quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Vladímir Sorókin - Dostoiévski-trip




Barato da Literatura Quando Vício
por César Alves

Os amantes da literatura já devem ter experimentado a sensação de que o hábito de ler e pesquisar certos autores e obras, muitas vezes, se aproxima do vício. Descobrir um autor e sentir a necessidade de ler e reler toda a obra mais de uma vez é quase como encontrar aquela fórmula perfeita, lícita ou não, para os males da existência – com o perdão da filosofia barata. Para os que sofrem de tal dependência, a livraria, biblioteca ou estante de livros pessoal é feito farmácia, o sebo, uma boca de fumo, onde encontra obras não-ilícitas, mas tão raras que são como se proibidas, depois de anos fora das prateleiras. O atendente da livraria, seu farmacêutico; o alfarrabista, seu traficante ou dealer. Existem, inclusive, aqueles que despertam a curiosidade e, quando finalmente experimentamos, não bate ou dá barato! Livros feito placebos; autores que são feito cocaína batizada ou “fumo palha”.
Assim como o viciado em drogas, o dependente do verso e da prosa, mesmo percebendo o mal que o mergulho no universo de certos autores lhe causa, sente o desejo irresistível de ir além. Não havendo clínica de reabilitação, nem um programa dos sete passos para retroceder ao Paraíso da Ignorância, o leitor segue em busca de novas doses de psicotrópicos filosóficos, estimulantes existenciais, misturando doses de tramas, personagens, ficção, realismo, fantasia e fantástico, com formas narrativas, verbais, experimentos estético-textuais, num Breaking Bad químico-literário que só acaba com a inevitável overdose das letras, num quarto solitário ou laboratório clandestino de meta-anfetaletras.
Pedindo perdão pelo enorme nariz de cera acima – entenda como exemplo de como bate o barato das letras no leitor que também escreve, antes que eu fuja do tema, vamos logo ao que interessa.
Se toda aquela minha conversa fiada que abre o texto tem algum sentido, não é exagero dizer que, para alguns leitores, obras e autores, títulos e nomes escritos nas bordas dos livros, dispostos nas estantes, são como uma variedade de fármacos e substâncias, nas prateleiras de uma drogaria ou nas mãos de um traficante dos lados selvagens da paisagem urbana.
Tal analogia pode ser o que baliza a trama de Dostoiévski-Trip, peça de um único ato, escrita por um dos mais celebrados nomes da literatura contemporânea russa, Vladímir Sorókin, e publicado recentemente no Brasil pela Editora 34.
Com tradução e posfácio de Arlete Cavaliere, a obra é ótima introdução ao universo de Sorókin.
Protagonizado por sete personagens – cujos nomes não sabemos, assim como o lugar onde a historia se passa – que aguardam a chegada de um misterioso fornecedor, o texto abre com os diálogos inevitáveis que a impaciência costuma impor aos desconhecidos. Não demora e o leitor vai sacar que todos ali são como o personagem de uma velha canção do Velvet Underground, e estão waiting for their man. Sim, todos junkies! Viciados na droga da literatura. O traficante que eles esperam, negocia uma variedade de substâncias ilícitas que costuma trazer em uma maleta. São cápsulas com doses de William Faulkner, Franz Kafka, Tolstoi, Gogól, Celiné, Sartre e o que mais o cliente precisar.
Sim, a citação é intencional, os personagens estão a procura de um autor ou Sete Viciados à Procura de um Autor – novamente, pedindo perdão pelo trocadilho infame.
Mas essa é apenas a primeira das muitas sacadas interessantes e cômicas do livro. Como viciados que esperam o fornecedor que está atrasado e tentam evitar pensar na síndrome de abstinência, eles conversam para passar o tempo e evitar pensar no pior cenário: o de que ele não apareça. Como todo viciado, sem a substância de seu vício, o assunto não é outro senão as drogas, suas experiências com ela e seus efeitos.
São justamente os diálogos entre os cinco homens e as duas mulheres e suas histórias e experiências com substâncias de muitos dos nomes mais celebrados da literatura universal que compõem a primeira parte da narrativa, que empolga, envolve e surpreende o leitor, principalmente com a chegada do negociante que os personagens aguardam. Como sempre, em sua valise o homem tem tudo, mas sugere aos clientes uma novidade: um novo produto de nome Dostoiévski!
Vou parar por aqui para não estragar o barato da viagem, mas a experiência lisérgica, em que os personagens são transportados para uma passagem conhecida de O Idiota, que culmina em uma terrível bad-trip é fantástica.
Carregada de humor, sarcasmo, violência, pornografia e escatologia, a obra de Sorókin não é o tipo de narcótico para estômagos fracos, é sempre bom avisar. Opositor assumido de Putin, Vladímir Sorókin surgiu na cena underground moscovita dos anos oitenta. Mas, embora reconhecido mundialmente desde 1985, quando seu romance A Fila foi publicado na França, o autor foi censurado em seu país e seu primeiro livro na terra pátria só saiu em 1992, uma coletânea de Contos Escolhidos.
Entre seus diversos romances e peças, merecem destaque O Dia do Opríchnik (2006), a trilogia Gelo (2002), O Caminho de Bro (2004) e 23000 (2005).

Serviço: Dostoiévski-Trip; Autor: Vladímir Sorókin; editora: Editora 34