sábado, 3 de dezembro de 2016

Histórias da Mesa - Massimo Montanari



Casos gastronômicos saborosos

Livro de Massimo Montanari reúne histórias curiosas dos séculos XIII ao XVII sobre nosso comportamento à mesa.
Por César Alves

Na Nápoles do século XIV, durante uma refeição oferecida pelo rei Roberto I a Dante Alighieri, o monarca teria ficado espantado com o comportamento nada convencional do poeta à mesa. Rompendo com todos os protocolos de bons modos, principalmente diante de um membro da realeza, o autor de A Divina Comédia esfregava carne e vinho nas próprias vestimentas.
Em Rivotorto, por volta do ano de 1225, Francisco de Assis pretendia suplicar ao imperador que lançasse um édito geral, obrigando todos que tivessem recursos a espalhar trigo e grãos pelas ruas para que “os passarinhos e as irmãs cotovias pudessem tê-los em abundância”, como parte de sua concepção do que seria uma verdadeira ceia de Natal. Um banquete geral, no qual os pobres e os mendigos fossem saciados pelos ricos e que mesmo os animais comecem mais.
As duas histórias, aqui bem resumidas, são exemplos de alguns dos casos deliciosos e curiosos reunidos pelo historiador e pesquisador, Massimo Montanari no ótimo livro Histórias da mesa, que acaba de sair no Brasil.
Dividido em 22 capítulos, o livro traz casos – alguns verídicos, outros um tanto quanto duvidosos – pinçadas pelo autor de registros históricos que vão do século XIII ao XVII. Alguns, como os citados acima, protagonizados por celebridades históricas, outros tendo como personagens figuras anônimas.
Aqui ficamos sabendo como, durante a celebração de um casamento, os convidados foram intimados a comparecer diante dos magistrados, em até três dias, para se defender das infrações contra a “Sereníssima”, tendo como prova do crime a carne de caça na mesa e as espinhas de peixe das sobras. “Não sabeis que, nos banquetes de núpcias, é proibida a mistura de carne e peixe?” Observava a acusação.
Professor de história medieval na Universidade de Bolonha, Itália, Massimo Montanari é pesquisador gastronômico e organizador de História da Alimentação (Estação Liberdade) e O mundo na cozinha – História, identidade, trocas (Estação Liberdade e Editora Senac-SP).

Serviço:
Histórias da Mesa
Autor: Massimo Montanari
Tradução: Federico Carotti
Editora: Estação Liberdade

232 páginas

(Publicado originalmente na edição número 27 da revista Cenário - www.revistacenario.art.br)


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Alfred Musset – A confissão de um filho do século



