capaz de enxergar adiante, típica do artista seguro de seu talento, originalidade e, portanto, da longevidade de sua obra, para muitos – sua poesia, mais que divisora de águas, fez-se um marco e abriu as portas para a invasão bárbara, promovida por outros, dotados de seu mesmo espírito anárquico e experimental, que o seguiram e transformaram os conceitos estéticos e padrões artísticos, até então, estabelecidos.
Direta ou indiretamente, Rimbaud influenciou quase tudo o que aconteceu de relevante na historia da cultura e arte ocidental posterior a ele. Dos Surrealistas aos Beatniks, passando pelas vanguardas artísticas e movimentos modernistas europeus e americanos; da Contracultura aos patet... – ooops! – “poetas” do rock brasileiro. Tudo no curto período de sua vida que vai de seus 17 aos 21 anos de idade, tornando quase impossível evitar o clichê comumente associado a seu nome, Infant Terrible.
Uma trajetória marcada por criatividade intensa, ousadia – tanto poética, quanto comportamental – e boemia, que, para muitos, encontra em Iluminuras (Gravuras Coloridas) seu testamento poético. O livro, cuja tradução brasileira, feita pelos poetas Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Mendonça, havia desaparecido das livrarias ha quase duas décadas, acaba de ser relançado, em edição revista da Editora Iluminuras (mesma casa editorial das edições anteriores).

Escrito entre 1873 e 1875, durante suas passagens por Londres, Paris, Alemanha, Holanda e Dinamarca, em meio aos momentos de paixão e fúria que marcaram seu conturbado relacionamento com o poeta Paul Verlaine e pouco tempo antes de seu inexplicável rompimento com a literatura, Iluminuras, ao lado de seu livro anterior Uma Temporada no Inferno – título que o precede, traduzido no Brasil por Ledo Ivo –, se inscreve entre as grandes e fundamentais obras da poesia moderna.
Considerar Iluminuras como obra-testamento da poesia de Rimbaud não é mera característica criada por especialistas e críticos para catalogar a importância de um título específico, dentro da obra de determinado artista.
Se o ímpeto experimental e a proposta de promover uma rebelião contra as formas estéticas e dogmas temáticos e estilísticos que pontuavam a produção de sua época, já estavam visíveis em sua obra desde que o autor de O Barco Bêbado chamou a atenção do Panteão Literário francês, sob as bênçãos de Victor Hugo para aquele jovem poeta de 17 anos, é aqui que sua proposta de uma “alquimia verbal” se confirma. Aqui, “o poeta se faz vidente por um longo, imenso e irracional desregramento de todos os sentidos”, em instantâneos caleidoscópicos de sonhos, alegorias e experimentos líricos, harmônicos e textuais.
Como este que vos escreve não passa de um mero admirador do gênero, está longe de ser um especialista ou crítico de poesia e, principalmente, para evitar exageros verborrágicos e frases pretensiosas, como as que fecham o parágrafo anterior, paro por aqui com minha análise da obra e sugiro aos colegas a leitura obrigatória do livro.
Bilíngue, a nova edição de Iluminuras traz também um ensaio crítico, assinado pelos tradutores.
Nascido em Charleville, em 1854, Jean-Nicolas Arthur Rimbaud escreveu cerca de vinte livros de poesia antes dos 21 anos, até abandonar de vez o ofício da escrita. Depois disso, empreendeu uma série de jornadas clandestinas, chegando a se alistar no Exército Colonial Holandês, simplesmente para poder entrar livremente em Java (Indonésia). Tais viagens o levaram ao continente africano, onde atuou como traficante de armas. Última “profissão” que exerceu, antes de sua morte, aos 37 anos, quando retornou a Paris, depois de uma gangrena que o levou a amputar uma das pernas.

