quarta-feira, 6 de junho de 2018

Com a Palavra Luiz Gama - Imprensa Oficial






Orfeu negro

Nascido livre e levado à escravidão aos dez anos de idade, o lendário Luiz Gama encarna como poucos os ideais libertários do Brasil de fins do século XIX. Pouco citado em nossos livros, o “Vate Negro” retoma seu lugar na história em lançamentos que resgatam sua trajetória ímpar e obra que funde literatura, política e jornalismo.
Por César Alves


Os nomes dos que tem na luta pela liberdade a marca de sua existência deveriam figurar com destaque na história de qualquer nação soberana. Sendo assim é de estranhar que Luiz Gama seja tão pouco citado em nossos livros. Dono de uma biografia intensa e trajetória dedicada à defesa da igualdade de direitos e ao livre pensamento, o poeta, jornalista e advogado – autodidata em todas as áreas – merece figurar entre os principais artífices na construção de um novo Brasil. Multifacetado e tendo no abolicionismo e na derrubada da monarquia suas principais bandeiras, sua atuação no combate às arbitrariedades dos que detinham o poder político e financeiro no século XIX foi marcante nos mais diversos palcos. Vai da literatura, com a publicação de seu único livro, Primeiras trovas burlescas de Getulino; passa pela luta por uma imprensa livre, através de artigos corajosos nas redações de jornais oficiais e também de periódicos independentes; chegando à ação direta nos tribunais, como o advogado de argumentos imbatíveis pelos direitos dos humildes e injustiçados. Antes tarde do que nunca, o resgate de sua importância histórica tem ganhado forma nos últimos anos através de lançamentos como a reedição de Primeiras Trovas Burlescas pela Martins Fontes, uma série de ensaios e novas biografias. Passados 180 anos de seu nascimento, a Imprensa Oficial presta justa homenagem neste Com a palavra, Luiz Gama – poemas, artigos, cartas e máximas.
Filho de Luiza Mahin, uma quitandeira africana livre de Costa Mina, com um fidalgo de nome nunca revelado – sabe-se que fazia parte de uma tradicional família baiana de origem portuguesa –, o Vate Negro, como ficaria conhecido no futuro, nasceu em Salvador no ano de 1830. Embora tenha vindo ao mundo como homem livre, Luiz Gonzaga Pinto da Gama conheceu a escravidão aos dez anos de idade quando foi vendido pelo próprio pai a um mercador de escravos. Da Bahia o garoto é levado ao Rio de Janeiro e depois Santos, de onde segue a pé até Campinas para ser vendido. Na época, escravos de origem baiana tinham fama de rebeldes e, por este motivo, Luiz Gama não foi comprado, ficando o mercador como seu senhor. É como cativo que chega à capital de São Paulo, principal cenário de sua trajetória sem precedentes.
Provando a máxima de que educação confere liberdade, é graças a um estudante de direito que aluga um dos quartos na casa de seu senhor que Luiz Gama é alfabetizado aos dezessete anos. Ato corajoso, tendo em vista que na época ensinar um negro tinha conotação de crime, o jovem torna-se amigo do garoto escravo e também lhe fornece as primeiras noções de direito. De forma impressionante, pouco tempo depois, Gama reúne documentos que provam seu nascimento como homem livre e consegue alforria defendendo-se por conta própria e antecipando seu futuro como grande advogado. Aqui é preciso tomar cuidado. Foi justamente sua atuação marcante no universo do direito e sua fama como “o advogado dos escravos”, que acabaram por soterrar a imagem do homem de múltiplos talentos que realmente foi.
Já livre, aos dezoito anos ingressa na guarda municipal, onde trava contato com uma das maiores autoridades da São Paulo de então: Conselheiro Furtado de quem se torna protegido e com quem anos mais tarde romperia suas relações publicamente, com direito a troca de rusgas na imprensa. Sua carreira militar termina seis anos depois, após cumprir pena de 39 dias por insubordinação. Mais tarde escreveria: “desde que me fiz soldado, comecei a ser homem; porque até os dez anos fui criança; dos dez aos dezoito anos fui soldado”.
Nomeado amanuense da Secretaria de Polícia de São Paulo, Gama começa a ter contato com os problemas dos mais humildes que por lá apareciam ávidos por justiça, quase um privilégio das elites. É onde também passa a aperfeiçoar seus conhecimentos na área jurídica. A época marca sua aproximação de personalidades republicanas e a formação de alianças com nomes emblemáticos que teriam importância para seu futuro e também do país, como o poeta e professor de direito José Bonifácio, o Moço. Membro da maçonaria, associado à Loja América, um dos núcleos do antimonarquismo paulistano, em pouco tempo Luiz Gama escreveu seu nome entre os principais intelectuais do período. Personagem símbolo da luta abolicionista, como rábula – profissional autorizado a exercer advocacia sem curso superior, desde que comprovado profundo conhecimento na área – passou a defender de forma gratuita casos de escravos e parte da população menos assistida pelo Estado, também fornecendo aconselhamentos e participando pessoalmente da libertação – sempre através de meios legais – de trabalhadores escravizados. Suas conquistas representam feito jamais igualado na luta contra escravidão em todo o mundo. Há registros de que teria sido o responsável direto pela libertação de mais de quinhentos escravos. Extra-oficialmente, há quem diga que o número se aproxime de mil.
Contrariando os que defendiam idéias pseudo-científicas, muito em voga na época, de que o conhecimento e a capacidade intelectual para desenvolvê-lo e produzir coisas belas eram uma questão de raça, privilégio dos escolhidos e de pele alva, pouco mais de dez anos separam a alfabetização do menino escravo de sua ascensão como o brilhante intelectual que se tornou. Apenas doze anos se passaram até que Luiz Gama publicasse seu primeiro e único livro de poesia, ganhasse o respeito como autor de artigos invejáveis na imprensa e o orador, autor de discursos históricos na defesa de suas idéias. É ai que se encontra um dos principais méritos deste lançamento. Dividido em capítulos como Poemas, Artigos, Cartas e Máximas, o livro apresenta ao leitor as diversas faces de um pensador cuja obra singular une literatura, jornalismo e política.

