terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Dramaturgia Elizabetana - Barbara Heliodora (Livro)




Além de Shakespeare

Organizado por Bárbara Heliodora, Dramaturgia Elizabetana reúne peças escritas por dois dos mais importantes contemporâneos do bardo.
Por César Alves

Em 15 de maio de 1593, Thomas Kyd foi preso, sob a acusação de alta Traição. Após passar por uma série de torturas, teria acusado Christopher Marlowe de ser o verdadeiro dono de documentos heréticos que estariam em seu poder. Preso, logo em seguida, Marlowe teria assumido a responsabilidade pelos papéis e, até onde se cogita, a passagem estaria diretamente ligada ao seu misterioso assassinato, no dia 30 de maio do mesmo ano, dez dias após ser liberado da prisão.
A história, que poderia estar entre os atos de uma tragédia de William Shakespeare, é apenas um dos poucos e desencontrados dados biográficos de dois dos mais importantes contemporâneos do Bardo, cujas peças A Tragédia Espanhola, de Kyd; e Tamerlão e A Trágica História do Doutor Faustus, de Marlowe, chegam às livrarias brasileiras nas páginas de Dramaturgia Elizabetana (Editora Perspectiva), organizado pela crítica teatral, Bárbara Heliodora.
A Dramaturgia Elisabetana está diretamente ligada ao Renascimento. Revolução de idéias que viria a alterar de forma profunda e irreversível o pensamento e a própria civilização ocidental, iluminando as trevas que marcaram a Idade Média e encerrando uma das noites mais longas da história, a Renascença tem como epicentro a Itália e principais protagonistas famílias poderosas dispostas a promover um retorno ao belo estético clássico, vislumbrando, principalmente, a arquitetura e as artes, incentivando financeiramente ou adotando como protegidos, os mais promissores artistas disponíveis.
Da Itália o Renascimento se espalhou para o resto da Europa e, na Inglaterra, é no universo das letras que seu reflexo se mostrou mais impactante, principalmente na dramaturgia de William Shakespeare que viria a se tornar um dos pilares da cultura ocidental, exercendo influencia sobre tudo o que foi feito na literatura e dramaturgia até os dias de hoje.

O bardo, no entanto, não é astro solitário na constelação conhecida como Dramaturgia Elisabetana. De Ben Johnson a John Webster, passando inclusive por um ancestral distante do poeta americano T.S. Eliot, Sir Thomas Elyot, a era de ouro da dramaturgia, que vai do reinado da rainha Elizabeth I (1558-1603) e James (1603-1625), foi marcada por uma efervescência de obras e autores que vão muito além das tragédias de Shakespeare e é aqui que reencontramos os dois protagonistas do primeiro parágrafo, Thomas Kyd e Christopher Marlowe.
Thomas Kyd é tido como um dos dramaturgos da Era Elisabetana que teriam influenciado a obra de William Shakespeare. Pai do gênero que se tornou conhecido como “Tragédia de Vingança”, é aqui representado pelo texto que lhe valeu o título. Trama de sangue e vingança, A Tragédia Espanhola revela semelhanças incontestáveis com diversos dos textos do bardo, principalmente, Hamlet. Como o leitor poderá conferir na tradução, até então inédita, realizada por Bárbara Heliodora para a presente edição.

Sympathy for the Devil
Alguém já disse que Shakespeare está para a dramaturgia e poesia da Era Elisabetana como os Beatles para a musica do século vinte. Sendo assim, com o perdão da analogia pop previsível, a ninguém menos do que Christopher Marlowe cabe o título de Rolling Stones. Mente perigosa, tanto para momento político e social em que viveu quanto para sua própria segurança – como seu trágico destino acabou por comprovar –, Marlowe produziu uma série textos fundamentais para a poesia e dramaturgia elisabetana durante sua existência fugaz, dentre os quais se destacam Tamerlão e A Trágica História do Doutor Faustus da presente edição. Se o primeiro comprova de maneiro inquestionável o lugar de seu autor entre os maiores dentre os precursores do Bardo – se não o maior –, o segundo o coloca de forma definitiva entre os grandes nomes da dramaturgia ocidental.

Livre pensador, poeta, dramaturgo e adepto dos excessos do tabaco, do álcool e da carne – fáustico por natureza, dizem alguns, não sem razão – é praticamente inevitável fugir do clichê “artista que encarna a própria obra”, quando se trata de Marlowe e sua peça mais conhecida. Afinal, é em A Trágica História do Doutor Fausto que as idéias de Christopher Marlowe se manifestam de forma aberta, além de traçar as premissas que possibilitariam uma nova forma de teatro a partir da herança medieval.
Inspirado em um personagem real, o mito do homem de ciências que aceita barganhar com o Diabo em troca de conhecimento ilimitado já era encenado como peça moral, durante a Idade Média, mas é na adaptação de Marlowe – e, depois, Goethe – que ganha as características que dão forma à maneira como o conhecemos hoje, em suas diversas manifestações através dos anos – indo da releitura de Thomas Mann ao cinema de Murnau. Aqui, a tradição de peça moralizante cristã é mantida em sua estrutura básica, com direito aos personagens do Anjo Bom e o Anjo Mau, representação da consciência e tentação nas profundezas da alma pecadora. Mas Marlowe subverte a tradição, principalmente nas falas do Demônio, antigamente representado como ser caricato e cômico, na interpretação da igreja. O Diabo de Marlowe, mais que um mercador de alma trapaceiro, está para um advogado que nutre simpatia pela humanidade e é em suas falas que mais se identificam a voz do próprio autor.
Filho de um sapateiro que demonstrou muito cedo talento para as artes e vocação para a transgressão, Marlowe também manteve uma atuação política secreta, atuando como espião a serviço de sua majestade. Espírito contestador numa época em que a contestação poderia resultar em sérios riscos, seu assassinato, aos 29 anos de idade, motivado por uma conta de bar, segundo a versão oficial, é carregado de mistérios, dignos de uma trama policial – como o episódio que abre este texto, por exemplo – e, ainda hoje, gera diversas teorias conspiratórias.

Caminhos do Teatro Ocidental
Bárbara Heliodora faleceu em abril do ano passado e, além deste Dramaturgia Elizabetana, publicou, poucos meses antes de sua partida, pela mesma editora, o excelente Caminhos do Teatro Ocidental. Como o próprio título já diz, a obra traça um histórico do fazer teatral no Ocidente, partindo do teatro clássico grego, passando pela Idade Média, Renascimento, até chegar aos nossos dias. Obra de referência, é apenas parte de um colossal legado que a escritora nos deixa para história da crítica e estudos das artes dramáticas que deverá ficar para sempre.

Serviço:

Título: Dramaturgia Elizabetana
Autor: Bárbara Heliodora
Editora Perspectiva
352 páginas

Título: Caminhos do Teatro Ocidental
Autor: Bárbara Heliodora
Editora Perspectiva
424 páginas