sábado, 9 de dezembro de 2017

Uma Jornada Pelas Distopias Literárias



Admirável Mundo Hoje

Depois de anos fora de catálogo no Brasil, obra mais conhecida de Zamiatín – que teria influenciado Huxley, Orwell e Ray Bradbury – ganha não uma, mas duas novas edições.
Por César Alves

Reflexo do espanto e admiração da espécie humana diante da velocidade com que os avanços técnicos se apresentavam desde o advento da Revolução Industrial e seu impacto no modo de vida e comportamento das civilizações ocidentais – somados ao uso da tecnologia bélica e propagandística no contexto político, não só por regimes ditatoriais, mas também com grande desenvoltura por governos democráticos, para o controle de corações e mentes e demarcações de territórios –, as Distopias foram vistas durante muito tempo como gênero característico do século vinte e pareciam ter perdido a força com o suposto fim da Guerra Fria.
Não é de se admirar, no entanto, que, quando termos como pós-verdade, pós-democracia e pós-humanidade, entre outros, passam a pautar o debate político e social no que diz respeito à compreensão dos rumos da sociedade contemporânea, com direito a artigos e discussões que vão além do universo acadêmico, fazendo-se parte do vocabulário cotidiano, a chamada literatura distópica volte a despertar interesse. De livros e filmes voltados ao público adolescente, passando por séries de tevê, até novas edições dos grandes clássicos do gênero, as sombras das velhas e novas distopias pairam sobre a cultura – pop, de massa e também acadêmica – do século 21, como elemento simbólico essencial para analisar os dias que correm ou advertência para os dias que estão por vir. Prova disso foi o alto número de vendas e empréstimos nas bibliotecas da obra 1984, de George Orwell, registrado nos Estados Unidos, logo após a confirmação da vitória de Donald Trump.
Ao amigo leitor (a), este pobre escriba pede perdão pela longa introdução, que, no entanto, se faz necessária, tendo em vista que este artigo se dedica a fazer um breve passeio pelas principais Distopias literárias do século 20, aproveitando a volta de Nós – para muitos o texto inaugural do gênero distopico na ficção contemporânea –, escrita pelo russo Zamiátin que, após anos fora de catálogo, acaba de ganhar não uma, mas duas novas edições. Ambas traduzidas diretamente do russo.
Antes de entrarmos no tema, no entanto, este que vos escreve pede licença para mais um aparte para tentar descrever o conceito de Utopia. Já que, para os não familiarizados, pode ser difícil compreender sua contraparte sombria, verdadeiro tema de nosso texto.

Bem vindo a Lugar Nenhum ou Paraísos Imaginários para preencher o vazio de um suposto Paraíso Perdido – Palavra de origem grega, significando algo como “lugar que não existe” ou “lugar nenhum” – topos = lugar; u-topos = não lugar –, Utopia quase sempre se refere aos lugares imaginários representando sociedades ideais, conduzidas pela razão, direitos e deveres igualitários, tanto para seus cidadãos quanto para aqueles que os governam, conduzindo a um verdadeiro Paraíso terreno, livre da fome, da ganância, da guerra e os demais males que contaminam e apodrecem a civilização como a conhecemos. Clássicos como A República de Platão; A Cidade do Sol de Tomaso Campanella e Nova Atlantis de Francis Bacon são exemplos dos mais famosos, mas o termo remete diretamente à obra de Thomas Morus, Sobre o Melhor Estado de uma República que Existe na Nova Ilha Utopia.
Idealizadas e sonhadas por pensadores humanistas indignados com as desigualdades e injustiças da Idade Média e impulsionadas por racionalistas e humanistas a partir do Renascimento, as narrativas utópicas foram populares até meados do século dezenove e se tornaram as bases para a idealização das comunidades igualitárias propostas por pensadores como Charles Fourier, identificadas como “Socialismo Utópico” por Karl Marx.

