sexta-feira, 28 de novembro de 2014

20 Poemas Para Ler no Bonde - Olivério Girondo



A Poesia Passeia de Bonde
Por César Alves

20 Poemas para Ler no Bonde, livro de estréia de Olivério Girondo, é finalmente publicado no Brasil, em edição bilíngüe e ilustrado com fotos de Horacio Copolla.


O poeta tem fome de inspiração, seus olhos devoram a realidade que mastiga à dentadas, engolindo-a num bolo digestivo de imaginário, que digere em criatividade e regurgita em verso e prosa. O viajante tem fome de estrada, seus pés devoram milhas percorridas, engolem paisagens, digerem experiências e regurgita uma mistura da necessidade irresistível de trilhar novos caminhos com a saudade de lugares e pessoas para trás deixados que, de tão intensa, só perde para o imenso desejo de seguir viagem.
Com o perdão do filosofar barato que introduz o texto, caro leitor, é como um amálgama do artista com o viajante que os 20 Poemas Para Ler no Bonde, de Olivério Girondo, nos encantam.
Lançado pela Editora 34, a tradução de Fabrício Corsaletti e Samuel Titan Jr corrige uma das muitas lacunas existentes nas prateleiras de nossas bibliotecas e livrarias de edições nacionais de títulos e autores importantes da literatura produzida na América Latina. Em se tratando de expoentes das vanguardas, então – como é o caso de Olivério Girondo –, são tantos buracos que beiram se tornar um imenso vácuo.

Expoente máximo do Modernismo argentino, Olivério Girondo é também considerado por especialistas como aquele, dentre os poetas das vanguardas latino-americanas, que melhor dialoga com a produção brasileira, principalmente, Oswald e Mário de Andrade.
Originário de uma família abastada de Buenos Aires, muito cedo o autor se deu conta de que as facilidades financeiras que seu berço lhe garantia não poderiam ser desperdiçadas com uma existência fútil, esnobe e cômoda. Sendo assim, ainda muito jovem decidiu tirar proveito de sua condição para abraçar a vida como experiência e saciar-se do banquete das descobertas.
Vivendo de forma quase nômade entre a Argentina e a Europa, apesar de seu espírito boêmio, Girondo dedicou-se de forma apaixonada aos estudos, lendo tudo o que estivesse ao alcance, com especial devoção à literatura e artes em geral. Aqueles eram os anos convulsivos de horror, quando as nações do mundo entravam no primeiro dos dois conflitos mundiais que modelariam a história do século que se iniciava; espanto e fascínio, diante da promessa de possibilidades que as novas invenções e descobertas científicas e tecnológicas prenunciavam; e pulsão criativa, experimental e provocativa, conforme apontavam as vanguardas artísticas européias. Um século novo, exige uma arte também nova, era o que diziam ou pareciam dizer.
Ora, para um garoto com aspirações artísticas e inclinado ao inconformismo, deve ter sido como aquele senhor aposentado, ex-hippie, que hoje não confia em ninguém com menos de sessenta, quando ouviu ainda adolescente alguém pregar: “Não confie em ninguém com mais de trinta!” Ou o garoto suburbano que, em meados da década de 1970, ouviu Never Mind The Bollocks. Here is The Sex Pistols e concluiu: “Eu também posso fazer isso!”
Citações pop e anedotas geracionais à parte, sem medo do afogamento o jovem poeta então saltou de seu trampolim para mergulhar profundamente nas águas do novo, onde a vida artística realmente estava fluindo, num maremoto de ousadia promovido pelas ondas tormentosas dos dada, futuristas, cubistas e surrealistas.
Os 20 Poemas Para Ler no Bonde apresentam um poeta em sintonia com seu tempo e, embora ainda em formação, completamente adaptado às novas propostas criativas de sua época. Mas também, oferecem o olhar do andarilho experiente e, ainda assim, fascinado com a beleza das coisas mais simples, atos e fatos corriqueiros da vida cotidiana, o gigantesco multiverso guardado no micro, imperceptível aos que só tem olhos para o macro; mas claro como o dia para aqueles dotados da capacidade de enxergar além da física dos corpos e das estruturas do concreto.

