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terça-feira, 3 de abril de 2018

Bob Dylan e Greil Marcus




Bob Dylan e Greil Marcus

Menos disponível nas prateleiras brasileiras do que sua prosa merece, Greil Marcus se inscreve entre os cronistas do universo musical predileto deste que vos escreve.
Por César Alves

Nascido em 1945, Greil Marcus presenciou – às vezes in loco – momentos que redefiniram a musica contemporânea, trabalhando para veículos como Rolling Stone, Creem e Village Voice. Alguns de seus livros, como “Mystery train” (1975) são considerados revolucionários na forma de se fazer crítica de rock. Marcus não acredita no hype e, quando segue uma pauta, vai além do objeto estudado considerando fenômenos sociais e seu contexto histórico.
Daí que seus textos podem citar heréticos medievais, o Dada (é sempre bom lembrar que não existe dadaísmo e, se você não concorda, você é Dada!) e os Situacionistas para chegar ao punk. Infelizmente no Brasil seus livros não são publicados com frequência. Que eu saiba, saiu por aqui apenas a coletânea “A última transmissão”, parte da ótima coleção iêiêiê da Conrad Books (que saudades dessa editora!), cuja reportagem sobre o novo punk (Pós-punk, se preferir), representado por bandas como o Gang of Four e o, ainda iniciante, selo Rough Trade é exemplo do que escrevi acima.
Agora chega às nossas livrarias “Like a Rolling Stone: Bob Dylan na Encruzilhada”, lançamento da Companhia das Letras. Aqui, Marcus debruça-se sobre a histórica gravação de mister Robert Zimmermann de “Like a Rolling Stone”, canção que abre o álbum histórico “Highway 61 Revisited”. O jornalista teve acesso às sessões de gravações do clássico, ocorridas em 15 de junho de 1965, período conturbado na carreira do artista. Dylan vinha de sua estréia com instrumentos elétricos, ocorrida no álbum anterior “Bringing it all back home”, e suas apresentações normalmente culminavam com gritos de “Judas!” vindo da platéia mais purista, que o havia alçado a posto de seu porta-voz – só não perguntaram antes se ele aceitava o cargo.
A verdade é que “Like a Rolling Stone” representa uma virada no conceito criativo do rock. A partir dali, o rock, que também havia influenciado Dylan para sua guinada elétrica, começa a abandonar os temas leves e pode-se dizer que só a partir dai ganha status de arte. Marcus, no entanto, não se fecha numa biografia da música, fazendo uma análise da importância de Dylan através dos artistas que influenciou e o fato de sua obra ainda ser relevante nos dias de hoje.
Curiosidade: Os teclados, que são uma das marcas da canção são tocados pelo lendário guitarrista Al Kooper. A verdade é que Kooper nunca havia tocado um instrumento de teclas antes – pelo menos é o que reza a lenda – e o que está ali é o guitarrista “tentando” fazê-lo.




quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Medo - Histórias de Terror



Antologia do Medo

Contos e algumas das mais assustadoras lendas de terror compiladas em livro que reúne Edgar Allan Poe, Théophile Gautier, Guy de Maupassant, Alexandre Dumas, Émile Zola e outros.
por César Alves