Sobre a Necrópole da Liberdade, a Nova Ordem ergue sua Cidade - Se as Utopias representavam o sonho de um futuro dourado para a evolução de nossa espécie como sociedade, o aguardado raiar das luzes sobre o longo domínio das trevas históricas, revelando uma fé quase ingênua na inclinação dos homens para o bem, o Reinado do Terror que se seguiu à Revolução Francesa, as crueldades perpetradas pelas nações esclarecidas, massacrando os povos que prometiam salvar da selvageria, culminando em barbárie colonial e neo-colonialista, mas, principalmente, com a chegada do século vinte, que trouxe consigo duas guerras mundiais, seus genocídios sistemáticos e morte em escala industrial, representaram um choque de realidade e a confirmação de que as sombras que cobriam o coração humano eram ainda mais densas do que o pior dos pessimistas poderia imaginar.
O resultado no imaginário literário ocidental foi o surgimento da contra-utopia ou Utopia negativa, chamada corretamente Distopia. Aqui, o sonho das sociedades fraternas e igualitárias dá lugar ao pesadelo do controle estatal de sociedades formatadas e automatizadas.
Em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, o autor de As Portas da Percepção, Contraponto e A Ilha (que também cabe no gênero distopico) concebe um mundo organizado através de castas, onde as pessoas são concebidas em laboratórios, através da engenharia genética, já programadas para exercer as funções que lhe cabem e o lugar que devem ocupar dentro do sistema organizacional que rege a sociedade. Aqui o controle é exercido através de uma droga, o soma, espécie de fármaco tranqüilizante de efeito social e político que inibe pensamentos e questionamentos contrários ao Estado, bloqueando as idéias perigosas com a falsa sensação de felicidade, o que é reforçado com o incentivo, quase obrigatório, do exercício pleno do hedonismo programado. (Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley – tradução: Lino Vallandro – Globo Livros – 312 páginas)
Talvez a mais famosa das Distopias, 1984 foi escrito por George Orwell e publicado em 1948, pouco depois do término da segunda grande guerra. Fortemente influenciado pelos horrores revelados durante e ao final do conflito, em face às nuvens carregadas que se formavam no horizonte, com a inauguração da era atômica e o início das disputas entre os vitoriosos por espólios de guerra e territórios dos derrotados, que culminariam na pesada tormenta que ganharia o nome de Guerra Fria, a distopia de Orwell ganhou tanta notoriedade que termos como Big Brother e novilíngua, entre outros, passaram ao vocabulário ocidental como expressões de significado reconhecido mesmo por quem nunca leu o livro.

Descrevendo uma sociedade sob o comando do Grande Irmão – espécie de “Pai da Pátria”, cuja mão pesada educa, pune e controla, e olhos que vigiam, através de telões espalhados nos prédios, repartições, fábricas e até mesmo nos dormitórios dos cidadãos –, que comanda através de técnicas baseadas na ordem e na aniquilação do individuo, tendo como instrumentos a propaganda, o controle da mídia e da própria história, como nos mostra o personagem central, cujo trabalho burocrático consiste em pesquisar e reescrever matérias e trechos de livros para que não contradigam a versão do regime.
O autor costumava dizer que a ideia teria surgido de sua experiência e do trauma histórico causado pela ameaça fascista de Hitler e Mussolini e a maneira como os déspotas conseguiram levar adiante sua loucura e conquistar a adesão de seus compatriotas que abraçaram, com raros focos de resistência, sua insanidade. Orwell, que até o fim de seus dias considerava-se um socialista, no entanto, não limita sua crítica aos regimes de direita e reconhecia o quanto havia em sua distopia (e no próprio Grande Irmão) da União Soviética sob o comando de Stalin. Portanto, sua obra era um alerta contra os perigos dos regimes ditatoriais e sua propaganda doutrinária, independente do viés ideológico.
Ou seja, 1984 é fruto tanto de Auschwitz e do Holocausto fascista quanto o é dos Gulags e campos de trabalhos forçados da Rússia comunista de Stalin. (1984 – George Orwell – Companhia das Letras – 416 páginas)