Serviço:
Título: Iluminuras
Tradução, notas e ensaio: Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça
Editora: Iluminuras
192 páginas






quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Medo - Histórias de Terror



Antologia do Medo

Contos e algumas das mais assustadoras lendas de terror compiladas em livro que reúne Edgar Allan Poe, Théophile Gautier, Guy de Maupassant, Alexandre Dumas, Émile Zola e outros.
por César Alves


Um dos mais antigos de nossos instintos primordiais, o medo talvez esteja na raiz de nosso sucesso evolutivo e seja uma das razões de nossa espécie ainda estar por aqui. Deve estar ao lado da fome entre os motivos que nos levaram a desenvolver instrumentos de caça e defesa, impulsionando assim nossa ascensão na cadeia alimentar e reduzindo também o risco de sermos devorados vivos por feras. Afugentar as mesmas feras e iluminar a noite, reduzindo assim o perigo de ser surpreendido na escuridão por um grande predador, talvez tenha tido no medo, talvez, antes do desejo de aquecer nossos corpos e alimentos, o ponto de partida para aprendermos nos relacionar com o fogo.
Tamanha importância, talvez explique o que nos move a evitar situações de risco real a nossas vidas, mas, ao mesmo tempo, sermos atraídos pela sensação, mesmo que controlada e por um período de tempo determinado e sob controle, ao ponto de pagarmos para sermos amedrontados em salas de cinema, casas assombradas de parques de diversão e, principalmente, contos e histórias de horror.
Teorias evolutivas à parte – há gente muito mais indicada mais indicada para falar sobre o assunto e nem é este o tema deste artigo –, apreciamos causos de fantasmas, demônios, criaturas sobrenaturais e outras histórias horripilantes, desde o início da civilização, tendo sido contadas e recontadas em volta da fogueira por griots (contadores de histórias cuja tradição remete dos primeiros agrupamentos humanos aos dias de hoje), avôs e avós, à luz de vela quando falta energia elétrica, através dos séculos, tendo sobrevivido, através da narrativa oral, ao passar dos tempos.
Se hoje uma parcela milionária da indústria do entretenimento é movida por nossos piores medos, é sempre bom lembrar que, muito antes de surgir o cinema e ganhar rostos no imaginário pop com as interpretações de Boris Karloff, Peter Lorre, Bela Lugosi, Lon Chaney, Christopher Lee e Vincent Price, entre outros, foram os escritores os primeiros a perceber no filão uma fonte inesgotável de inspiração e leais seguidores.
De consagrados expoentes do gênero, como Edgar Allan Poe, Ambrose Bierce, H. P. Lovecraft, E.T.A. Hoffmann e Bram Stoker – entre os mais notórios –, a Émile Zola, Alexandre Dumas, Gautier e outros; praticamente, todos os grandes nomes da literatura, em um ou mais momentos de sua carreira, flertaram com o segmento. Um bom exemplo é Medo – Histórias de Terror, coletânea que reúne contos e histórias de terror que a Companhia das Letras acaba de lançar.
Dividido em Histórias de Fantasmas, Aparições e Espectros; Histórias de Diabos; Histórias de Cemitérios; Histórias de Animais e Histórias do Reino dos Mortos; o livro reúne contos de autores consagrados, como alguns dos citados acima, com lendas e histórias populares, sem autor conhecido, narradas a gerações, através da tradição oral. Além de oferecer um apanhado dos diversos tipos de narrativas de terror, uma leitura mais atenta pode revelar como se deu o processo evolutivo da narrativa fantástica dos mitos ancestrais do início das civilizações ao terror moderno.
Aqui estão clássicos conhecidos, como o brilhante tratado sobre a culpa, O Gato Preto e o assustador A Máscara da Morte Rubra, ambos do imaginário de Poe; o antológico A Mão de Maupassant, a obra também contém textos menos difundidos dos poetas Théophile Gautier, O Pé da Múmia e Dois atores para um Papel; e Gerard Nerval – o brilhante A Ceia dos Enforcados fecha o livro – ao lado das mais assustadoras lendas populares sobre assombrações, criaturas sobrenaturais, descidas ao Inferno, pactos diabólicos, o medo da morte e, talvez o maior dos terrores, o de ser enterrado vivo.
É justamente a terrível possibilidade de ser dado como morto e, ainda mais sustador, estar consciente de sua situação, que conduz um dos destaques do livro, o conto A Morte de Ollivier Becaille. Tão assustador quanto é bonito, o conto é fruto da mente de Émile Zola e está mais para suspense psicológico do que para sobrenatural.
Narrado em primeira pessoa por um homem que acaba de falecer – o Olivier Becaille do título –, a narrativa acompanha o desespero do personagem, desde a descoberta de sua condição pela esposa, passando pela confirmação do óbito, a chegada do caixão, o velório e sepultamento, nos quais o personagem descreve tudo que se passa em sua volta e, ao mesmo tempo, reflete sobre sua vida até aquele momento. Aos leitores cabe descobrir se o narrador é um espírito ou vítima de catalepsia e é justamente o suspense da dúvida o que nos prende no início.
A maestria narrativa de Zola nos arrasta para dentro do personagem, provando da tensão e desespero que o afligem e vai além, fazendo uso da situação surreal de seu personagem apenas como pano de fundo para uma profunda análise da condição humana.