Um dos mais antigos de nossos instintos primordiais, o medo talvez esteja na raiz de nosso sucesso evolutivo e seja uma das razões de nossa espécie ainda estar por aqui. Deve estar ao lado da fome entre os motivos que nos levaram a desenvolver instrumentos de caça e defesa, impulsionando assim nossa ascensão na cadeia alimentar e reduzindo também o risco de sermos devorados vivos por feras. Afugentar as mesmas feras e iluminar a noite, reduzindo assim o perigo de ser surpreendido na escuridão por um grande predador, talvez tenha tido no medo, talvez, antes do desejo de aquecer nossos corpos e alimentos, o ponto de partida para aprendermos nos relacionar com o fogo.
Tamanha importância, talvez explique o que nos move a evitar situações de risco real a nossas vidas, mas, ao mesmo tempo, sermos atraídos pela sensação, mesmo que controlada e por um período de tempo determinado e sob controle, ao ponto de pagarmos para sermos amedrontados em salas de cinema, casas assombradas de parques de diversão e, principalmente, contos e histórias de horror.
Teorias evolutivas à parte – há gente muito mais indicada mais indicada para falar sobre o assunto e nem é este o tema deste artigo –, apreciamos causos de fantasmas, demônios, criaturas sobrenaturais e outras histórias horripilantes, desde o início da civilização, tendo sido contadas e recontadas em volta da fogueira por griots (contadores de histórias cuja tradição remete dos primeiros agrupamentos humanos aos dias de hoje), avôs e avós, à luz de vela quando falta energia elétrica, através dos séculos, tendo sobrevivido, através da narrativa oral, ao passar dos tempos.
Se hoje uma parcela milionária da indústria do entretenimento é movida por nossos piores medos, é sempre bom lembrar que, muito antes de surgir o cinema e ganhar rostos no imaginário pop com as interpretações de Boris Karloff, Peter Lorre, Bela Lugosi, Lon Chaney, Christopher Lee e Vincent Price, entre outros, foram os escritores os primeiros a perceber no filão uma fonte inesgotável de inspiração e leais seguidores.
De consagrados expoentes do gênero, como Edgar Allan Poe, Ambrose Bierce, H. P. Lovecraft, E.T.A. Hoffmann e Bram Stoker – entre os mais notórios –, a Émile Zola, Alexandre Dumas, Gautier e outros; praticamente, todos os grandes nomes da literatura, em um ou mais momentos de sua carreira, flertaram com o segmento. Um bom exemplo é Medo – Histórias de Terror, coletânea que reúne contos e histórias de terror que a Companhia das Letras acaba de lançar.
Dividido em Histórias de Fantasmas, Aparições e Espectros; Histórias de Diabos; Histórias de Cemitérios; Histórias de Animais e Histórias do Reino dos Mortos; o livro reúne contos de autores consagrados, como alguns dos citados acima, com lendas e histórias populares, sem autor conhecido, narradas a gerações, através da tradição oral. Além de oferecer um apanhado dos diversos tipos de narrativas de terror, uma leitura mais atenta pode revelar como se deu o processo evolutivo da narrativa fantástica dos mitos ancestrais do início das civilizações ao terror moderno.
Aqui estão clássicos conhecidos, como o brilhante tratado sobre a culpa, O Gato Preto e o assustador A Máscara da Morte Rubra, ambos do imaginário de Poe; o antológico A Mão de Maupassant, a obra também contém textos menos difundidos dos poetas Théophile Gautier, O Pé da Múmia e Dois atores para um Papel; e Gerard Nerval – o brilhante A Ceia dos Enforcados fecha o livro – ao lado das mais assustadoras lendas populares sobre assombrações, criaturas sobrenaturais, descidas ao Inferno, pactos diabólicos, o medo da morte e, talvez o maior dos terrores, o de ser enterrado vivo.
É justamente a terrível possibilidade de ser dado como morto e, ainda mais sustador, estar consciente de sua situação, que conduz um dos destaques do livro, o conto A Morte de Ollivier Becaille. Tão assustador quanto é bonito, o conto é fruto da mente de Émile Zola e está mais para suspense psicológico do que para sobrenatural.
Narrado em primeira pessoa por um homem que acaba de falecer – o Olivier Becaille do título –, a narrativa acompanha o desespero do personagem, desde a descoberta de sua condição pela esposa, passando pela confirmação do óbito, a chegada do caixão, o velório e sepultamento, nos quais o personagem descreve tudo que se passa em sua volta e, ao mesmo tempo, reflete sobre sua vida até aquele momento. Aos leitores cabe descobrir se o narrador é um espírito ou vítima de catalepsia e é justamente o suspense da dúvida o que nos prende no início.
A maestria narrativa de Zola nos arrasta para dentro do personagem, provando da tensão e desespero que o afligem e vai além, fazendo uso da situação surreal de seu personagem apenas como pano de fundo para uma profunda análise da condição humana.


Serviço:
Título: Medo – Histórias de Terror
Autor: Vários
Organização: Héléne Montardre
Editora: Companhia das Letras
240 páginas



quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A Lenda do Santo Beberrão - Joseph Roth



A Redenção da Boemia

Um dos melhores escritores europeus do período entre guerras, Joseph Roth, volta à nossas livrarias com as traduções de A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy.
Por César Alves