Alfred Musset – A confissão de um filho do século
Por César Alves

L´enfant Terrible do romantismo francês, Alfred de Musset já produzia versos aos 14 anos. Seu talento precoce não passou despercebido e logo foi aceito como o mais jovem escritor no seleto grupo de artistas do Cénacle, salão literário dirigido por Charles Nodier.
Embora a importância do convívio com os notáveis tenha tido forte impacto no jovem Musset, é justamente na maneira como o autor trata tal honraria que deixa claro sua independência criativa e indisposição para abrir concessões.
Exemplo é o episódio que marcou sua saída da confraria poética, envolvendo seu freqüentador mais famoso. Ninguém menos do que Victor Hugo.
Contrariando seus colegas, o jovem teria se recusado a prestar homenagem ao maior dos poetas franceses, como faziam todos ali. O que, embora possa ser visto como a mais infeliz demonstração de arrogância e pretensão, não deixava de ser também um ato de autenticidade.
Tamanha ousadia bastaria para por fim à carreira de qualquer poeta, mas não à carreira de Alfred de Musset.
Aos 19 anos, já era respeitado como autor dos Contos da Espanha e Itália, Pensamentos secretos de Rafael e Votos Estéreis, demonstrando desenvoltura na composição de poemas, contos, romances e peças de teatro. Idade também em que começa a desenvolver seu gosto pelos excessos, principalmente o alcoolismo – que viria a matá-lo precocemente anos depois –, pela vida noturna e pelas mulheres.
Ao longo de sua curta existência, o Musset teve muitas paixões, mas nenhuma tão intensa quanto a que compartilhou com a poeta George Sand – Amandine Aurore Lucile Dupin, que assinava com pseudônimo masculino, posto que mulheres escritoras não eram aceitas pela sociedade e o próprio meio intelectual da época.
Dotada do mesmo espírito livre do poeta, Sand também teve muitos amantes, incluindo o compositor Frédéric Chopin, e a tórrida paixão compartilhada entre eles rendeu rompimentos e reatamentos catastróficos e dolorosos. Seu relacionamento turbulento teria sido a inspiração para que o autor escrevesse A confissão de um filho do século que, depois de muito tempo fora de catálogo, volta às livrarias brasileiras numa bela edição da editora Amarilys.
Obra claramente autobiográfica, A confissão de um filho do século foi publicada em 1836, três anos depois da primeira traição de Sand, com seu médico de confiança, quando o poeta se encontrava enfermo, e depois das diversas tentativas de reatamento, marcadas por conflitos e ataques violentos de ciúmes de ambos os lados.
Narrado em primeira pessoa, o livro conta a história de Otávio, jovem bon vivant, apaixonado pela vida, mas inexperiente quanto às incertezas dos relacionamentos amorosos e no que podem trazer de dor. Inspirado nos poetas e crente no amor idealizado e trágico que movem os heróis românticos, como o jovem Werther de Goethe, o personagem é surpreendido pela traição de sua amante com um de seus melhores amigos, a quem desafia para um duelo.
Derrotado por seu oponente na peleja com pistolas, que deveria lavar com sangue sua honra ofendida, Otávio mergulha na depressão, provocada pela vergonha e o amor que ainda nutre por sua amante, apesar da traição. É em busca de uma cura para a mistura de ódio irracional com paixão e ciúme coléricos que o personagem empreende uma jornada pelas profundezas da noite parisiense, povoada por prostitutas, poetas libertinos e orgias etílicas.
Citado, ao lado de obras como Em busca do tempo perdido de Proust, entre os principais romances de descoberta e marca de sua geração, A confissão de um filho do século é a primeira de uma trinca de livros, escritos por Musset, que versam sobre a experiência amorosa no que ela traz de sofrimento, mas também de amadurecimento ao espírito, seguida de Noites (1837) e Recordações (1841).

Serviço:
A confissão de um filho do século
Autor: Alfred de Musset
Tradução: Maria Idalina Ferreira Lopes
Editora: Amarilys
296 páginas

(Texto extraído da edição número 27 da revista Cenário que começa a circular na próxima semana)


quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Coleção Hitchcock e O Realismo Impossível de Bazin



Inspirações de Hitchcock e considerações de André Bazin
Por César Alves

Os fãs da sétima arte têm dois bons novos motivos para passear pelas livrarias: A Coleção Hitchcock e O Realismo Impossível.
A saborosa Coleção Hitchcock estréia com dois títulos de tirar o fôlego: Vertigo – Um corpo que cai, da parceria de Pierre Boileau e Thomas Narcejac, e A Dama Oculta, escrito por Ethel Lina White e publicado como The Wheel Spins em 1936. Ambos inéditos no Brasil.
Como o próprio nome já diz, trata-se de uma série dedicada a publicar romances que originaram filmes inesquecíveis sob a condução do mestre do suspense. Por outro lado, não só cinéfilos e cultores da obra de Alfred Hitchcock encontram motivos para celebrar os lançamentos que também devem levar ao deleite os admiradores da ficção noir e literatura de mistério e assassinato. A coleção surge com o objetivo de trazer ao Brasil obras de autores europeus – nomes que são referência na literatura policial de qualidade mundial –, dedicados aos gêneros Thriller, Scandi crime e suspenses históricos.
O Realismo Impossível reúne textos de André Bazin até agora inéditos no Brasil. Os textos aqui reunidos foram compilados por seu discípulo e amigo pessoal, François Truffaut. A primeira parte traz artigos retirados de seu livro Jean Renoir, considerado por Truffaut “o melhor livro de cinema, escrito pelo melhor crítico sobre o melhor diretor”. Já a segunda parte compila textos retirados da coletânea Le Cinéma de l´occupation ET de La résistance, onde o crítico explora o realismo no cinema possível e impossível.