Serviço:
Título: Medo – Histórias de Terror
Autor: Vários
Organização: Héléne Montardre
Editora: Companhia das Letras
240 páginas



segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O Evangelho, Segundo o Estranho Misterioso Mark Twain



O Evangelho, segundo o Estranho Misterioso Mark Twain
Por César Alves

Era com admiração e entusiasmo que Samuel Langhorn Clemens assistia o surgimento das maravilhas científicas e tecnológicas que, em meados do século dezenove, imprimiam às previsões sobre o futuro da humanidade a marca da grandeza. Signatário do manifesto contra as atrocidades praticadas pelo soberano da Áustria, Leopoldo, e o domínio de seu país no território do Congo, durante o neocolonialismo europeu no continente africano, Clemens não se dobrava diante das injustiças praticadas pela mesma espécie, quando se mostrava indigna do destino grandioso que tais invenções pareciam descortinar.
Amigo pessoal de Nikola Tesla, Clemens sonhava com o potencial para o bem da humanidade que os experimentos com a eletricidade realizados pelo colega e testemunhados por ele, mas não deixava de ver com desconfiança o verdadeiro uso que seria feito das novas tecnologia, diante da ganância humana, nas mãos erradas.

Era um humanista, mas um humanista descrente da vocação do homem para a prática do humanismo e do bem comum. Autor de clássicos incontestáveis da literatura universal como As Aventuras de Tom Sawyer e Hunckleberry Finn, Clemens ficou famoso como Mark Twain, mas é em seus escritos menos conhecidos – a maioria, datada de seus últimos anos de vida e publicados de forma póstuma – que tal característica é mais evidente.
Exemplo e também o predileto deste que vos escreve é O Estranho Misterioso. Foi o livro que despertou meu interesse pelo autor, quando costumava desprezar autores indicados por pessoas mais velhas e desconfiar de livros que meus professores gostavam, por volta dos dezessete anos, li pela primeira vez.
Aqui você não encontrará o satirista notório e as tramas juvenis que fizeram a fama do autor. Ambientado em uma pacata aldeia da Idade Média, a trama gira em torno de um garoto e uma estranha criança que aparece de forma misteriosa e muda completamente a vida dos habitantes do lugar. Capaz de prever o futuro e operar milagres, como é do feitio dos anjos, seu nome é Satã e é em suas falas que se encontram alguns dos melhores momentos da narrativa, como por exemplo: “(...) Deus não existe, nenhum universo, nenhuma raça humana, não há vida terrena, nem céu, nem inferno. É tudo um sonho, um sonho grotesco e tolo Nada existe, a não ser você . E você é mais um pensamento, um pensamento vadio, um pensamento inútil, um pensamento andarilho, vagando abandonado entre as eternidades vazias!”

