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sábado, 3 de dezembro de 2016

Histórias da Mesa - Massimo Montanari



Casos gastronômicos saborosos

Livro de Massimo Montanari reúne histórias curiosas dos séculos XIII ao XVII sobre nosso comportamento à mesa.
Por César Alves

Na Nápoles do século XIV, durante uma refeição oferecida pelo rei Roberto I a Dante Alighieri, o monarca teria ficado espantado com o comportamento nada convencional do poeta à mesa. Rompendo com todos os protocolos de bons modos, principalmente diante de um membro da realeza, o autor de A Divina Comédia esfregava carne e vinho nas próprias vestimentas.
Em Rivotorto, por volta do ano de 1225, Francisco de Assis pretendia suplicar ao imperador que lançasse um édito geral, obrigando todos que tivessem recursos a espalhar trigo e grãos pelas ruas para que “os passarinhos e as irmãs cotovias pudessem tê-los em abundância”, como parte de sua concepção do que seria uma verdadeira ceia de Natal. Um banquete geral, no qual os pobres e os mendigos fossem saciados pelos ricos e que mesmo os animais comecem mais.
As duas histórias, aqui bem resumidas, são exemplos de alguns dos casos deliciosos e curiosos reunidos pelo historiador e pesquisador, Massimo Montanari no ótimo livro Histórias da mesa, que acaba de sair no Brasil.
Dividido em 22 capítulos, o livro traz casos – alguns verídicos, outros um tanto quanto duvidosos – pinçadas pelo autor de registros históricos que vão do século XIII ao XVII. Alguns, como os citados acima, protagonizados por celebridades históricas, outros tendo como personagens figuras anônimas.
Aqui ficamos sabendo como, durante a celebração de um casamento, os convidados foram intimados a comparecer diante dos magistrados, em até três dias, para se defender das infrações contra a “Sereníssima”, tendo como prova do crime a carne de caça na mesa e as espinhas de peixe das sobras. “Não sabeis que, nos banquetes de núpcias, é proibida a mistura de carne e peixe?” Observava a acusação.
Professor de história medieval na Universidade de Bolonha, Itália, Massimo Montanari é pesquisador gastronômico e organizador de História da Alimentação (Estação Liberdade) e O mundo na cozinha – História, identidade, trocas (Estação Liberdade e Editora Senac-SP).

Serviço:
Histórias da Mesa
Autor: Massimo Montanari
Tradução: Federico Carotti
Editora: Estação Liberdade

232 páginas

(Publicado originalmente na edição número 27 da revista Cenário - www.revistacenario.art.br)


terça-feira, 28 de junho de 2016

Ryunosuke Akutagawa, o Mestre da Narrativa Breve



Sob o signo do Dragão

Pai do conto japonês, influência para o cinema de Akira Kurosawa e um dos arquitetos da literatura moderna de seu país, Ryunosuke Akutagawa volta às livrarias brasileiras em nova tradução e textos inéditos.
Por César Alves