Fundador da revista Cahiers Du Cinéma e colaborador do Le Parisién Liberé, France Observateur, L´Écran Français, Esprit e Les Temps Modernes, entre outros, a visão revolucionária de André Bazin sobre a sétima arte como “arte do encontro do real” representa uma das mais importantes colaborações ao pensamento cinematográfico e a forma de ver, compreender e escrever sobre filmes.

Serviço:
Coleção Hitchcock:
Vertigo – Um Corpo que cai
Autores: Pierre Bouileau e Thomas Narcejac
Tradução: Fernando Scheibe
192 páginas

A Dama Oculta
Autor: Ethel Lina White
Tradução: Rogério Bettoni
272 páginas
Editora: Vestígio

O Realismo Impossível
Autor: André Bazin
Organização e Tradução: Mário Alves Coutinho
224 páginas

Editora: Autêntica

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Editora Veneta relança biografia de Charles Bukowski




Notas sobre um velho safado

Editora Veneta relança biografia de Charles Bukowski, depois de anos fora de catálogo.
Por César Alves

Não é de todo errado afirmar que na obra de todo escritor, mesmo entre os menos realistas e mais adeptos da fantasia e do fantástico, há algo de autobiográfico. No caso de Charles Bukowski praticamente tudo, entre contos, romances e poemas, foi tirado a fórceps de suas experiências e tragédias pessoais, o que não é novidade para ninguém. O autor, no entanto, não se viu livre da criação de mitos e lendas sobre sua vida – alguns criados por ele mesmo – e concepção de seus livros. Logo, como disse o jornalista inglês, Howard Sounes, em uma entrevista recente, escrever uma biografia de Bukowski é, em parte, desvendar os pontos que separam o mito da realidade, o que buscou fazer em seu livro Bukowiski – Vida e Loucuras de um Velho Safado, que acaba de receber nova edição da editora Veneta.
Nascido em Andernach, na Alemanha, e radicado nos Estados Unidos, onde se tornou um dos cronistas mais cultuados do “outro lado” ou “lado selvagem” do american-way-of-life, povoado por vagabundos, bêbados, viciados, prostitutas e cafetões, a trajetória de Charles Bukowski e seu alter ego Henry Chinaski é aqui recriada com maestria por Sounes, que teve acesso às suas cartas pessoais, além de conversar com familiares, amigos e amantes, mostrando além do escritor bêbado, vagabundo, mulherengo e imprevisível que sua própria obra e o posto de ícone da cultura pop costumam propagandear.
A nova versão do livro conta ainda com a maravilhosa capa criada por Robert Crumb e cedida exclusivamente para a edição brasileira.

Serviço:
Bukowski – Vida e Loucuras de um Velho Safado
Autor: Howard Sounes
Editora: Veneta
384 páginas

(Revista Cenário – edição 27)


terça-feira, 11 de outubro de 2016

Um Breve Perfil de Angela Davis



Um Breve Perfil de Angela Davis

Com um atraso de mais de trinta anos, a Boitempo Editorial lança no Brasil Mulheres, Raça e Classe da ativista norte-americana.
Por César Alves