Entretenha-nos até a morte - Não só por ser a distopia predileta deste que vos escreve, mas, principalmente, por ser aquela que mais se aproxima dos dias que correm, Fahrenheit 451 não poderia ficar de fora. Aqui não estamos falando de uma sociedade em um futuro distante controlada por um regime totalitário, mas sim de um lugar em um tempo e espaço imaginário que pode muito bem ser comparado com o nosso presente. Em Fahreinheit 451 o condicionamento social é feito através do entretenimento barato, da indústria cultural e de medicamentos.
Concebida pelo genial Ray Bradbury, o ponto principal dá obra já nos é dado no excelente título: 451 graus fahrenheit é a temperatura de combustão do papel. Num mundo onde as pessoas são condicionadas a evitar ideias que as conduzam ao questionamento de seu modo de vida e seu papel social como indivíduos, os livros foram banidos como perigoso instrumento desestabilizador social. Todos vivem sob o efeito de uma felicidade anestésica, mantida através de equipamentos audiovisuais, espécie de monitores televisivos que ocupam uma parede inteira, transmitindo novelas e shows de variedades exibidos 24 horas por dia, em tempo real, e com os quais os telespectadores podem interagir – única forma de interatividade aceitável, aliás, já que mesmo os encontros com amigos e familiares são dedicados a falar sobre a grade de programação e seu “conteúdo” –, o que é reforçado com doses diárias de um poderoso fármaco. As casas são à prova de fogo e, não havendo mais a necessidade de um corpo de bombeiros, aos antigos combatentes de incêndios foi dada uma nova missão: incinerar livros e caçar aqueles que cometem o crime de esconder bibliotecas em suas casas.
Ao contrário da maioria das tramas do gênero, em Fahreinheit 451 as bases estruturais da sociedade não foram criadas após uma hecatombe nuclear, uma guerra ou a tomada do poder por um sistema ditatorial. Como o autor deixa claro em algumas das passagens mais marcantes do livro, não se trata de uma sociedade iletrada e analfabeta. As pessoas sabem ler, mas o conhecimento da leitura serve apenas para interpretar os manuais de funcionamento dos equipamentos e gadgets que os mantém distraídos e as bulas dos remédios que garantem sua anestesia comportamental. Logo, a opção pelo conformismo e a recusa aos livros foram tomadas pelas próprias pessoas. O que é mais assustador. (Fahrenheit 451 – Ray Bradbury – Globo Livros – 215 páginas)

Se não a Distopia das Distopias, Nós, do russo Ievgenin Zamiatín, merece lugar de destaque como a Distopia que teria inspirado todas as tramas distópicas que a seguiram. Ou, pelo menos, teria tido forte influência sobre as obras mais relevantes, dentre aquelas que ousaram imaginar o perigo de Utopias negativas, como um alerta para o que pode nos aguardar na esquina de um futuro não muito distante. É inegável sua influência sobre as obras comentadas anteriormente e outras A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, que só não foi descrita aqui por ter sido alvo de outro texto, assinado pelo amigo aqui, que pode ser lido no link: http://orebitedoverbo.blogspot.com.br/2014/01/laranja-mecanica-distopia-horrorshow-de.html
Narrado em primeira pessoa na forma de um diário por D-503, operário que trabalha na construção de uma espaçonave projetada por engenheiros do governo para a missão de espalhar para o resto do universo o evangelho do Estado Único, Nós descreve uma sociedade controlada através da eliminação do conceito de liberdade e da noção de indivíduo, além da criminalização da imaginação.
Como o próprio nome do personagem deixa claro, na realidade imaginada por Zamiatin o conceito de indivíduo foi completamente apagado, em prol de uma existência coletiva. Aqui, as pessoas são identificadas por números e letras, como setores de uma linha de montagem ou engrenagens de um motor. A população mundial foi reduzida para 10 milhões de habitantes que vivem em casas padronizadas, com paredes de vidros transparentes da cor verde, de maneira a coibir desvios comportamentais ou qualquer ato fora do padrão preestabelecido.
Com suas vidas expostas, todos vigiam e são vigiados, tornando-se também responsáveis pela manutenção da existência de paz e felicidade, alcançadas depois da revolução que eliminou e criminalizou a liberdade. Um preço pequeno, segundo eles, a ser pago pela segurança e felicidade perpétuas, já que a liberdade engendra a violência e alimenta pensamentos inadequados, que podem envenenar a sociedade com o mal da solidão, da tristeza e – ainda mais perigoso – da imaginação.
Para compensar, todos tem direito a uma hora de isolamento para momentos de intimidades sexuais, desde que na data, horário e com o parceiro autorizados, conforme consta no cartão rosa, emitido por burocratas do governos e sem o qual qualquer relação íntima ou ato de socialização clandestina constitui crime mortal. D-503 parece satisfeito com sua condição, chegando a exaltar as benesses do Estado Único, mas é justamente depois de um destes encontros que acontece a grande reviravolta e suas certezas são abaladas. O tremor ideológico e emocional é causado por I-330, uma mulher misteriosa, com hábitos e idéias que, a princípio, D-503 condena, embora não consiga se afastar dela. Logo o personagem é apresentado a um mundo de emoções e sentimentos como o sonho, a fantasia e o amor, proibidos e condenáveis com a morte.
Nascido em Moscou, em 1884, Ievguenin Zamiátin formou-se em engenharia naval e trabalhou como supervisor na construção de navios russos. Apoiou Revolução de Outubro de 1917, mesmo ano em que passa a dedicar-se à literatura em tempo integral. Ministra aulas na recém-fundada Casa das Artes de Petrogrado e é eleito presidente da União Pan-Russa de Escritores. Em 1919 é preso por suspeita de associação ao partido dos Socialistas Revolucionários. Nos anos seguintes termina a redação de Nós, sua obra mais conhecida, mas o romance não recebe autorização de publicação no país. O livro acaba sendo publicado numa tradução para o inglês, nos EUA, em 1924 – na Rússia, a obra só seria publicada em 1988.
 O livro já ganhou diversas edições no Brasil – uma delas com o título de O Muro Verde –, mas estava fora de catálogo há anos. O que dá ainda mais motivos para celebrar a chegada de duas novas traduções em português. Ambas feitas diretamente do russo.