Lírica de Carapinha
Publicado em 1859, Primeiras Trovas Burlescas de Getulino teve apenas duas edições na época, sendo praticamente empurrado para o esquecimento nas décadas seguintes. O que poucos perceberam é que o surgimento do poeta Luiz Gama representava um marco em nossa literatura. Sem mencionar o valor incontestável de seu lirismo, a obra impressiona por sua ousadia e importância histórica. Não bastando o fato de que pela primeira vez um autor negro tinha sua obra publicada, Gama vai além. Apropria-se das referências dos poetas brasileiros e europeus que o influenciaram, mas assume sua raça e posiciona-se como uma nova voz já desde o título do livro. Embora o autor assine com seu nome de batismo, as trovas são creditadas a Getulino, pseudônimo retirado de uma tribo guerreira nômade oriunda da África, os Getulos. O poeta se apresenta como o Orfeu de Carapinha, tomando de empréstimo a lírica do musicista encantador de deuses e mortais da Grécia mitológica clássica, porém substituindo sua lira por instrumentos de origem africana. Canta pela primeira vez a beleza da mulher negra, declamando que, à alva Vênus dos poetas clássicos prefere “A musa de Guiné, cor de azeviche”.
Embora cante as belezas do espírito como faziam seus contemporâneos, desde os primeiros poemas o Vate Negro mostra sagacidade e domínio da ironia em versos satíricos de forte conteúdo político e social. Esta, aliás, seria uma de suas marcas em poemas publicados mais tarde na imprensa paulistana. Sua pena não dá trégua aos poderosos, mas sobra também para os “mulatos falsários”, como ele definia mestiços que renegavam sua ascendência africana. Os versos de “Quem sou Eu?”, também conhecido como “Bodarrada” – chamavam Bodes os mestiços de pele mais escura – dizem: “Se negro sou, ou sou Bode./Pouco importa./O que isto pode?”. Também ataca o preconceito dominante de parte das elites intelectuais: “Ciências e letras/Não são para ti/pretinho da costa/não é gente aqui”. E, se os versos: “No meu cantinho./Encolhidinho./Mansinho e quedo./Banindo o medo (...)/O que estou vendo./Vou descrevendo” podem dar a falsa impressão de uma humildade cômoda, em outros salta feito leão contra a hipocrisia dos poderosos : Se a justiça, por ter olhos vendados,/É vendida, por certos magistrados,/Que o pudor aferrando na gaveta,/Sustentam – que o Direito é pura peta;/E se os altos poderes sociais,/Toleram estas cenas imorais,/Se não mente o rifão, já mui sabido:/ “Ladrão que muito furta é protegido”/É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,/Onde possa empantufar a larga pança!”. O lançamento traz uma coletânea que inclui tanto textos extraídos de Primeiras Trovas Burlescas, como outros publicados apenas em jornais da época.