Ativista e professora de filosofia na universidade de Santa Cruz, na Califórnia, Angela Davis nasceu no Alabama. Péssimo lugar para ser negro e mulher, na América segregacionista dos anos quarenta – terra da Ku Klux Klan, dos linchamentos quase rituais e das execuções por enforcamento, que lembravam strange fruits brotando nas árvores, como diz a canção.
Não é de se estranhar que, em meio a tal ambiente, a menina crescesse sob o signo da indignação e da revolta.
Já aos 12 anos participa do boicote a uma linha de ônibus que praticava segregação entre seus passageiros. Considerada brilhante por professores, dois anos depois, Davis ganha uma bolsa para estudar no liceu Little Red School House e muda-se para Nova York.
Conciliando seu ativismo político com a dedicação aos estudos, é aceita na Universidade de San Diego, na Califórnia, onde é presa pela primeira vez num protesto contra a guerra do Vietnã. Radicaliza-se e, ainda que discordante de algumas das posições de seus companheiros, Angela adere ao Black Panther Party de Bobby Sela e Huey P. Newton.
Suas ações junto à organização logo a colocaram no alvo do FBI de J. Edgar Hoover, empurrando-a para a clandestinidade. Durante meses saltou de esconderijo a esconderijo, até sua prisão no início da década de 1970, que deu origem a uma série de protestos e ao movimento, de repercussão mundial, Free Angela Davis, que pedia sua liberdade. Ganhou versos em sua homenagem do poeta Jacques Prevért, canções da dupla Jagger e Richards, Yoko Ono e outros artistas.
Fora da prisão, Angela Davis abandonou as armas, mas jamais a luta. Ainda hoje, aos 72 anos, Davis é sempre combativa, seja em nome dos direitos das mulheres, contra a intolerância e a crueldade para com os animais.

Inspiração para o documentário Free Angela and all polital prisioners (2012), Angela Davis escreveu diversos livros. Entre eles, Mulheres, raça e classe, que a Boitempo Editorial acaba de lançar por aqui.
Publicado em 1981, os 35 anos que separam a edição original em inglês da tradução, agora disponível para os leitores brasileiros, em nada afetam a contemporaneidade e a relevância da obra. O que pode ser um dado triste, significando que, no que toca à condição da mulher numa sociedade fálica, da negritude numa cultura segregacionista e da pobreza em meio ao capital selvagem e a ditadura do consumo, muito pouco ou praticamente nada evoluímos.
O lançamento vem na cola de Reivindicação dos Direitos da Mulher, da mãe de Mary Shelley e feminista avant la léttre Mary Wollstonecraft (mais: http://orebitedoverbo.blogspot.com.br/2014/07/familia-sagrada-william-goldwin-mary.html), que a mesma editora publicou por aqui recentemente.

Serviço:

Livros:
Mulheres, raça e classe
Autor: Angela Davis

Reivindicação dos Direitos da Mulher
Autor: Mary Wolstonecraft

Editora: Boitempo Editorial


quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Friedrich Schiller – Do Sublime ao Trágico



Friedrich Schiller – Do Sublime ao Trágico

Destaque da 26ª edição da revista Cenário, lançamento da Autêntica joga luz sobre os conceitos estéticos de um dos maiores nomes do Romantismo alemão.
Por César Alves

Em meados do século dezoito, a beleza mostrou-se insuficiente para descrever o que faz da criação artística uma obra de arte. Mais do que os valores impressos na proporção e conveniência que convergem em delicadeza, pureza, clareza de cor, graça e elegância, a experiência estética também exigia o desafio aos sentidos, “(...) aquilo que produz a mais forte emoção que o espírito é capaz de sentir”, como descreve Edmund Burke em sua Pesquisa filosófica sobre a origem de nossas idéias do Sublime e do Belo, publicado em 1759. Assim, em reação ao Belo artístico, o conceito de Sublime ganha a atenção dos estudiosos e apreciadores das belas artes.
O Sublime, na definição de Burke, caracterizava-se por provocar em quem aprecia um quadro ou uma obra literária emoções antagônicas de admiração e terror. Tal conceito não era exatamente uma novidade, tendo em vista que já havia sido proposta, séculos antes, por Pseudo-Longino, autor de um tratado sobre o Sublime, escrito na era Alexandrina, que circulava entre intelectuais setecentistas. O autor britânico também não foi o único pensador da época a se debruçar sobre o tema e é na Crítica da faculdade de juízo (1790), de Emmanuel Kant, que as diferenças entre o Belo e Sublime são definidas com precisão.