A edição da Aleph, traduzida diretamente do russo por Gabriela Soares chama atenção por seu belo acabamento gráfico e por conter extras de respeito, como uma carta do próprio autor a Stalin, na qual solicitava ao ditador autorização para deixar seu país, já que sua permanência ali não fazia sentido, uma vez que seus livros não eram publicados e não podia trabalhar; e também um artigo assinado por George Orwell no qual o autor de A Revolução dos Bichos estabelece conexões entre a obra de Zamiatin e o Admirável Mundo Novo de Huxley – concluindo que o primeiro, certamente, influenciou o segundo, o que também pode ser dito a respeito de 1984, publicado anos depois. A edição da Editora 34 faz parte da coleção Narrativas da Revolução (que será alvo de um próximo artigo aqui). Com tradução de Francisco Araújo, também traz o excelente prefácio de Cássio de Oliveira que ajuda o leitor a entender a importância da obra no contexto em que foi escrita e seu valor ainda para nossos dias. Embora se trate do mesmo texto, ambas as edições possuem qualidades e complementos que as distinguem e – em caso de dúvida e condições financeiras – recomendo aos amigos ficarem com as duas.


Serviço:

Nós
Autor: Ievguêni Zamiátin

Tradução: Francisco de Araújo
Editora 34
288 páginas

Tradução: Gabriela Soares
Editora Aleph
344 páginas

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

São Paulo na ótica do Flaneur – O Coração da Pauliceia Ainda Bate



São Paulo na ótica do Flaneur

Reunindo artigos inéditos e outros publicados em jornais, O Coração da Paulicéia ainda bate revela o olhar apaixonado de José de Souza Martins sobre a história, personagens, gentes e ruas da cidade de São Paulo.
Por César Alves