Trata-se uma das histórias mais densas e filosóficas de Twain e revela muito sobre o estado psicológico e emocional do autor em seus últimos anos. Fora de catálogo, ainda deve ser possível encontrar exemplares da tradução brasileira que conheço, da editora Axis Mundi, em alguns sebos e livrarias de usados.
Como testemunha ocular e protagonista da história do Gênese, o Anjo Caído também aparece, como orientador dos ingênuos Adão e Eva, em alguns dos melhores momentos dos textos que compõem este recente lançamento da editora Hedra, Diários de Adão e Eva.
Carregado de humor e menos denso do que o primeiro título, Diários de Adão e Eva é apresentado como relatos íntimos e pessoais do Primeiro Casal Bíblico, da expulsão do Éden aos problemas com os filhos, Caím e Abel.
Apesar da carga polêmica que os personagens que protagonizam a narrativa possuem, é preciso ler o livro como uma análise do comportamento humano, principalmente o relacionamento amoroso e conjugal, e não como uma obra religiosa.
Ambas as obras ainda muito atuais, oferecem-nos uma faceta menos conhecida de Mark Twain.

Serviço:
Autor: Mark Twain
Título: Diários de Adão e Eva
Editora: Hedra
140 páginas

Título: O Estranho Misterioso
Editora: Axis Mundi
214 páginas



sexta-feira, 28 de novembro de 2014

20 Poemas Para Ler no Bonde - Olivério Girondo



A Poesia Passeia de Bonde
Por César Alves

20 Poemas para Ler no Bonde, livro de estréia de Olivério Girondo, é finalmente publicado no Brasil, em edição bilíngüe e ilustrado com fotos de Horacio Copolla.


O poeta tem fome de inspiração, seus olhos devoram a realidade que mastiga à dentadas, engolindo-a num bolo digestivo de imaginário, que digere em criatividade e regurgita em verso e prosa. O viajante tem fome de estrada, seus pés devoram milhas percorridas, engolem paisagens, digerem experiências e regurgita uma mistura da necessidade irresistível de trilhar novos caminhos com a saudade de lugares e pessoas para trás deixados que, de tão intensa, só perde para o imenso desejo de seguir viagem.
Com o perdão do filosofar barato que introduz o texto, caro leitor, é como um amálgama do artista com o viajante que os 20 Poemas Para Ler no Bonde, de Olivério Girondo, nos encantam.
Lançado pela Editora 34, a tradução de Fabrício Corsaletti e Samuel Titan Jr corrige uma das muitas lacunas existentes nas prateleiras de nossas bibliotecas e livrarias de edições nacionais de títulos e autores importantes da literatura produzida na América Latina. Em se tratando de expoentes das vanguardas, então – como é o caso de Olivério Girondo –, são tantos buracos que beiram se tornar um imenso vácuo.