Vem da leitura de Kant o interesse de Friedrich Schiller pelas manifestações do Sublime na arte, objeto de alguns de seus mais importantes escritos teóricos, publicados nas revistas Neue Thalia e Die Horen – em parceria com Goethe – e depois revistos nas suas obras completas. O artigo Do Sublime ao Trágico, publicado recentemente no Brasil pela editora Autêntica, está catalogado entre suas diversas e importantes contribuições para as pesquisas e estudos sobre estética.
Para o autor, assim como o é para Kant, a experiência Sublime remete à natureza e nossos instintos naturais. Ao contrário do Belo, cuja atração está ligada a um sentimento nato que nos leva ao deleite frente ao que parece agradável e organizado aos nossos olhos, o Sublime instiga nossa natureza física e racional. Diante do objeto Sublime, como seres físicos, dotados de corpos frágeis que podem ser feridos por uma avalanche ou tempestade, despertamos para nossa inferioridade frente à magnitude do mundo natural; e, como criaturas racionais, capazes de sobrepujar e alterar a natureza, experimentamos de uma liberdade que vai além dos limites.
Schiller também chama a atenção para a característica diversa do Sublime em suas representações artísticas. É possível experimentar o Sublime de forma passiva, como quando observamos o Viajante diante do mar de nuvens (1818), de Caspar David Friedrich; ou de forma direta, tomado pelas águas ameaçadoras que levam ao naufrágio a embarcação da cena pintada por William Turner em O Navio Negreiro (1840), exemplos deste que vos escreve.

Segundo ele, o distanciamento proporcionado pela reprodução em um quadro é o que faz da experiência Sublime nas artes superior a Natureza. Como no caso do segundo exemplo, quem aprecia a cena de Turner, uma vez distante do evento trágico, pode provar do horror do episódio e racionalizá-lo, o que seria impossível fazê-lo estivesse ele no lugar das vítimas ali representadas.
Ao contrário do Belo, a experiência do Sublime não seduz e sim provoca. Apela para nossos instintos de sobrevivência e autopreservação e, ao mesmo tempo, para nossa razão, o que torna o gosto pelo Sublime uma característica dos espíritos mais elevados.

Serviço:
Do Sublime ao Trágico
Autor: Friedrich Schiller
Tradução: Pedro Sussekind e Vladimir Vieira
Editora: Autêntica
128 páginas

(O artigo faz parte da edição de número 26 da revista Cenário, atualmente em circulação: www.revistacenario.art.br)



sábado, 30 de julho de 2016

O Homem que Desenhava Gatos - Louis Wain



Louis Wain ou a Trágica História do Homem que Desenhava Gatos

Popular, na Inglaterra Vitoriana, como criador de simpáticos cartões postais estrelados por felinos, o artista passou seus últimos anos internado em clínicas psiquiátricas, devido à esquizofrenia.
Por César Alves

Talvez você nunca tenha ouvido falar de seu nome, mas certamente já tenha visto uma reprodução de seus desenhos de início de carreira: cartões postais e imagens cotidianas estreladas por gatos em situações humanas. Ilustrador popular e respeitado na Inglaterra Vitoriana, Louis Wain (1960-1939) é conhecido como “o homem que desenhava gatos” e um caso ainda hoje estudado por especialistas e estudantes das ciências neurológicas.
Como ilustrador, seu talento para o desenho ganhou reconhecimento, não só pela beleza de seu traço e acabamento, como também por sua criatividade para compor peças com apelo infantil e temática, quase sempre adultas.