Ocupante da cadeira de número 22 na Academia Paulista de Letras, doutor em Sociologia pela USP e professor aposentado da mesma universidade, o escritor José de Souza Martins é também um mestre na arte do flâneur.
Palavra de origem francesa, derivada de flâner que pode ser traduzida para o português como “passear”, embora o verbo passear seja incapaz de resumir todas as particularidades e características do termo francês, objeto de estudo de Walter Benjamin e, antes dele, Charles Baudelaire. Correndo o risco de ser simplista demais em minha tentativa de explicação, o passeio do flâneur vai muito além do vagar pela cidade, aproximando-se do ato de se deixar perder por suas ruas com o olhar atento, entre o deslumbre, o encantamento e o desejo de decifrar seus mistérios. É este o olhar que se percebe durante a leitura de O coração da paulicéia ainda bate, obra que reúne crônicas inéditas e outras publicadas ao longo de nove anos na coluna assinada pelo autor no caderno Metrópole do jornal O Estado de São Paulo.
Atento aos detalhes e nuances da maior cidade da América do Sul, o professor José de Souza Martins traduz na sua prosa de excelente cronista, instantâneos captados pela ótica do poeta que busca inspiração na arquitetura, nas ruas, nas personagens, nas questões sociológicas e, principalmente, na história. “Na praça em frente, o largo da Liberdade, existia o pelourinho, símbolo da autonomia municipal e da justiça, destinado ao suplício de escravos condenados ao castigo público. Por isso o bairro foi conhecido como o bairro do quebra-bunda, referência aos cativos que dali saiam descadeirados(...). Dizia-se que São Paulo era uma cidade esquisita. A rua Direita era torta, o cemitério ficava na Consolação e a forca na Liberdade”.
Leitor das ruas e fotógrafo do espírito urbano e sociológico, o autor deixa-se perder pelas ruas da metrópole em busca de seus infinitos mistérios, estampados nos contornos de casarões e prédios antigos e arranha-céus modernos; na arte que se espalha feito museu a céu aberto, muitas vezes, sem ser notada pelos que por ali apressadamente passam; nos olhos dos atores que juntos protagonizam o drama da São Paulo de nossos dias e também nos fantasmas daqueles que o protagonizaram no passado e, de alguma forma, por ali ainda vagam. Assim como o é a alma de sua musa, os textos de Martins passeiam por histórias que se confundem entre o cômico e do trágico, passando pelo primeiro carnaval, o de 1856; a triste história de Dona Yayá, rica órfã, declarada louca em 1919, aprisionada na própria casa por mais de 40 anos “até receber o habeas corpus tardio da morte”; e o assassinato, em 1906, de uma filha pelo pai, ex-governador, que se suicidou em seguida, para impedir-lhe o casamento incestuoso com o poeta Batista Cepelos também seu filho com uma ex-escrava, fato que beira a mais trágica das tragédias gregas.
Com prefácio do poeta Paulo Bonfim, a quem a obra é dedica, e ilustrado com mapas, propagandas e fotografias, O coração da Pauliceia ainda bate chega como uma das mais belas e interessantes obras dedicadas à cidade de São Paulo produzida nos últimos anos. Altamente recomendável.

Serviço:
O Coração da Pauliceia Ainda Bate
Autor: José de Souza Martins
Editora: Unesp e Imprensa Oficial

427 páginas

domingo, 27 de agosto de 2017

O Itinerário de Benjamin de Tudela - Livro



A Jornada de Benjamin

Depoimento histórico de valor inquestionável e obra inaugural do gênero literário de relatos de viagens, O Itinerário de Benjamin de Tudela, aporta nas livrarias brasileiras.
Por César Alves