Expoente máximo do Modernismo argentino, Olivério Girondo é também considerado por especialistas como aquele, dentre os poetas das vanguardas latino-americanas, que melhor dialoga com a produção brasileira, principalmente, Oswald e Mário de Andrade.
Originário de uma família abastada de Buenos Aires, muito cedo o autor se deu conta de que as facilidades financeiras que seu berço lhe garantia não poderiam ser desperdiçadas com uma existência fútil, esnobe e cômoda. Sendo assim, ainda muito jovem decidiu tirar proveito de sua condição para abraçar a vida como experiência e saciar-se do banquete das descobertas.
Vivendo de forma quase nômade entre a Argentina e a Europa, apesar de seu espírito boêmio, Girondo dedicou-se de forma apaixonada aos estudos, lendo tudo o que estivesse ao alcance, com especial devoção à literatura e artes em geral. Aqueles eram os anos convulsivos de horror, quando as nações do mundo entravam no primeiro dos dois conflitos mundiais que modelariam a história do século que se iniciava; espanto e fascínio, diante da promessa de possibilidades que as novas invenções e descobertas científicas e tecnológicas prenunciavam; e pulsão criativa, experimental e provocativa, conforme apontavam as vanguardas artísticas européias. Um século novo, exige uma arte também nova, era o que diziam ou pareciam dizer.
Ora, para um garoto com aspirações artísticas e inclinado ao inconformismo, deve ter sido como aquele senhor aposentado, ex-hippie, que hoje não confia em ninguém com menos de sessenta, quando ouviu ainda adolescente alguém pregar: “Não confie em ninguém com mais de trinta!” Ou o garoto suburbano que, em meados da década de 1970, ouviu Never Mind The Bollocks. Here is The Sex Pistols e concluiu: “Eu também posso fazer isso!”
Citações pop e anedotas geracionais à parte, sem medo do afogamento o jovem poeta então saltou de seu trampolim para mergulhar profundamente nas águas do novo, onde a vida artística realmente estava fluindo, num maremoto de ousadia promovido pelas ondas tormentosas dos dada, futuristas, cubistas e surrealistas.
Os 20 Poemas Para Ler no Bonde apresentam um poeta em sintonia com seu tempo e, embora ainda em formação, completamente adaptado às novas propostas criativas de sua época. Mas também, oferecem o olhar do andarilho experiente e, ainda assim, fascinado com a beleza das coisas mais simples, atos e fatos corriqueiros da vida cotidiana, o gigantesco multiverso guardado no micro, imperceptível aos que só tem olhos para o macro; mas claro como o dia para aqueles dotados da capacidade de enxergar além da física dos corpos e das estruturas do concreto.

Todos escritos durante suas andanças por cidades como Buenos Aires, Paris, Veneza e Rio de Janeiro, cada poema convida a vivenciar com o viajante as experiências de sua passagem, enquanto o poeta desperta os sentidos, com saboroso lirismo inspirado no caminhar das mulheres, o olhar de desafio da madura e o rosar das bochechas da virgem inocente, em resposta ao mesmo flerte; a cacofonia das conversas desconexas entre amigos ébrios; a máquina motorizada que segue em descompasso e, mesmo com o ronco de sua artificialidade, não quebra a naturalidade com que transcorrem os dramas pessoais dos que passam, vão ou ficam e dos que bebem, conversam, namoram; assim como a cidade que, aos pouco, toda a natureza cobre, em harmônica desarmonia acelerada.
 Publicado originalmente na França em 1922, o livro só saiu na Argentina em 1925. Um ano antes, Girondo retornou à Buenos Aires, onde ajudou a agitar o modernismo local, como colaborador do órgão difusor das vanguardas hispano-americanas, a revista Martín Fierro (1924-1927) e consagrou-se como poeta e autor de diversos livros, com destaque para Calcomanias (1925), Espantapájaros (1932) e Persuasón de los dias (1942), que merecem artigos próprios para discorrer a respeito.
Além de bilíngüe e ilustrada, a edição brasileira de 20 Poemas para Ler no Bonde conta com reproduções de trabalhos de Horacio Coppola, figura central da fotografia latino-americana, um dos fundadores do Cineclube de Buenos Aires, em 1920, que, em 1932, durante viagem à Alemanha, travou contato com a Bauhaus e a fotógrafa Grete Stern, com quem veio a se casar. Em 1935, o casal promoveu a primeira exposição de fotografia moderna na Argentina.
Antes tarde do que nunca, a feliz chegada do livro de estréia do poeta argentino, como primeiro título dele publicado no Brasil, talvez sinalize como ponto de partida para uma possível reedição de sua obra, para o deleite dos leitores brasileiros.
Para ler no bonde, no ônibus, no metrô, no taxi ou no avião.

