segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Contra vampiros emos e lobisomens vegans, Lovecraft é a cura - Artigo


Contra vampiros emos e lobisomens vegans, Lovecraft é a cura

Vida e obra de um dos mais criativos e brilhantes autores fantásticos da era moderna ganham as livrarias brasileiras, em plena era do Terror Ritalina.
Por César Alves

A galeria de monstros assustadores que povoam o imaginário humano desde tempos imemoriais, como vampiros, zumbis, gárgulas, lobisomens e demais criaturas mitológicas e folclóricas, quase que em sua totalidade, vem passando por um processo de transformação e modernização, desde o advento da indústria do entretenimento – nem sempre bem vindo, tendo em vista os vampiros emos e licantropos vegetarianos dos livros e filmes blockbusters recentes, que fazem a cabeça da garotada. A mesma indústria que ajudou a tornar ainda mais populares e não menos assustadores – nas interpretações de Boris Karloff, Lon Chaney, Max Schreck, Bella Lugosi e Christopher Lee – parece hoje decidida a destruir a reputação dos personagens de terror clássicos.

Um aficionado por teorias conspiratórias poderia nos chamar a atenção para o detalhe de que ela também é responsável por alguns dos protagonistas dos terrores noturnos contemporâneos, como Freddy Krueger, Jason de Sexta-feira 13, Alien e o Predador, entre muitos outros.
Não acho que seja o caso e estou quase certo de que a coisa tem mais a ver com a percepção, por parte dos produtores e empresários culturais, de que adolescentes, com déficit de atenção, hiperatividade e muito dinheiro dos pais pra gastar, ofereciam um nicho inexplorado para autores e diretores com dislexia. Inventaram o Terror Ritalina ou Ficção Fantástico-Anencefálica (rótulos meus – prometo, que serão os primeiros e últimos).
Achei que não tinha mais volta, estávamos pegos e até passei a amaldiçoar Anne Rice e a culpar seus vampiros metrossexuais – apesar de não listá-la entre os autores e roteiristas a quem me refiro, afinal, possui seus méritos – como precursora disso tudo. Isso até que um de meus sobrinhos, depois de ler O Iluminado e outros de Stephen King, me perguntar por H. P. Lovecraft e me pedir emprestado alguns de seus livros. Levou três deles e, pouco mais de uma semana depois, voltou em busca de outros.
Ta bom, pode ser fato isolado, mas, pouco depois, na livraria de um amigo, chegam algumas garotas saudáveis, bem alimentadas, recém saídas da adolescência, prováveis leitoras da série Crepúsculo, procurando por Lovecraft, citando de memória os títulos que queriam.
Percebendo minha surpresa com a cena, depois de as moças saírem, comenta o amigo livreiro:
“O Lovecraft anda bem popular, entre a garotada. Todo dia, vem alguém aqui procurando. Sempre uma molecada nova, meio moderninha. Sempre foi Cult. Mas ta ficando pop entre os adolescentes.”
Ele disse num tom jocoso, mas, se fosse verdade, achei ótimo, perceber que, ao menos uma parte dos garotos e garotas de hoje estivessem abandonando o Harry Potter, principalmente, sabendo o que a leitura de O Alquimista fez no processo de estupidificação de boa parte dos garotos e garotas da minha época.

Se Lovecraft virou pop, não tenho ainda certeza, mas ver o Cthulhu – entidade cósmica, criada e citada pelo autor em diversas de suas histórias – aparecer em um episódio recente da escatológica animação de Matt Stone e Trey Parker, South Park, pode ser um sinal.
Considerado um dos maiores mestres da arte literária em explorar o fantástico e o medo, Howard Phillips Lovecraft vai muito além. Nascido em 1890, admirador incondicional de Edgar Allan Poe, sua colaboração para com o gênero extrapola concepções, estéticas e convencionais. Criador de toda uma mitologia própria de seres fantásticos e criaturas tão inacreditáveis, quanto assustadoras, Lovecraft praticamente reinventou a literatura de terror, ao misturar com desenvoltura e muita criatividade, o sobrenatural, o científico e o filosófico.
Dono de um intelecto único e pesquisador dedicado do oculto e ciências gerais, em sua obra, o impossível e o fantástico não eram gratuitos. Embora concebido como ficção e sem a pretensão do realismo, em sua grande maioria, para serem publicados em revistas baratas e escapistas – pulp fictions –, suas tramas e situações, seu universo e os personagens que nele vivem, são criados dentro dos limites do possível e, como toda grande obra do gênero, é da ocorrência fantástica, dentro dos limites do real, que provoca medo. Carregadas de seres criptozoológicos, descobertas criptocientíficas e conceitos criptofilosóficos, narrativa alucinante, fruto de uma mente brilhante – insana, para muitos –, suas histórias lhe renderam uma série de rótulos para descrevê-la como única e original, como Weird Fiction, para ficarmos apenas na minha preferida.
Fruto ou não de uma suposta redescoberta do autor por novos leitores, a ótima notícia é que a obra de Lovecraft vem recebendo de editoras como a Iluminuras e Hedra o respeito merecido e, como exemplo e indicação, tanto para novos, quanto para admiradores antigos, segue abaixo alguns dos títulos imperdíveis, disponibilizados nas livrarias brasileiras recentemente.
Pela Iluminuras, que já publicou outros títulos como A Cor que Caiu do Céu, Nas Montanhas da Loucura e O Horror Sobrenatural em Literatura (obra de não ficção, onde o mestre desenvolve um estudo profundo sobre o gênero que adotou e revolucionou), acaba de lançar também O Horror em Red Hook, A Maldição de Sarnath e A Procura de Kardath.
Já a editora Hedra, que há pouco tempo publicou Os Melhores Contos de H.P. Lovecraft, lança A Vida de H.P. Lovecraft, estudo biográfico e artístico, escrito por J.T. Joshi, respeitado mundialmente como um dos maiores especialistas sobre o autor.
Nada mais a dizer, aos amigos e amigas leitores, deleitem-se:

Serviço:

Título: À Procura de Kadath
Título: A Maldição de Sarnath
Título: O Horror de Red Hook
Autor: H.P. Lovecraft
Editora Iluminuras

Título: Os Melhores Contos de H.P. Lovecraft
Autor: H.P. Lovecraft
Título: A Vida de H.P. Lovecraft
Autor: S.T. Joshi
Editora: Hedra




segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Robert Walser - Absolutamente Nada e Outras Histórias



A Intencionalidade Superior de Robert Walser

Livro reúne 41 textos curtos do autor suíço que influenciou nomes como Elias Canetti, Franz Kafka e Herman Melville, entre outros, oferecendo nova oportunidade aos leitores brasileiros de mergulhar no universo literário de um dos grandes autores europeus esquecidos por nossas editoras.
Por César Alves

No Brasil, podemos ler menos coisas de Robert Walser do que sobre ele. O que não significa que estamos bem servidos de material biográfico sobre o autor, já que sua trajetória pessoal continua envolta em mistério, passagens jamais confirmadas de fontes pouco confiáveis e um sem número de lendas que, graças ao culto em torno de Walser e sua obra, só fizeram crescer, desde sua morte. Mas, ao contrário do que diz Walter Benjamin na abertura de seu artigo sobre Robert Walser, mal parafraseado por este amigo que vos escreve, no Brasil o autor é muito comentado e muito, muito pouco mesmo, lido.
Praticamente ignorado por nossas casas editoriais, apesar do peso de seu nome – além de Benjamim, Walser é citado como referência e verdadeira admiração por nomes como Herman Melville e Franz Kafka, entre outros – e da incontestável qualidade e grandiosidade de sua obra, tendo apenas uma quantidade miserável de seus títulos traduzidos e publicados por aqui – se não me engano, até agora, apenas dois de seus livros haviam sido lançados no Brasil. Motivo mais que justo para recebermos com festejos e fogos de artifício a chegada de Absolutamente nada e outras histórias, que a editora 34 acaba de lançar.
Reunindo 41 textos curtos do autor, o volume foi traduzido diretamente do alemão por Sérgio Tellaroli e oferece oportunidade imperdível aos leitores brasileiros de entrar em contato com autor cuja simplicidade narrativa – carregada de imaginação, inventividade e sensibilidade, no que diz respeito ao conteúdo – ultrapassa o sublime, expondo uma complexidade temática, filosófica e lírica, poucas vezes vista na literatura universal.