Talvez um dos mais importantes registros sobre as rotas de comércio e o modo de vida dos povos da Europa, África e Ásia, durante a Idade Média, O Itinerário de Bejamin de Tudela chega às livrarias brasileiras numa bela edição da editora Perspectiva sob a dedicação e os cuidados do professor Jacó Guinsburg.
Baseada nas anotações feitas pelo rabino Benjamin (1130-1173) que, em meados do século XII, teria empreendido uma jornada de aproximadamente uma década através dos territórios citados – no período que coincide com a conquista da Península ibérica, entre a segunda e a terceira Cruzadas, e antes da ascensão de Saladino –, a obra surpreende por anteceder em aproximadamente cem anos As Viagens de Marco Polo, famoso relato do mercador, embaixador e explorador veneziano.
Partindo de Tudela, ao norte da Espanha, rumo à Terra Santa, o que deveria ser uma rápida viagem de alguns meses, acabou se transformando numa aventura muito além da planejada peregrinação à Jerusalém, com longas escalas durante as quais o rabino Benjamin procurou visitar comunidades judaicas e não judaicas, informando-se sobre seu estilo de vida, os governos vigentes, suas tradições, cultura, economia e, acima de tudo, suas populações.
A narrativa revela o olhar atendo do viajante maravilhado diante de tudo o que vê, o que a torna uma espécie de Guia de viagens, repleto de endereços úteis, para os peregrinos judeus do período, contendo informações sobre as cidades que ofereciam hospitalidade aos viajantes, como Montpellier, Gênova e Constantinopla, por exemplo.
Aqui também são descritas as condições econômicas dos mercadores de Barcelona, Montpellier e Alexandria, e também quais eram as principais atividades dos judeus, descrevendo o dia a dia dos tintureiros em Brindisi, tecedores de seda em Tebes, curtidores de couro em Constantinopla e vidraceiros em Alepo e Tigre. O relatório também inclui informações demográficas sobre as comunidades judaicas de algumas cidades da época: 20 judeus em Pisa, 40 em Lucca, 200 em Roma, 300 em Cápua, 500 em Nápoles, 600 em Salerno, 20 em Amalfi, entre outras.
Em seu diário de viagem, o rabino tomou o cuidado de registrar os nomes das principais lideranças comunitárias das regiões por onde passou; das cidades que possuíam boas escolas para estudos judaicos, como Montpellier, ou como Lunet, onde a comunidade subsidiava a educação dos jovens. Mencionou, também, a existência de uma escola de medicina cristã em Salerno e chamou-lhe a atenção, por exemplo, os acadêmicos de Constantinopla por serem dotados de um profundo conhecimento da literatura grega.
Durante sua viagem, Benjamin visitou igrejas e mesquitas. Descreveu Roma como “a capital do cristianismo, governada pelo papa, seu líder espiritual”. Constantinopla, em suas palavras, “sedia o trono dos patriarcas gregos, pois estes não obedecem ao papa”. Em suas andanças descobriu, ainda, que as cidades de Trani e Messina eram os principais pontos de partida dos peregrinos cristãos à Terra Santa.
Compondo um panorama histórico e geográfico de seu tempo, O Itinerário de Benjamin de Tudela confirma-se como registro histórico de relevância inquestionável. O livro deve agradar muito os historiadores e pesquisadores da Idade Média, mas também pode ser apreciado pelos leitores comuns que certamente irão se sentir parte da jornada realizada pelo rabino Benjamin, seduzidos pelo deleite da escrita de fácil leitura e a riqueza de seus relatos.

Serviço:
O Itinerário de Benjamin de Tudela
Organização e Tradução: J. Guinsburg
Editora: Perspectiva
160 páginas




terça-feira, 1 de agosto de 2017

Gertrude Stein - Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários



Brincando com tia Gertrude Stein

Edição brasileira de Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários revela uma faceta pouco conhecida da intelectual que batizou a Lost Generation, a de autora de textos direcionados ao público infantil.
Por César Alves

Zed era uma garotinha francesa que queria uma zebra como presente de aniversário. Para que o animal se sentisse confortável e o seguisse até em casa, seria preciso que o pai de Zed pintasse o mundo inteiro com listras. O conto está na letra “Z” do abecedário de brincadeiras e jogos concebido por Gertrude Stein em seu livro Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários que a editora Iluminuras disponibiliza nas livrarias brasileiras, com tradução de Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin.
Escrito em 1940, o livro seria a segunda investida da autora no universo infantil, seguindo o relativo sucesso de The World is Round (O Mundo é Redondo), publicado no ano anterior. Seus editores, no entanto, se recusaram a publicá-lo alegando que a obra não era exatamente apropriada para os pequenos. Stein não se deu por vencida e, após oferecê-lo a diversas editoras, chegou a engatar o projeto em 1942. Problemas com os ilustradores e, principalmente, as dificuldades com material e pessoal enfrentadas pelo mercado editorial durante a II Guerra fizeram com que a obra não chegasse a ser publicada, o que só aconteceu postumamente quinze anos depois pela Yale University Press.
Trata-se de um alfabeto – cada letra ligada às iniciais dos nomes das personagens ou relacionada com as datas de seus aniversários – permeado por contos que fogem do formato tradicional de “começo, meio e fim”, privilegiando o que a autora chamava de “presente contínuo”. Se as histórias, poemas e anedotas aqui reunidas muitas vezes beiram o delicioso nonsense, a autora não se acanha em tocar em temas delicados como a morte e a guerra, por exemplo.
Nome de peso entre os artistas, escritores, poetas e intelectuais norte-americanos que se mudaram para Paris no período entre guerras e batizados por ela como a “Geração Perdida” – que contava com nomes como Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, entre outros –, Stein teve participação efetiva na efervescência modernista parisiense, travando uma estreita relação com Picasso e Apollinaire, por exemplo, e acompanhando de perto a construção de movimentos de vanguarda como o Cubismo. Vem daí sua vocação para os experimentos de linguagem que fizeram de sua obra uma das mais relevantes do período e que aqui são explorados, a partir de colagens sonoras, de maneira a tornar a experiência da leitura num convite ao jogo e brincadeiras de desconstrução da linguagem.
Já foi dito que a leitura da obra de Gertrude Stein representa um verdadeiro desafio lingüístico. Aqui, o desafio também ganha ares de aventura e merece ser aceito por crianças e adultos.
Em tempo. Antes tarde do que nunca, a obra de Gertrude Stein vem ganhando as livrarias brasileiras. Recentemente, a mesma Iluminuras que está lançando a obra tema deste texto também publicou O que você está olhando – Teatro (1913-1920), reunindo 18 peças de sua autoria. A extinta Cosac & Naify publicou há alguns anos sua tradução de Autobiografia de Alice B. Toklas e, mais recentemente, a editora Âyné publicou Picasso. Esperemos que mais coisas venham por ai...