Trecho:
“A cidade imita um papelão uma cidade de pórfiro. Caravanas de montanhas acampam nos arredores. O Pão de Açúcar basta para adoçar a baía inteira o Pão de Açúcar e seu teleférico que há de perder o equilíbrio por não usar uma sombrinha de papel (...)”.


Serviço: 20 Poemas Para Ler no Bonde. Autor: Olivério Girondo. Tradução: Fabrício Corsaletti e Samuel Titan Jr. Editora 34. 112 páginas. Fotografias de Horácio Coppola.

sábado, 1 de novembro de 2014

Gothica - Gustave Flaubert (Livro)




Retrato do Realismo quando Jovem Mágico
Por César Alves

“Emma Bovary c´est moi” (Emma Bovary sou eu), teria declarado Gustave Flaubert, perante o tribunal, defendendo-se das acusações de ofensa à moral, à religião e aos bons costumes, referindo-se à sua personagem mais famosa, a protagonista de Madame Bovary, uma das obras mais importantes do Realismo, na historia da literatura universal.
O autor foi absolvido, veredicto tão justo quanto absurdos eram as acusações e o próprio julgamento.
Bom, sobre Flaubert, Bovary, vida e obra do autor, muita coisa já foi escrita e por gente mais gabaritada do este escriba que prefere, então, ir direto ao verdadeiro tema deste artigo, os contos de juventude escritos por ele e reunidos no ótimo Gothica, lançado pela editora Berlendis & Vertecchia. 
Aqui, encontramos um outro Gustave Flaubert. O jovem Gustave Flaubert que escrevia contos de inclinação fantástica e experimentava com a fantasia e o sobrenatural. Em Raiva e Impotência, o sono pesado do personagem é o estopim para que o autor explore um de nossos piores medos e dos mais caros à literatura de horror clássica: ser enterrado vivo. Bibliomania conta a historia de um colecionador de livros compulsivo, dono de uma vasta biblioteca que busca aumentar a qualquer custo de forma doentia. A genialidade da trama – tão absurda quanto é o final surpreendente – está numa característica do alfarrabista fóbico: ele não sabe ler. 

Fosse obrigado a escolher dois contos, entre os cinco ótimos que compõem a coletânea, ficaria com o maior deles, O Sonho do Inferno, e O Funeral do Doutor Mathurim, que não irei descrever aqui para sugerir ao leitor que vá atrás do livro e descubra por conta própria do que estou falando.
Se já era Bovary, aqui não vem ao caso. Ainda não era o Flaubert – pelo menos, o que conhecemos. Na época, aliás, poucos apostariam que o garoto um dia iria abalar as estruturas de instituições sagradas, como o casamento, e chocar a sociedade burguesa com seus romances corajosos, que chafurdavam na lama de temas, até então, cascudos, como o adultério e a hipocrisia da religião e dos valores burgueses.  Era jovem, ambicioso e ainda um tanto quanto mágico para alguém que viria a se tornar um dos pilares do Realismo. Talvez o período de gestação do grande escritor que viria a ser e conceber Bovary.
Embora demonstrando certa ingenuidade filosófica juvenil, típica da idade, já dizia a que vinha. Basta ler ao conto de maldição, traição e vingança, A Peste em Florença, e seus protagonistas para entender do que falo.