O que este escriba traduz aqui – muito porcamente – por simplicidade narrativa e que Walter Benjamin chamou, corretamente, de “extrema ausência de intenção”, em seu excelente artigo sobre Robert Walser (pode ser encontrado na edição brasileira de Magia + Técnica. Arte + Política, de Walter Benjamin, publicado no Brasil pela Editora Brasiliense), seria um dos motivos de o autor ser tão pouco explorado e praticamente ignorado por estudiosos e especialistas em literatura, tão dedicados que são às formas e técnicas da construção estética, como reguladora e juízo de valor da escrita como arte. O fato de o próprio Robert Walser, certa vez, ter declarado jamais revisar seus textos, ao que tudo indica, talvez tenha colaborado para que sua obra, embora reconhecida, cultuada e sempre reeditada na Europa, tenha recebido muito menos atenção dos especialistas do que realmente merece, ao longo dos anos e décadas.
É ao artigo de Benjamin que, novamente, recorro para dizer que é justamente na ausência de intencionalidade de Walser que pode estar o grande valor de sua escrita de inventividade. Sua despretensão, no fundo, revela uma “intencionalidade superior”, conforme descreve Walter Benjamin – tomado de empréstimo para intitular este texto.
Tal intencionalidade superior em sua ausência de intenções é nítida nos textos que compõem o recente lançamento. O autor levou sua vida de forma nômade e é justamente o olhar humano de um viajante, traduzindo a complexidade da existência, sob a simplicidade da vida e o que ela oferece de melhor e pior o que encontramos em cada uma das deliciosas páginas do livro. Walser amava as mulheres e aqui há muitas delas, no que todas elas têm de delicado e também no que não têm; o amor é força motriz de algumas histórias, portanto, há amor, mas também não há, posto que, para o autor, no fundo, todo individuo é um solitário.
Aqui o autor discorre sobre o romance impossível de uma cegonha e um porco espinho; um anjo que não come porque a comida cansa; a descoberta do amor por um macaco; e a nitidez com que se desmascara a frágil existência humana, quando vista do alto, durante um passeio de balão. Mas há também ensaios sobre a liberdade, considerações sobre O Idiota de Dostoiévski, uma cara de solicitação de emprego nada corriqueira e um humor, fino e sarcástico maravilhoso.
Exemplo da genialidade e brilhantismo do autor de dizer muito, parecendo dizer absolutamente nada, é o brilhante conto que dá nome ao livro. Num breve e pobre resumo deste que vos escreve, fala sobre uma Esposa que vai ao mercado fazer compras, com o objetivo de oferecer um jantar especial ao Marido. Ela pode escolher o que quiser levar e se perde em meio a tanta variedade de produtos e possibilidades disponíveis. Podendo levar de tudo, ela decide levar “absolutamente nada”.

Quando, à noite, o Esposo chega do trabalho, pergunta à Mulher:
“O que teremos para o jantar?”
“Absolutamente, nada!”
Ela responde.
Seu cônjuge estranha, mas nada diz. E a mulher esclarece:
“Precisamos variar o cardápio, pois é um dia especial. Então, hoje me dediquei a preparar absolutamente nada.”
O marido sorri com ternura e sente-se feliz com a dedicação de sua amada.
Eles, então, se sentam à mesa. Preenchem seus pratos com absolutamente nada, saboreiam e se fartam com porções de absolutamente nada e, no final, sentem-se satisfeitos com absolutamente nada.
Nascido em Biel, Suíça, em 1878, Robert Walser escreveu três romances, diversos volumes de contos e prosas curtas, além de incontáveis páginas e artigos para jornais e revistas. Apesar de sua importância e do reconhecido valor de sua obra, até agora, apenas dois títulos de sua autoria estavam disponíveis em nossas livrarias, vertidos para o português: O Ajudante (Arx, 2003), traduzido por Zé Pedro Antunes; e Jacob van Gunten (Cia das Letras, 2011), tradução de Sérgio Tellaroli, o mesmo tradutor de Absolutamente nada e outras histórias, objeto de nosso artigo.
Após uma produção intensa, em 1925, Robert Walser publicou seu último texto Die Rose (A Rosa). Em 1929, aos 50 anos de idade, o autor teria se internado  numa clínica psiquiátrica. Seu estado psicológico só agrava a partir daí, gerando diversas internações, até a última delas, em 1933, na qual permaneceria até o fim de seus dias. Walser teria falecido no natal de 1956, enquanto caminhava solitário, como costumava fazer, nas dependências da instituição mental. Seu corpo teria sido encontrado caído na neve por funcionários.
O culto a Robert Walser e sua obra, só fez aumentar, depois de sua morte. Até hoje, a possibilidade de o autor ter escrito inéditos posteriores a 1925, ainda gera lendas e histórias jamais confirmadas. Uma das lendas relativas aos seus últimos anos de que gosto conta que, durante sua última internação, depois de mais de duas décadas sem publicar e muita duvida no meio literário sobre se o autor ainda estaria ou não vivo, um jovem repórter teria conseguido se infiltrar no hospital para tentar uma entrevista. Segundo reza a lenda, Walser não se comunicava com ninguém, passava seus dias passeando pelas dependências da instituição e cuidando de um jardim, onde teria acontecido o suposto encontro. O repórter teria tentado estabelecer contato com o autor de várias formas. Walser, no entanto, apenas teria ignorado suas investidas, dedicando-se aos cuidados para com o jardim, como se ele não estivesse ali.
Cansado de tentar, certo de que não arrancaria nada e conformado em não obter qualquer resposta às suas perguntas, teria feito uma última tentativa:
_ Se puder me responder ao menos uma pergunta, senhor Walser, me diga se o senhor ainda escreve...
 Tendo como resposta apenas o silêncio, o jovem se despediu e seguiu seu caminho. Já de costas, poucos passos a frente, em direção da saída, o escritor teria exclamado em voz baixa:
_ Eu não estou aqui para escrever. Estou aqui para ser louco.
Fato ou ficção, acho a lenda, no que tem de bela e melancólica, digna de um ficcionista cuja própria vida gera ficção.

Serviço: Absolutamente nada e outras histórias
Autor: Robert Walser
Tradução: Sérgio Tellaroli
Editora: Editora 34
170 páginas