Serviço:
Título: Para Fazer um Livro de Alfabetos e Aniversários
Autor: Gertrude Stein
Tradução: Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin
Editora: Iluminuras
144 páginas





quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Ziembinski, Aquele Bárbaro Sotaque Polonês



Ziembinski, Aquele Bárbaro Sotaque Polonês

Livro da pesquisadora polonesa, Aleksandra Pluta, conta a trajetória de um dos mais importantes encenadores do teatro moderno brasileiro.
Por César Alves


No limiar da década de 1940, circulava entre o meio teatral brasileiro notícias sobre “a chegada de um polonês fabuloso, que tinha todo um espetáculo dentro da cabeça antes que se fizesse o menor ensaio ou se batesse o primeiro prego do cenário”.
O mundo amargava os tormentos da segunda guerra mundial e, em meio às notícias trágicas e alarmantes que só um conflito de tais proporções pode gerar pelo menos aquela era uma boa notícia. O polonês era Zbigniew Ziembinski (1908-1978) e o espetáculo – que ensaiava e estrearia em 1943, tornando-se um marco na história do teatro moderno brasileiro – era Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues.
Publicado primeiro na Polônia em 2015, chega agora às livrarias brasileiras, Ziembinski, Aquele Bárbaro Sotaque Polonês, biografia assinada por Aleksandra Pluta e editada pela Perspectiva, com tradução de Luiz Henrique Budant.
Falar sobre a importância de Ziembinski para o teatro brasileiro e, principalmente, sobre o impacto que teve sua colaboração com a companhia Os Comediantes e Nelson Rodrigues na concepção de nossa modernidade cênica já foi feito tantas vezes que é quase impossível fugir do lugar comum. Ziembinski também construiu uma trajetória muito relevante nas telas, como ator de filmes e novelas – sucessos de audiência, como O Rebu (1975) da Rede Globo –, e, antes de chegar ao Brasil, possuía uma sólida carreira nos palcos de seu país de origem. É justamente ai que o livro de Pluta se destaca.
Ator e diretor, formado na Faculdade de Letras da Universidade Jagielonska e na Escola de Arte Dramática do Teatro Municipal de Cracóvia, Zigbniew Ziembinski atuou – como encenador e ator – em mais de 60 espetáculos das maiores companhias e com alguns dos maiores nomes do teatro polonês, além de ter sido professor no lendário Instituto de Arte Teatral de Varsóvia. Metade do livro é dedicada à importância do encenador para também para o teatro e a cultura de seu país de origem.
Aqui ficamos sabendo que Ziembinski chegou a dirigir um filme e a atuar em diversos outros produzidos na Polônia. Além de sua célebre atuação – muito elogiada pela imprensa na época – na montagem de Verão em Nohant, de Jaroslaw Koczanowicz, interpretando o pianista Frédéric Chopin, o livro também revela que “Zimba”, como era carinhosamente chamado pelos amigos da classe teatral brasileira, chegou a conhecer pessoalmente o diretor russo e influência para o teatro mundial do século vinte, Meyerhold (1874-1940) e descreve os bastidores da estréia mundial de Genebra, peça de Bernard Shaw que zombava dos ditadores fascistas, Hitler, Mussolini e Franco. Verdadeiro ato de coragem, tendo em vista que o espetáculo, que estreou em 1938, permaneceu em cartaz cerca de quatro dias depois de a Polônia ser ocupada, no ano seguinte, numa resistência que poderia custar – e, em alguns casos, custou – a vida dos envolvidos.
Sobre a autora
Mestre em Jornalismo pela Università La Sapienza em Roma, com pós-graduação em Protocolo Diplomático pela Pontificia Universidad Católica de Chile, Eleksandra Pluta também é autora de Na onda da história. Imigração polonesa no Chile (2009), Raul Nałęcz – Małachowski Memórias de dois continentes (2012) e Andrés, uma vida em mais de 3000 filmes (2013).

