sábado, 3 de março de 2018

Guido Crepax e A História de "O"





Pauline Reagé, segundo Crepax

Clássico da literatura erótica do século 20, A História de “O”, de Pauline Reagé – pseudônimo da jornalista francesa Anne Célline Desclós –, ganhou uma magistral adaptação para os quadrinhos sob a condução do maestro dos quadrinhos e criador de Valentina.
Por César Alves


Em meio à atual febre de tramas eróticas nas livrarias de todo o mundo, fenômeno ressuscitado pela série de livros Cinquenta Tons de Cinza, de E.L. James, é bom lembrar que sexo e arte sempre se deitaram na mesma cama. Seus segredos, no entanto, podem ter tido representação gráfica muito antes do aparecimento da imprensa. Papiro de Turim, documento descoberto em 1822, mostra desenhos feitos pelos egípcios de suas atividades sexuais, talvez seja a prova de que o gosto pelo erotismo vem muito antes de Gutenberg criar a primeira impressora no século 14 e tornar, algum tempo depois, a literatura acessível e os “livros proibidos” virarem tão populares quanto a Bíblia – muitos estudiosos consideram o documento egípcio “a primeira revista erótica da história”.
Artista gráfico e autor das mais originais histórias em quadrinhos, Guido Crepax entendeu o recado. Com as aventuras de sua personagem Valentina, criada em 1965 para a revista Linus, Crepax se tornou o mestre do erotismo gráfico e um dos artífices do movimento de emancipação feminina no universo da Cultura pop. Graças a seu traço inconfundível, argumentação que, mais que o erotismo, flerta com a filosofia e o diálogo entre o onírico e o psicológico, sem abrir mão do experimentalismo no formato narrativo e visual, é também considerado um dos responsáveis por elevar os quadrinhos ao status de arte.
Agora, sua obra começa a retornar às livrarias brasileiras, mais uma vez pela L&PM Editores – que lançou vários livros seus na década de 1980. O primeiro relançamento é o clássico A História de “O”, uma das poucas obras do autor que, contraditoriamente, não traz Valentina como protagonista. A editora promete ainda relançar outros títulos, no total de oito volumes programados.
O fato de não ter Valentina não representa exatamente uma decepção aos leitores – nem mesmo para quem adora a fotógrafa que usa botas de couro e espartilho e se tornou ícone da emancipação feminina na década de 1960. A História de “O” é baseada na obra publicada em 1953, na França, escrita por Pauline Reagé (um dos pseudônimos da escritora e jornalista francesa Anne Célline Desclos, que também assinava Dominic Áury). Na trama, a personagem “O” é uma mulher independente, levada para um castelo por seu amante, René, onde as mulheres eram ensinadas a ser submissas sexualmente aos homens. Apesar de aprender a ser escrava sexual do namorado, “O” é consciente de seu poder sobre os homens e, assim, coloca prazer e submissão lado a lado para alcançar o prazer. Nada mais polêmico e escandaloso.

Ainda que o roteiro não seja de Crepax, a adaptação que ele próprio fez traz todas as características que marcaram a sua obra: erotismo explícito e sem pudores, como no texto original, paixão por desenhar espartilhos e bondages – um deleite para voyeuristas, traço inconfundível e narrativa que exige mais de uma leitura, em que imagem, composição e distribuição dos quadros vão além dos balões de diálogos. A apropriação da trama por Crepax, embora fiel à narrativa original, faz da novela gráfica uma obra diferenciada – é bom ler as duas versões. Essa HQ revela o gosto de Crepax por adaptações literárias, o que fez desde o início de sua carreira. Sua primeira história, aliás, foi uma adaptação de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, que desenhou aos 12 anos.
Filho do primeiro violoncelista do Teatro Scala, de Milão, Itália, Crepax nasceu em 1933. Estudou arquitetura pela Universidade de Milão e, ao mesmo tempo, atuou como ilustrador em trabalhos de publicidade. Produziu capas de revistas e livros, pôsteres e ilustrações para capas de LPs – que lhe deu reputação no meio musical. Até decidir-se pelas histórias em quadrinhos, transitou por assuntos variados, mas seu maior mote foi o erotismo.

“Valentina sou eu!”
Valentina, sua mais famosa criação, veio a se tornar um dos ícones culturais do século 20, chegando a ser considerada a primeira mulher emancipada made in Italy. Assim como – dentro da Cultura Pop e o universo dos quadrinhos – a Mulher Maravilha está para os movimentos de sufrágio e liberação feminina da primeira metade do último século, Valentina está para a mulher moderna que retoma com força os ideais feministas tanto quanto o foi nos anos da contracultura e da revolução sexual, época em que foi criada. Protagonista e regente de seu destino, livre das amarras sociais e comportamentais, pronta a explorar seus desejos sem culpa e abrir caminho à frente de sua história, sem se preocupar com a opinião de uma sociedade falocêntrica ou pedir licença a um homem, surgiu como personagem secundária no terceiro episódio das aventuras do herói Neutron e tomou o lugar do protagonista logo nas primeiras aparições.
Morto em 2003, além de Valentina, Crepax criou outras heroínas, com destaque para Bianca e Anita, publicadas no Brasil pela L&PM, além de adaptar obras de Edgar Allan Poe e Marquês de Sade, entre outros. Sobre sua obra, o cineasta francês Alain Resnais disse: “Seguidamente, é necessário tomar uma página de Crepax e ler várias vezes para captar certos detalhes”. Para novos leitores, A História de “O” é um excelente ponto de partida.

(Originalmente publicado na extinta Revista Brasileiros)