Todos escritos durante suas andanças por cidades como Buenos Aires, Paris, Veneza e Rio de Janeiro, cada poema convida a vivenciar com o viajante as experiências de sua passagem, enquanto o poeta desperta os sentidos, com saboroso lirismo inspirado no caminhar das mulheres, o olhar de desafio da madura e o rosar das bochechas da virgem inocente, em resposta ao mesmo flerte; a cacofonia das conversas desconexas entre amigos ébrios; a máquina motorizada que segue em descompasso e, mesmo com o ronco de sua artificialidade, não quebra a naturalidade com que transcorrem os dramas pessoais dos que passam, vão ou ficam e dos que bebem, conversam, namoram; assim como a cidade que, aos pouco, toda a natureza cobre, em harmônica desarmonia acelerada.
 Publicado originalmente na França em 1922, o livro só saiu na Argentina em 1925. Um ano antes, Girondo retornou à Buenos Aires, onde ajudou a agitar o modernismo local, como colaborador do órgão difusor das vanguardas hispano-americanas, a revista Martín Fierro (1924-1927) e consagrou-se como poeta e autor de diversos livros, com destaque para Calcomanias (1925), Espantapájaros (1932) e Persuasón de los dias (1942), que merecem artigos próprios para discorrer a respeito.
Além de bilíngüe e ilustrada, a edição brasileira de 20 Poemas para Ler no Bonde conta com reproduções de trabalhos de Horacio Coppola, figura central da fotografia latino-americana, um dos fundadores do Cineclube de Buenos Aires, em 1920, que, em 1932, durante viagem à Alemanha, travou contato com a Bauhaus e a fotógrafa Grete Stern, com quem veio a se casar. Em 1935, o casal promoveu a primeira exposição de fotografia moderna na Argentina.
Antes tarde do que nunca, a feliz chegada do livro de estréia do poeta argentino, como primeiro título dele publicado no Brasil, talvez sinalize como ponto de partida para uma possível reedição de sua obra, para o deleite dos leitores brasileiros.
Para ler no bonde, no ônibus, no metrô, no taxi ou no avião.

Trecho:
“A cidade imita um papelão uma cidade de pórfiro. Caravanas de montanhas acampam nos arredores. O Pão de Açúcar basta para adoçar a baía inteira o Pão de Açúcar e seu teleférico que há de perder o equilíbrio por não usar uma sombrinha de papel (...)”.


Serviço: 20 Poemas Para Ler no Bonde. Autor: Olivério Girondo. Tradução: Fabrício Corsaletti e Samuel Titan Jr. Editora 34. 112 páginas. Fotografias de Horácio Coppola.

sábado, 1 de novembro de 2014

Gothica - Gustave Flaubert (Livro)




Retrato do Realismo quando Jovem Mágico
Por César Alves

“Emma Bovary c´est moi” (Emma Bovary sou eu), teria declarado Gustave Flaubert, perante o tribunal, defendendo-se das acusações de ofensa à moral, à religião e aos bons costumes, referindo-se à sua personagem mais famosa, a protagonista de Madame Bovary, uma das obras mais importantes do Realismo, na historia da literatura universal.
O autor foi absolvido, veredicto tão justo quanto absurdos eram as acusações e o próprio julgamento.
Bom, sobre Flaubert, Bovary, vida e obra do autor, muita coisa já foi escrita e por gente mais gabaritada do este escriba que prefere, então, ir direto ao verdadeiro tema deste artigo, os contos de juventude escritos por ele e reunidos no ótimo Gothica, lançado pela editora Berlendis & Vertecchia. 
Aqui, encontramos um outro Gustave Flaubert. O jovem Gustave Flaubert que escrevia contos de inclinação fantástica e experimentava com a fantasia e o sobrenatural. Em Raiva e Impotência, o sono pesado do personagem é o estopim para que o autor explore um de nossos piores medos e dos mais caros à literatura de horror clássica: ser enterrado vivo. Bibliomania conta a historia de um colecionador de livros compulsivo, dono de uma vasta biblioteca que busca aumentar a qualquer custo de forma doentia. A genialidade da trama – tão absurda quanto é o final surpreendente – está numa característica do alfarrabista fóbico: ele não sabe ler. 

Fosse obrigado a escolher dois contos, entre os cinco ótimos que compõem a coletânea, ficaria com o maior deles, O Sonho do Inferno, e O Funeral do Doutor Mathurim, que não irei descrever aqui para sugerir ao leitor que vá atrás do livro e descubra por conta própria do que estou falando.
Se já era Bovary, aqui não vem ao caso. Ainda não era o Flaubert – pelo menos, o que conhecemos. Na época, aliás, poucos apostariam que o garoto um dia iria abalar as estruturas de instituições sagradas, como o casamento, e chocar a sociedade burguesa com seus romances corajosos, que chafurdavam na lama de temas, até então, cascudos, como o adultério e a hipocrisia da religião e dos valores burgueses.  Era jovem, ambicioso e ainda um tanto quanto mágico para alguém que viria a se tornar um dos pilares do Realismo. Talvez o período de gestação do grande escritor que viria a ser e conceber Bovary.
Embora demonstrando certa ingenuidade filosófica juvenil, típica da idade, já dizia a que vinha. Basta ler ao conto de maldição, traição e vingança, A Peste em Florença, e seus protagonistas para entender do que falo.


Serviço:
Título: Gothica
Autor: Gustave Flaubert
Editora: Berlendis & Vertecchia