Você está numa biblioteca ou livraria e, como que por mágica, um estranho aparece e se identifica como sendo a Morte, avisando-lhe de que seu tempo está prestes a chegar ao fim. Mas, como é do comportamento do Ceifador – a Morte odeia se atrasar e por conta disso, sai cedo de casa para cumprir com seus afazeres –, ele se adiantou demais e informa que você ainda tem entre vinte minutos e meia hora de vantagem, antes de seguirem viagem. Sabendo que é muito pouco tempo para qualquer outra coisa, ele sugere que escolha um livro e faça sua última leitura, já que gosta de ler.
A pegadinha é: Que obra você escolheria?
A brincadeira era feita entre amigos que gostavam de literatura, normalmente ao redor de uma mesa de bar e com muita cerveja. Depois de ouvir da maioria que escolheriam seus poemas prediletos de As Flores do Mal de Baudelaire, Uma Temporada no Inferno de Rimbaud, algo do Bandeira ou um conto de Tolstói e etc, eu dizia que convidaria a Indesejada para ir comigo até um bar para tomarmos a saideira definitiva e, dando uma de Compadre da Morte, como no mito folclórico, tentaria ludibriá-la, embriagando-a e convencendo a danada a cair na farra em direção ao Baixo Augusta. Não funcionando, escolheria como livro derradeiro o belo A Lenda do Santo Beberrão de Joseph Roth.
A protocrônica cotidiana acima é só para falar do grato lançamento – não tão recente, aliás – da Editora Estação Liberdade. Há alguns meses, a editora lançou por aqui traduções de dois títulos de Joseph Roth; A Lenda do Santo Beberrão – principal tema de nosso papo aqui – e Hotel Savoy.
 Considerada “Obra-testamento”, A Lenda do Santo Beberrão foi o último livro escrito por Joseph Roth, também autor de A Teia da Aranha (1923) e A Marcha de Radetzky (1932) e um dos grandes autores universais pouco lidos no Brasil.
A escolha da pedida literária para meus últimos vinte minutos sobre a terra não é apenas por ser uma das minhas preferidas, é que também é possível ler o livro, do início ao fim e sem pressa, em pouco mais de um terço de hora. Trata-se de uma belíssima e curta novela de 22 páginas, capaz de tocar até mesmo aqueles que trazem um bloco de mármore ao invés de um coração batendo no peito.
Escrita como um misto de fábula e parábola cristã – mas nada carola é bom frisar –, A Lenda do Santo Beberrão começa como uma crônica cotidiana ambientada na Paris das primeiras décadas do século vinte, quando toda a Europa vivia envolta em névoas de incerteza, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.
Seu protagonista é um mendigo e alcoólatra que vaga pelas ruas e cantos menos iluminados da Cidade Luz, como os muitos que assim o faziam na época. Certa noite, quando se abrigava sob uma ponte do Rio Sena, aproxima-se um senhor muito bem vestido que puxa assunto e lhe oferece uma grande soma em dinheiro (200 Francos). Segundo o estranho benfeitor, o sem teto teria sido posto em seu caminho por designação divina, tendo em vista que ele, sendo um homem de fé, estava a cata de uma ação benevolente a um desconhecido como que para pagar uma promessa em agradecimento à bondade de Deus que nunca lhe faltara.

Apesar de suas condições, o miserável recusa a oferta, não por orgulho, mas por nutrir um profundo senso de retidão e idoneidade. Jamais aceitaria uma soma monetária por caridade, a ser que pudesse compensá-la com seu trabalho ou ter como devolvê-la, como um empréstimo, assim que se encontrasse em melhor situação.
Sendo ambos devotos de Santa Terezinha de Lisieux, o impasse é resolvido com o mendigo se comprometendo a devolver o valor que lhe é entregue à caixa de donativos da igreja da santa, no prazo de uma semana.
Com mais dinheiro do que jamais possuíra, o pobre coitado aproveita para alugar um quarto num albergue, tomar um banho e dormir numa cama, como não fazia há anos. Boêmio e incapaz de resistir ao chamado da boemia, ele torra todo o dinheiro com bebidas e mulheres.
A partir daí, a trama gira em torno do protagonista, personagens que ele encontra e as situações inusitadas por que passa durante sua obstinada busca para cumprir com sua promessa. Ele consegue o dinheiro, às vezes quase que por milagre, mas de uma vez. Mas, sempre que está prestes a pagar a dívida para com a santa, algo acontece.
Além de ser sua obra derradeira, o motivo de A Lenda do Santo Beberrão ser considerada a “obra testamento” de Joseph Roth também diz respeito ao conteúdo autobiográfico da novela. O protagonista da trama, nada mais é que um alter ego do autor, tendo com seu criador diversos pontos em comum. Assim como o mendigo, Roth também mantinha uma vida de andarilho. Embora sua trajetória e carreira tenham obtido reconhecimento na época, entre a Alemanha e a França, o autor nunca adotou um endereço fixo ou duradouro, viajando e passando por diversos países europeus até seus derradeiros dias. Além de religioso, como seu personagem, Roth também era alcoólatra, entre outras coisas em comum.
Adaptado para o cinema pelo diretor italiano Ermano Olmi, A Lenda do Santo Beberrão ganhou o Leão de Ouro de Veneza de 1988. O filme merece ser visto. Além de ser uma feliz adaptação, também e traz a boa interpretação do holandês Hutger Hauer como o mendigo.
Filho de uma família judaica de Brody, hoje parte da Ucrânia, Joseph Roth nasceu em 1894, nos dias finais do Império Austro-Húngaro. Além de brilhante jornalista, sua obra ficcional foi marcada por personagens à margem de uma Europa angustiada pelo pesadelo diário que marcaram os dias do período entre guerras, que o autor conseguiu retratar como poucos.
Deprimido com os acontecimentos que assolavam o continente europeu, precedendo a inevitável guerra, principalmente a ascensão do nazismo na Alemanha, e cada vez mais mergulhado no alcoolismo, Joseph Roth faleceu em Paris, em 27 de Maio de 1939.