Serviço:
Título: Gothica
Autor: Gustave Flaubert
Editora: Berlendis & Vertecchia



quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A Lenda do Santo Beberrão - Joseph Roth



A Redenção da Boemia

Um dos melhores escritores europeus do período entre guerras, Joseph Roth, volta à nossas livrarias com as traduções de A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy.
Por César Alves

Você está numa biblioteca ou livraria e, como que por mágica, um estranho aparece e se identifica como sendo a Morte, avisando-lhe de que seu tempo está prestes a chegar ao fim. Mas, como é do comportamento do Ceifador – a Morte odeia se atrasar e por conta disso, sai cedo de casa para cumprir com seus afazeres –, ele se adiantou demais e informa que você ainda tem entre vinte minutos e meia hora de vantagem, antes de seguirem viagem. Sabendo que é muito pouco tempo para qualquer outra coisa, ele sugere que escolha um livro e faça sua última leitura, já que gosta de ler.
A pegadinha é: Que obra você escolheria?
A brincadeira era feita entre amigos que gostavam de literatura, normalmente ao redor de uma mesa de bar e com muita cerveja. Depois de ouvir da maioria que escolheriam seus poemas prediletos de As Flores do Mal de Baudelaire, Uma Temporada no Inferno de Rimbaud, algo do Bandeira ou um conto de Tolstói e etc, eu dizia que convidaria a Indesejada para ir comigo até um bar para tomarmos a saideira definitiva e, dando uma de Compadre da Morte, como no mito folclórico, tentaria ludibriá-la, embriagando-a e convencendo a danada a cair na farra em direção ao Baixo Augusta. Não funcionando, escolheria como livro derradeiro o belo A Lenda do Santo Beberrão de Joseph Roth.
A protocrônica cotidiana acima é só para falar do grato lançamento – não tão recente, aliás – da Editora Estação Liberdade. Há alguns meses, a editora lançou por aqui traduções de dois títulos de Joseph Roth; A Lenda do Santo Beberrão – principal tema de nosso papo aqui – e Hotel Savoy.
 Considerada “Obra-testamento”, A Lenda do Santo Beberrão foi o último livro escrito por Joseph Roth, também autor de A Teia da Aranha (1923) e A Marcha de Radetzky (1932) e um dos grandes autores universais pouco lidos no Brasil.
A escolha da pedida literária para meus últimos vinte minutos sobre a terra não é apenas por ser uma das minhas preferidas, é que também é possível ler o livro, do início ao fim e sem pressa, em pouco mais de um terço de hora. Trata-se de uma belíssima e curta novela de 22 páginas, capaz de tocar até mesmo aqueles que trazem um bloco de mármore ao invés de um coração batendo no peito.
Escrita como um misto de fábula e parábola cristã – mas nada carola é bom frisar –, A Lenda do Santo Beberrão começa como uma crônica cotidiana ambientada na Paris das primeiras décadas do século vinte, quando toda a Europa vivia envolta em névoas de incerteza, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.
Seu protagonista é um mendigo e alcoólatra que vaga pelas ruas e cantos menos iluminados da Cidade Luz, como os muitos que assim o faziam na época. Certa noite, quando se abrigava sob uma ponte do Rio Sena, aproxima-se um senhor muito bem vestido que puxa assunto e lhe oferece uma grande soma em dinheiro (200 Francos). Segundo o estranho benfeitor, o sem teto teria sido posto em seu caminho por designação divina, tendo em vista que ele, sendo um homem de fé, estava a cata de uma ação benevolente a um desconhecido como que para pagar uma promessa em agradecimento à bondade de Deus que nunca lhe faltara.