O jornalismo de combate de Barrabrás
Naqueles tempos em que jornalismo e literatura se confundiam, não é de se estranhar que alguém com tanto a dizer como Luiz Gama estendesse seu campo de atuação às redações. Como jornalista, Luiz Gama também fez história, podendo ser considerado um dos precursores de nossa imprensa independente ou alternativa. Em 1864, uniu-se ao cartunista Angelo Agostini para fundar o semanário de humor, Diabo Coxo. Embora a publicação tenha durado pouco mais de um ano, o periódico foi o primeiro jornal ilustrado da cidade de São Paulo e marca a descoberta da imprensa como principal canal difusor de suas idéias. Tendo no jornalismo atividade oficial a partir daí, Luiz Gama participaria da criação e edição de outros títulos não menos notórios, como Cabrião, O Polichinelo e O Radical Paulista – o último, ao lado de Rui Barbosa –, entre outros.  
Talvez um dos maiores exemplos da cordialidade hipócrita de nosso racismo, Gama foi acusado por seus detratores de negro com pretensões literárias frustradas e até “agente da Internacional”. Durante muito tempo, a indignação e virulência de seu texto foram rotuladas como um rancor enraizado contra a parcela de pele branca da sociedade. Seu discurso, no entanto, não é pautado pela distinção racial e seus principais alvos eram as instituições dominantes no Brasil da segunda metade do século XIX: a monarquia e a igreja.
Vítima de complicações causadas pelo diabetes, o autor, que gostava de pseudônimos como Barrabrás – em referência ao bairro do Brás, onde morava –, com o qual assinou alguns de seus artigos mais virulentos contra as elites, faleceu jovem, aos 52 anos de idade, no auge de sua popularidade como republicano e fervoroso abolicionista. O impacto de sua morte movimentaria a capital paulistana. Seu velório teria atingindo proporções inéditas até então, sendo acompanhado por mais de três mil pessoas. Conta-se que em meio à cerimônia fúnebre o féretro teria sido “tomado” das mãos de seus companheiros republicanos pelos ex-escravos e demais populares, que o tinham como protetor, e conduzido nos braços do povo até o Cemitério da Consolação onde está enterrado. O evento ainda seria assunto na mídia nos meses que se seguiram em artigos e homenagens assinadas por notáveis como Rangel Pestana e Raul Pompéia, entre outros. Além dos poemas e artigos do autor já citados, Com a palavra, Luiz Gama também traz tais homenagens e se completa com suas máximas, trechos de sua correspondência e ilustrações, apresentando um rico panorama do pensamento de um personagem sem igual em nossa história.
Serviço: Com a palavra, Luiz Gama. Organizadora: Ligia Fonseca Ferreira. Editora: Imprensa Oficial. 306 páginas.

Box: Sangue indomável
Pesquisando de forma aprofundada as origens de Luiz Gama é quase impossível não pensar em predestinação. Descrita como uma negra bonita, de corpo frágil e personalidade forte, sua mãe, Luiza Mahin, teria participado de diversos levantes e rebeliões pela emancipação negra no Brasil escravocrata do século XIX. Embora as informações a seu respeito sejam escassas e desencontradas, é certo que teve papel importante em pelo menos uma das insurreições mais significativas do período: a Revolta dos Malês.
Organizado por um grupo de cerca de 600 negros muçulmanos, o movimento pretendia acabar com a imposição dos ritos católicos a que eram submetidos, libertar os escravos muçulmanos e instituir em Salvador um governo teocrático baseado no Islam. Levada a cabo no dia 25 de janeiro de 1835, a revolta teve motivação religiosa, com inspiração nas jihads – guerras santas – e nasceu destinada ao fracasso. Entre os principais motivos, estava o fato de não contar com o apoio de boa parte da população negra, a maioria católica e de outras religiões, que temia ser alvo de perseguição uma vez instaurado o governo muçulmano. Além do mais, seu núcleo fora infiltrado por informantes que, à traição, impediram o elemento surpresa, essencial para o sucesso de qualquer ação revolucionária. Avisado com antecedência, o governo não teve dificuldades em conter a rebelião. Seus líderes foram presos e executados. Outros foram deportados.
Luiza Mahin teria deixado seu filho aos cuidados do pai e fugido para o Rio de Janeiro. Seu destino a partir daí é uma incógnita. Conta-se que teria participado de outras revoltas no Rio. Lá teria sido presa e deportada para Angola, mas, não havendo documentos que comprovem tal informação, é também possível que tenha sido executada. Embora também não existam provas a respeito, certos autores defendem que Mahin teria conseguido fugir e encontrado refúgio no Maranhão. Tal teoria a coloca, inclusive, como uma das peças fundamentais para o desenvolvimento e popularização do Tambor de Crioula, dança típica de origem africana praticada ainda hoje por afro-descendentes maranhenses. Depois de adulto, Luiz Gama lançou-se em diversas campanhas para investigar pistas de seu paradeiro. Todas infrutíferas.
Considerada uma heroína e exemplo de mulher guerreira em diversas comunidades baianas, Luiza Mahin pouco conviveu com o filho. Seu papel sob a biografia de Luiz Gama, no entanto, possui simbologia marcante e impossível de se ignorar. Herdeiro do espírito indomável da mãe, o Vate Negro parece ter trazido nas veias sua inclinação à liberdade e à insubmissão.
Sobre ela, o filho escreveu: "Sou filho natural de negra africana, livre, da nação nagô, de nome Luísa Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa, magra, bonita, a cor de um preto retinto sem lustro, os dentes eram alvíssimos, como a neve. Altiva, generosa, sofrida e vingativa. Era quitandeira e laboriosa."