Joseph Roth nas livrarias:
Como dito acima, apesar de sua importância e qualidades indiscutíveis, Joseph Roth parece pouco lido ou, no mínimo, menos comentado e difundido do que sua obra merece. Mas existem bons títulos do autor em nossas livrarias e, além dos dois títulos lançados pela Estação Liberdade – A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy –, sugiro outros dois ótimos livros da Companhia das Letras abaixo:

Berlim Ótimo título da não menos ótima coleção Jornalismo Literário da editora, o livro compila artigos que revelam o brilhantismo do trabalho de Joseph Roth como homem de imprensa. Aqui, o autor faz uma crônica da Berlim da década de 1920. Em suas andanças, o autor destrincha o cotidiano da antiga capital prussiana, quando coração da recém-inaugurada República de Weimar. Passeia por bosques e praças e edifícios e bondes, refletindo sobre o significado da natureza, diante da paisagem artificial da modernidade. Caminha entre bairros de imigrantes, decifra a vida noturna berlinense e visita campos de refugiados e faz um tour pela cidade ao lado de um criminoso que acaba de sair da prisão para, através da ótica de seu companheiro, compreender a medida das transformações ocorridas na metrópole.


Aqui, reencontramos o grande escritor de ficção e fascinante tradutor de seus dias. Usando como pano de fundo os dias que marcaram o início da primeira guerra, Joseph Roth narra a trajetória do judeu e muito religioso, Mendel Singer, para criar uma releitura do livro de Jó. Homem modesto e temente a Deus, Singer vive com sua família numa cidadezinha russa. Apesar de humildes, são felizes e gratos pela vida que levam. A tranqüilidade e os bons dias que Singer atribui à benevolência da Providência Divina acabam com o estouro do conflito e, assim como o personagem bíblico, o personagem descobre-se face a um teste para comprovar sua fé.


terça-feira, 24 de junho de 2014

Boca do Inferno - Otto Lara Resende



Os Infantes Terríveis de Otto Lara Resende

Contundentes e ainda provocadores, os contos de Boca do Inferno estão de volta às livrarias, em nova edição.

por César Alves

“Em São João Del Rei, onde nasci e me criei, cemitério se debruça na rua, está junto das igrejas. Os mortos ficam espiando os vivos, com o olho irônico do Undiscovered Country”, disse, certa vez, Otto Lara Resende a um entrevistador. Embora pulsando vida e contemporaneidade, talvez seja este olhar, carregado de ironia e provocação inteligente, que dá o tom nos sete contos – todos protagonizados por crianças e pré-adolescentes – que compõem Boca do Inferno, obra seminal do autor mineiro, que acaba de ganhar nova edição, através da editora Companhia das Letras.
Lançado originalmente em 1957, Boca do Inferno teve efeito explosivo no imaginário intelectual brasileiro de sua época. Alvo de debates acalorados no meio literário, o livro foi praticamente boicotado pelas editorias de cultura e literatura da época, que, arbitrariamente, decidiram ignorar ou divulgá-lo em algumas curtas e poucas críticas – negativas, em sua esmagadora maioria. O impacto do lançamento e a maneira inesperada como foi recebido chegou a atingir emocionalmente o já respeitado escritor e jornalista, ao ponto de ele mesmo condená-lo ao limbo, recusando-se veementemente a reeditar a obra até sua morte, em 1992.
Com a autorização da família, o livro só voltou às livrarias em 1998, desta vez, ganhando o merecido reconhecimento que lhe foi negado em sua primeira vinda. Ainda assim, embora celebrado por sua ousadia e por manter-se contemporâneo tantas décadas depois, os elogios vinham com certo constrangimento diante das tramas assustadoras e das ações dos personagens imaginados por Otto Lara Resende. 