Apesar de suas condições, o miserável recusa a oferta, não por orgulho, mas por nutrir um profundo senso de retidão e idoneidade. Jamais aceitaria uma soma monetária por caridade, a ser que pudesse compensá-la com seu trabalho ou ter como devolvê-la, como um empréstimo, assim que se encontrasse em melhor situação.
Sendo ambos devotos de Santa Terezinha de Lisieux, o impasse é resolvido com o mendigo se comprometendo a devolver o valor que lhe é entregue à caixa de donativos da igreja da santa, no prazo de uma semana.
Com mais dinheiro do que jamais possuíra, o pobre coitado aproveita para alugar um quarto num albergue, tomar um banho e dormir numa cama, como não fazia há anos. Boêmio e incapaz de resistir ao chamado da boemia, ele torra todo o dinheiro com bebidas e mulheres.
A partir daí, a trama gira em torno do protagonista, personagens que ele encontra e as situações inusitadas por que passa durante sua obstinada busca para cumprir com sua promessa. Ele consegue o dinheiro, às vezes quase que por milagre, mas de uma vez. Mas, sempre que está prestes a pagar a dívida para com a santa, algo acontece.
Além de ser sua obra derradeira, o motivo de A Lenda do Santo Beberrão ser considerada a “obra testamento” de Joseph Roth também diz respeito ao conteúdo autobiográfico da novela. O protagonista da trama, nada mais é que um alter ego do autor, tendo com seu criador diversos pontos em comum. Assim como o mendigo, Roth também mantinha uma vida de andarilho. Embora sua trajetória e carreira tenham obtido reconhecimento na época, entre a Alemanha e a França, o autor nunca adotou um endereço fixo ou duradouro, viajando e passando por diversos países europeus até seus derradeiros dias. Além de religioso, como seu personagem, Roth também era alcoólatra, entre outras coisas em comum.
Adaptado para o cinema pelo diretor italiano Ermano Olmi, A Lenda do Santo Beberrão ganhou o Leão de Ouro de Veneza de 1988. O filme merece ser visto. Além de ser uma feliz adaptação, também e traz a boa interpretação do holandês Hutger Hauer como o mendigo.
Filho de uma família judaica de Brody, hoje parte da Ucrânia, Joseph Roth nasceu em 1894, nos dias finais do Império Austro-Húngaro. Além de brilhante jornalista, sua obra ficcional foi marcada por personagens à margem de uma Europa angustiada pelo pesadelo diário que marcaram os dias do período entre guerras, que o autor conseguiu retratar como poucos.
Deprimido com os acontecimentos que assolavam o continente europeu, precedendo a inevitável guerra, principalmente a ascensão do nazismo na Alemanha, e cada vez mais mergulhado no alcoolismo, Joseph Roth faleceu em Paris, em 27 de Maio de 1939.

Joseph Roth nas livrarias:
Como dito acima, apesar de sua importância e qualidades indiscutíveis, Joseph Roth parece pouco lido ou, no mínimo, menos comentado e difundido do que sua obra merece. Mas existem bons títulos do autor em nossas livrarias e, além dos dois títulos lançados pela Estação Liberdade – A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy –, sugiro outros dois ótimos livros da Companhia das Letras abaixo:

Berlim Ótimo título da não menos ótima coleção Jornalismo Literário da editora, o livro compila artigos que revelam o brilhantismo do trabalho de Joseph Roth como homem de imprensa. Aqui, o autor faz uma crônica da Berlim da década de 1920. Em suas andanças, o autor destrincha o cotidiano da antiga capital prussiana, quando coração da recém-inaugurada República de Weimar. Passeia por bosques e praças e edifícios e bondes, refletindo sobre o significado da natureza, diante da paisagem artificial da modernidade. Caminha entre bairros de imigrantes, decifra a vida noturna berlinense e visita campos de refugiados e faz um tour pela cidade ao lado de um criminoso que acaba de sair da prisão para, através da ótica de seu companheiro, compreender a medida das transformações ocorridas na metrópole.


Aqui, reencontramos o grande escritor de ficção e fascinante tradutor de seus dias. Usando como pano de fundo os dias que marcaram o início da primeira guerra, Joseph Roth narra a trajetória do judeu e muito religioso, Mendel Singer, para criar uma releitura do livro de Jó. Homem modesto e temente a Deus, Singer vive com sua família numa cidadezinha russa. Apesar de humildes, são felizes e gratos pela vida que levam. A tranqüilidade e os bons dias que Singer atribui à benevolência da Providência Divina acabam com o estouro do conflito e, assim como o personagem bíblico, o personagem descobre-se face a um teste para comprovar sua fé.