Serviço:
Ziembinski, Aquele Bárbaro Sotaque Polonês
Autor: Aleksandra Pluta
Tradução: Luiz Henrique Budant
Editora Perspectiva
320 páginas



sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Não Confie em Nenhum Disco com Menos de 50



Jubileu ou Não Confie em Nenhum Disco com Menos de 50
Por César Alves

Sendo previsível, na cobertura de música, posso dizer que será o ano da previsibilidade.
2017 marca o jubileu de lançamento de diversos discos que revolucionaram o segmento musical a partir daí. Obras como Sgt. Peppers dos Beatles; Velvet Underground and Nico da banda de Lou Reed e John Cale; Forever Changes do Love; High Priestess of Soul da Nina Simone; Astral Weeks do Van Morrison; Surrealistic Pillow do Jefferson Airplane e uma infinidade de outros títulos que tomariam mais de “textão” só para relacioná-los, correndo o risco de deixar muita coisa boa de fora.
Conhecendo bem a cobertura musical como é feita no Brasil, posso antecipar desde já o festival de clichês e até as frases prontas de quem e sobre que obras escreverão nos próximos meses.
Deixei de escrever sobre musica há mais de dez anos, tendo em vista que perdi o interesse na musica como assunto e percebi que havia gente muito mais gabaritada para cobrir o tema do que eu. Por outro lado, gosto de muita coisa feita no ano de 1967, não só pela qualidade musical, mas também pelo contexto histórico e social em que foram compostos e gravados.
Do meu ponto de vista ignorante, sempre achei que 67 foi apenas o ápice de um período de três a cinco anos, a partir da segunda metade de cada década, em que a produção musical popular passa por uma inquietação criativa que antecipa o que será a musica da década seguinte. Então, sempre conforme a visão do amigo aqui, seria o ponto mais alto de algo que começa em 1966 e vai até 1970, preparando o terreno para o rock progressivo (que tem raiz no produção Baroquee), a musica Disco (o Funk e Soul e a produção musical voltada para pistas de dança), o Heavy Metal (os discos do Blue Chear e Black Sabath) e até o punk (o já citado VU e as estréias do MC5 e The Stooges).
Foi assim nas décadas seguintes, com o surgimento do punk rock e rock industrial, a invasão das festas de quarteirão e suas Sound Machines nos bairros negros pobres da Jamaica aos Estados Unidos e a musica eletrônica tocada em pistas de boates gays que abrem caminho para o pós-punk, os selos de rock independentes, Rap e o movimento Hip Hop e a House Music. Assim como os álbuns do Sonic Youth, Jesus and Mary Chain, Dinosaur Jr, entre outros, e as estréias do Public Enemy, N.W.A. e outros marcariam o que seria o rock e o rap dos anos 90.
Do lado de cá, fico tentando adivinhar qual de meus amigos irá assinar o primeiro de muitos artigos clichês sobre o jubileu do “ano mágico” de 1967 na música. Mas o que eu gostaria mesmo era de poder antecipar quais discos e artistas representam hoje algo que nos faça ter boas expectativas quanto ao que está por vir nos anos 2020...
Surpreendam-me!