O que justificaria tal assombro? Seriam as historias de Boca do Inferno, ainda capazes de impressionar os leitores de hoje?
A leitura desta nova edição pode oferecer as respostas e, certamente, esclarecer o que causou tanta discussão, quando o livro veio à luz pela primeira vez, e o que ainda mantém a obra contundente.
Segundo livro na carreira do autor mineiro, Boca do Inferno vinha na sequência de O Lado Humano (1952). Embora recebido de forma modesta, os contos de seu livro de estréia deram ao autor lugar de destaque entre os novos escritores da época. Já reconhecido por seu brilhantismo como jornalista, cronista e excelente frasista – um dos melhores que este país produziu, diga-se de passagem –, em Boca do Inferno, Otto Lara Resende transferia o ambiente urbano das tramas de seu primeiro livro para as cidades do interior e substituía seus protagonistas adultos por crianças.
É justamente na idade de seus personagens e suas ações que se encontra o estopim do choque causado pela obra na sociedade conservadora do período. Para o moralismo vigente no Brasil dos anos cinqüenta eram inconcebíveis os atos dos envenenadores, psicopatas homicidas, tarados incestuosos e suicidas mirins de Resende. Para seus detratores, a obra representava uma ofensa explicita a tudo o que definia a moral e os bons costumes.
Tendo em vista o conservadorismo vigente nas classes dominantes da época – e talvez ainda hoje, quando novas Marchas da Família são planejadas para pedir a volta da ordem sob tutela de uma ditadura militar –, em sua ousadia, o autor sabia estar se arriscando e que pisava em terreno minado. Não é preciso avançar muito na leitura para sacar seus principais alvos: a Igreja (principalmente, no conto que abre e dá título ao livro), a hipocrisia moral da sociedade e a família.
A maioria dos críticos insistia na mesma tecla: a de que os personagens eram inverossímeis e que suas atitudes eram inconcebíveis para crianças. Os Infantes Terríveis de Lara Resende, no entanto, nem de longe, são inverossímeis, assim como não o são suas monstruosidades. Mas não é preciso uma leitura muito atenta para perceber que, para Otto Lara Resende, nos atos dos adultos é que estão engendrados os monstros da infância. Assim é hoje, como também o era naquela época. Como diz uma velha canção dos anos oitenta, a Barbárie começa em casa.
Isto fica claro nos castigos infligidos pelo padre contra seu afilhado, Trindade, em Boca do Inferno; na mãe e na avó que reprimem e duvidam de Silvia, quando a menina revela o assédio e abuso sofridos, inclusive por um parente, em O Segredo; e na crueldade do tio para com o sobrinho órfão, Chico, em O Moinho.
Principal objeto de repúdio dos críticos, o conto Três Pares de Patins, começa numa tarde de diversão no adro da igreja, transformado em pista improvisada, e culmina com a invasão do cemitério onde, sobre uma sepultura, irmão faz sexo com a própria irmã e depois a oferece ao amigo.
Aliás, a maestria com que Otto Lara Resende conduz suas narrativas, muitas vezes, passando da delicadeza de uma tarde ensolarada numa cidadezinha interiorana para o mais sombrio ato de violência, é um de seus principais atrativos. Um dos melhores e mais surpreendentes contos de Boca do Inferno é exemplo disso.
Em O Porão, a história do pequeno torturador de animais – com direito a menção ao clássico de Edgar Allan Poe, O Gato Preto – nos é apresentada durante uma manhã primaveril, culmina num assustador ato de violência e fecha com a cena familiar da mãe que serve o chá da tarde ao filho.
Conforme sugere Augusto Massi, no ótimo posfácio escrito exclusivamente para esta edição, em Otto Lara Resende, o sol de uma bela manhã interiorana se esbarra com o reflexo solar que se faz cúmplice do assassinato praticado pelo personagem de Albert Camus, durante a situação limite de O Estrangeiro.
Ainda impactante e surpreendente, mesmo para nossos dias, Boca do Inferno merece figurar entre as mais importantes obras de nossa narrativa curta. Quase seis décadas depois de sua primeira edição, o livro ainda transpira frescor, provocação e choque e sua volta às nossas livrarias é mais do que bem vinda.

Serviço: Livro: Boca do Inferno – autor: Otto Lara Resende – editora: Companhia das Letras – 188 páginas.