Descrito como uma mistura de réptil com marsupial de corpo humanoide e baixa estatura, o Kappa é quase uma espécie de Chupa-Cabras dotado do mesmo espírito zombeteiro de nosso Saci.
Parte das lendas da cultura milenar japonesa, conta-se que vive a espreita na beira dos rios para pregar peças nos viajantes que passam.  Permeado por criaturas fantásticas assim, o rico folclore nipônico deu a ele uma reputação duvidosa. Apesar da aparência engraçada que muitas das descrições podem sugerir, o hábito de afogar pescadores e banhistas desatentos faz do Kappa criatura traiçoeira. Tal característica pode estar entre os motivos que levaram Ryunosuke Akutagawa a escolher os Kappas como protagonistas do conto alegórico que abre a coletânea Kappa e o Levante imaginário, lançamento da editora Estação Liberdade.
Publicado em 1927, Kappa é um dos últimos textos conhecidos de Akutagawa. Narrado por um interno em um hospital psiquiátrico que alega ter sido levado ao mundo dos kappas e convivido com as criaturas, a trama gira em torno de seu relato fantástico.
Denominado apenas como Paciente de número 23, ele descreve uma sociedade não muito diferente da dos humanos, mas com características muito particulares. Um bebê kappa, por exemplo, já nasce falando e, no momento do parto, é questionado se está pronto ou não para vir ao mundo. Sendo a resposta negativa, um tubo é inserido no ventre da mãe e seu conteúdo sugado, como que esvaziando a um balão. Embora suas religiões sejam as mesmas que as nossas, a mais influente é a Modernista ou Vitalista. Conforme o personagem descobre durante visita a um de seus templos, seus seguidores têm como apóstolos Strindberg, Nietzsche, Tolstói, Doppo Kunikida e Wagner.
Sob o divertido e inocente disfarce de fábula infantil, o texto esconde uma contundente crítica à sociedade moderna. Na época de sua publicação, foi acusado de ser um manifesto em defesa do socialismo, pelo qual Akutagawa nutria simpatia. Uma das críticas, no entanto, enxergava em suas linhas uma visão sombria em relação à humanidade como um todo, ganhando aprovação do autor como a leitura mais próxima de suas intenções.
Akutagawa e Kurosawa
Celebrado como o pai do conto japonês e mestre da narrativa curta, sua escrita é marcada pela preocupação detalhista ao descrever ambientes, épocas e situações. Em sintonia com a nova literatura praticada na época, fruto da liberdade criativa proposta pelas vanguardas ocidentais, seu estilo abre espaço para experiências no que diz respeito à forma e conteúdo. Em No Matagal, por exemplo, a investigação do assassinato de um samurai nos apresenta o mesmo fato pela ótica de sete personagens diferentes, em um caso de mistério onde nada é o que parece ser. Sua maestria na condução da trama prende o leitor e oferece um final surpreendente. Quase uma transposição da literatura policial do ocidente para o Japão feudal, o conto forneceu a Akira Kurosawa o enredo para o premiado Rashomon, filme dirigido por ele em 1950 e que entrelaça em adaptação para o cinema dois contos de Akatagawa – o outro, do qual o cineasta tirou o título, também está presente aqui.
Os dez contos que compõem Kappa e o Levante imaginário revelam a versatilidade e ecletismo de um autor apaixonado por seu ofício. Desde a infância, Akutagawa encontrou refugio nos livros. De forma compulsiva, leu todos os títulos da biblioteca da família, composta praticamente de literatura antiga japonesa e chinesa. Homem de seu tempo sofreu também influência de autores ocidentais como Ibsen, Strindberg, Baudelaire, Oscar Wilde e outros. A forma como combinou tais referências para criar uma obra única e original, faz dele um dos principais arquitetos na construção da moderna literatura japonesa. Seja na fase feudal de Os Salteadores, ou na nação moderna que despontava no início do século XX de Rodas dentadas, é sempre o Japão a fornecer o ambiente pelo qual o autor passeia com desenvoltura. Não é a toa que seu nome batiza hoje o mais importante prêmio literário de seu país.
Breve e trágica, vida refletiu na obra
Não espere por fábulas edificantes ao entrar no universo de Ryunosuke Akutagawa. Se existe uma moral da história aqui, é a amoralidade incrustada nas profundezas do espírito humano. Na maioria das vezes, seus personagens são criaturas à margem e prontas a mentir e até realizar atrocidades, alguns por puro deleite pessoal, outros, em nome da sobrevivência ou em situações limite que os colocam em confronto com o lado mais sombrio de sua natureza. Como descobre o servo solitário que protagoniza Rashomon, “não há espaço para escrúpulos quando se quer remediar uma situação irremediável”.
Reconhecida hoje como uma das principais colaborações do Japão à literatura universal, a obra de Ryunosuke Akutagawa possui forte traço autobiográfico. Sua percepção aguçada e negativa em relação à índole humana é fruto de sua origem e vivência pessoal. Nascido em 1892, o autor veio ao mundo em meio a um país que tentava se afirmar como parte da comunidade internacional, apenas quarenta anos após a revogação do xogunato, responsável por trezentos anos de isolamento e estagnação. Na época, o Japão praticamente se dividia em dois mundos distintos: Um que tentava se recuperar do atraso e firmar os pés na modernidade, importando tecnologia e sendo invadido pela cultura ocidental; e outro que rejeitava adaptar-se aos novos tempos, mantendo-se fiel às tradições e superstições que regiam o período feudal, caso de sua família.
O autor teria nascido no ano do dragão, no dia do dragão e na hora do dragão. Para completar, as idades de seus pais na época, segundo os conceitos numerológicos de suas crenças, eram representativas de mau agouro, o que o tornava duplamente amaldiçoado. Pela tradição, a criança deveria ser abandonada a própria sorte. Tentando enganar os deuses, sua família bolou um estratagema que consistia em deixá-lo em local conhecido para que um amigo o encontrasse e o levasse para casa, o que foi feito. Vitimada pela loucura, sua mãe veio a falecer poucos anos após seu nascimento, sendo seguida pelo pai meses depois. Isso colaborou para que fosse considerado de sangue ruim e destinado ao fracasso, tornando-se quase um pária em seu núcleo social.
Criado por um tio, Akutagawa cresceu sob a marca da rejeição, sentimento que o acompanhou por toda a vida e que, ao lado do medo de ter herdado da mãe o gene da loucura, contribuiu para o quadro depressivo que pontuou sua trajetória e refletiu em sua literatura. Sofrendo de abatimento nervoso, problemas gastrointestinais e ataques de alucinações, o autor morreu aos 35 anos de overdose de cianeto de potássio. Era sua terceira tentativa de suicídio. Em nota de despedida, escreveu: “Por mais paradoxal que pareça, agora que estou pronto, acho a natureza mais bela do que nunca. Vi, amei e compreendi mais que os outros.”


Serviço: Kappa e o Levante imaginário, tradução Shintaro Hayashi, Editora Estação Liberdade, 352 páginas.

Publicado originalmente na revista Brasileiros, em 13.10.2011

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A Lenda do Santo Beberrão - Joseph Roth



A Redenção da Boemia

Um dos melhores escritores europeus do período entre guerras, Joseph Roth, volta à nossas livrarias com as traduções de A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy.
Por César Alves

Você está numa biblioteca ou livraria e, como que por mágica, um estranho aparece e se identifica como sendo a Morte, avisando-lhe de que seu tempo está prestes a chegar ao fim. Mas, como é do comportamento do Ceifador – a Morte odeia se atrasar e por conta disso, sai cedo de casa para cumprir com seus afazeres –, ele se adiantou demais e informa que você ainda tem entre vinte minutos e meia hora de vantagem, antes de seguirem viagem. Sabendo que é muito pouco tempo para qualquer outra coisa, ele sugere que escolha um livro e faça sua última leitura, já que gosta de ler.
A pegadinha é: Que obra você escolheria?
A brincadeira era feita entre amigos que gostavam de literatura, normalmente ao redor de uma mesa de bar e com muita cerveja. Depois de ouvir da maioria que escolheriam seus poemas prediletos de As Flores do Mal de Baudelaire, Uma Temporada no Inferno de Rimbaud, algo do Bandeira ou um conto de Tolstói e etc, eu dizia que convidaria a Indesejada para ir comigo até um bar para tomarmos a saideira definitiva e, dando uma de Compadre da Morte, como no mito folclórico, tentaria ludibriá-la, embriagando-a e convencendo a danada a cair na farra em direção ao Baixo Augusta. Não funcionando, escolheria como livro derradeiro o belo A Lenda do Santo Beberrão de Joseph Roth.
A protocrônica cotidiana acima é só para falar do grato lançamento – não tão recente, aliás – da Editora Estação Liberdade. Há alguns meses, a editora lançou por aqui traduções de dois títulos de Joseph Roth; A Lenda do Santo Beberrão – principal tema de nosso papo aqui – e Hotel Savoy.
 Considerada “Obra-testamento”, A Lenda do Santo Beberrão foi o último livro escrito por Joseph Roth, também autor de A Teia da Aranha (1923) e A Marcha de Radetzky (1932) e um dos grandes autores universais pouco lidos no Brasil.
A escolha da pedida literária para meus últimos vinte minutos sobre a terra não é apenas por ser uma das minhas preferidas, é que também é possível ler o livro, do início ao fim e sem pressa, em pouco mais de um terço de hora. Trata-se de uma belíssima e curta novela de 22 páginas, capaz de tocar até mesmo aqueles que trazem um bloco de mármore ao invés de um coração batendo no peito.
Escrita como um misto de fábula e parábola cristã – mas nada carola é bom frisar –, A Lenda do Santo Beberrão começa como uma crônica cotidiana ambientada na Paris das primeiras décadas do século vinte, quando toda a Europa vivia envolta em névoas de incerteza, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.
Seu protagonista é um mendigo e alcoólatra que vaga pelas ruas e cantos menos iluminados da Cidade Luz, como os muitos que assim o faziam na época. Certa noite, quando se abrigava sob uma ponte do Rio Sena, aproxima-se um senhor muito bem vestido que puxa assunto e lhe oferece uma grande soma em dinheiro (200 Francos). Segundo o estranho benfeitor, o sem teto teria sido posto em seu caminho por designação divina, tendo em vista que ele, sendo um homem de fé, estava a cata de uma ação benevolente a um desconhecido como que para pagar uma promessa em agradecimento à bondade de Deus que nunca lhe faltara.

Apesar de suas condições, o miserável recusa a oferta, não por orgulho, mas por nutrir um profundo senso de retidão e idoneidade. Jamais aceitaria uma soma monetária por caridade, a ser que pudesse compensá-la com seu trabalho ou ter como devolvê-la, como um empréstimo, assim que se encontrasse em melhor situação.
Sendo ambos devotos de Santa Terezinha de Lisieux, o impasse é resolvido com o mendigo se comprometendo a devolver o valor que lhe é entregue à caixa de donativos da igreja da santa, no prazo de uma semana.
Com mais dinheiro do que jamais possuíra, o pobre coitado aproveita para alugar um quarto num albergue, tomar um banho e dormir numa cama, como não fazia há anos. Boêmio e incapaz de resistir ao chamado da boemia, ele torra todo o dinheiro com bebidas e mulheres.
A partir daí, a trama gira em torno do protagonista, personagens que ele encontra e as situações inusitadas por que passa durante sua obstinada busca para cumprir com sua promessa. Ele consegue o dinheiro, às vezes quase que por milagre, mas de uma vez. Mas, sempre que está prestes a pagar a dívida para com a santa, algo acontece.
Além de ser sua obra derradeira, o motivo de A Lenda do Santo Beberrão ser considerada a “obra testamento” de Joseph Roth também diz respeito ao conteúdo autobiográfico da novela. O protagonista da trama, nada mais é que um alter ego do autor, tendo com seu criador diversos pontos em comum. Assim como o mendigo, Roth também mantinha uma vida de andarilho. Embora sua trajetória e carreira tenham obtido reconhecimento na época, entre a Alemanha e a França, o autor nunca adotou um endereço fixo ou duradouro, viajando e passando por diversos países europeus até seus derradeiros dias. Além de religioso, como seu personagem, Roth também era alcoólatra, entre outras coisas em comum.
Adaptado para o cinema pelo diretor italiano Ermano Olmi, A Lenda do Santo Beberrão ganhou o Leão de Ouro de Veneza de 1988. O filme merece ser visto. Além de ser uma feliz adaptação, também e traz a boa interpretação do holandês Hutger Hauer como o mendigo.
Filho de uma família judaica de Brody, hoje parte da Ucrânia, Joseph Roth nasceu em 1894, nos dias finais do Império Austro-Húngaro. Além de brilhante jornalista, sua obra ficcional foi marcada por personagens à margem de uma Europa angustiada pelo pesadelo diário que marcaram os dias do período entre guerras, que o autor conseguiu retratar como poucos.
Deprimido com os acontecimentos que assolavam o continente europeu, precedendo a inevitável guerra, principalmente a ascensão do nazismo na Alemanha, e cada vez mais mergulhado no alcoolismo, Joseph Roth faleceu em Paris, em 27 de Maio de 1939.

Joseph Roth nas livrarias:
Como dito acima, apesar de sua importância e qualidades indiscutíveis, Joseph Roth parece pouco lido ou, no mínimo, menos comentado e difundido do que sua obra merece. Mas existem bons títulos do autor em nossas livrarias e, além dos dois títulos lançados pela Estação Liberdade – A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy –, sugiro outros dois ótimos livros da Companhia das Letras abaixo:

Berlim Ótimo título da não menos ótima coleção Jornalismo Literário da editora, o livro compila artigos que revelam o brilhantismo do trabalho de Joseph Roth como homem de imprensa. Aqui, o autor faz uma crônica da Berlim da década de 1920. Em suas andanças, o autor destrincha o cotidiano da antiga capital prussiana, quando coração da recém-inaugurada República de Weimar. Passeia por bosques e praças e edifícios e bondes, refletindo sobre o significado da natureza, diante da paisagem artificial da modernidade. Caminha entre bairros de imigrantes, decifra a vida noturna berlinense e visita campos de refugiados e faz um tour pela cidade ao lado de um criminoso que acaba de sair da prisão para, através da ótica de seu companheiro, compreender a medida das transformações ocorridas na metrópole.


Aqui, reencontramos o grande escritor de ficção e fascinante tradutor de seus dias. Usando como pano de fundo os dias que marcaram o início da primeira guerra, Joseph Roth narra a trajetória do judeu e muito religioso, Mendel Singer, para criar uma releitura do livro de Jó. Homem modesto e temente a Deus, Singer vive com sua família numa cidadezinha russa. Apesar de humildes, são felizes e gratos pela vida que levam. A tranqüilidade e os bons dias que Singer atribui à benevolência da Providência Divina acabam com o estouro do conflito e, assim como o personagem bíblico, o personagem descobre-se face a um teste para comprovar sua fé.