Recluso e muito ligado à sua família, sua vida e sua obra viriam a mudar drasticamente, após passar por tragédias como as mortes da irmã, da mãe e de sua esposa, num curto espaço de tempo. A eclosão da Primeira Guerra Mundial teria sido a gota d´água para um colapso nervoso que o levaria a um estado esquizofrênico progressivo, aos 64 anos. Depois disso, o artista passaria o resto de sua vida como interno em diversas instituições mentais.
Se a doença condenou o artista a uma vida de depressão, clausura e sofrimento, sua dedicação ao trabalho e sua fixação por gatos, no entanto, mantiveram-se intactas. Seu estilo, porém, tomou outra direção.
Quase como um espelho do que ocorria em sua mente, os gatos antropomórficos de Wain, a partir daí, ganham características estranhas que parecem evoluir conforme evoluía sua esquizofrenia. Os gatos dissolvem-se em abstrações e coloridos caleidoscópicos, chegando a antecipar a arte experimental – muitas vezes, sob o efeito de drogas – e psicodélica dos anos 60.
Mas são os olhos de seus gatos, criados durante essa fase, que mais impressionam. Depois da esquizofrenia, os felinos, antes simpáticos e sorridentes, agora parecem olhar fixamente, com fúria, desprezo e desconfiança para quem os observa. Reflexo, dizem especialistas, da própria doença, tendo em vista que os pacientes de esquizofrenia costumam projetar nos olhares dos outros sentimentos de hostilidade e ameaça.
Louis Wain morreu numa clínica psiquiátrica em 1939, mas sua obra, pelo menos para este que vos escreve, tornou-se eterna, tanto no sentido estético, quanto clínico.


terça-feira, 28 de junho de 2016

Ryunosuke Akutagawa, o Mestre da Narrativa Breve



Sob o signo do Dragão

Pai do conto japonês, influência para o cinema de Akira Kurosawa e um dos arquitetos da literatura moderna de seu país, Ryunosuke Akutagawa volta às livrarias brasileiras em nova tradução e textos inéditos.
Por César Alves

Descrito como uma mistura de réptil com marsupial de corpo humanoide e baixa estatura, o Kappa é quase uma espécie de Chupa-Cabras dotado do mesmo espírito zombeteiro de nosso Saci.
Parte das lendas da cultura milenar japonesa, conta-se que vive a espreita na beira dos rios para pregar peças nos viajantes que passam.  Permeado por criaturas fantásticas assim, o rico folclore nipônico deu a ele uma reputação duvidosa. Apesar da aparência engraçada que muitas das descrições podem sugerir, o hábito de afogar pescadores e banhistas desatentos faz do Kappa criatura traiçoeira. Tal característica pode estar entre os motivos que levaram Ryunosuke Akutagawa a escolher os Kappas como protagonistas do conto alegórico que abre a coletânea Kappa e o Levante imaginário, lançamento da editora Estação Liberdade.
Publicado em 1927, Kappa é um dos últimos textos conhecidos de Akutagawa. Narrado por um interno em um hospital psiquiátrico que alega ter sido levado ao mundo dos kappas e convivido com as criaturas, a trama gira em torno de seu relato fantástico.
Denominado apenas como Paciente de número 23, ele descreve uma sociedade não muito diferente da dos humanos, mas com características muito particulares. Um bebê kappa, por exemplo, já nasce falando e, no momento do parto, é questionado se está pronto ou não para vir ao mundo. Sendo a resposta negativa, um tubo é inserido no ventre da mãe e seu conteúdo sugado, como que esvaziando a um balão. Embora suas religiões sejam as mesmas que as nossas, a mais influente é a Modernista ou Vitalista. Conforme o personagem descobre durante visita a um de seus templos, seus seguidores têm como apóstolos Strindberg, Nietzsche, Tolstói, Doppo Kunikida e Wagner.
Sob o divertido e inocente disfarce de fábula infantil, o texto esconde uma contundente crítica à sociedade moderna. Na época de sua publicação, foi acusado de ser um manifesto em defesa do socialismo, pelo qual Akutagawa nutria simpatia. Uma das críticas, no entanto, enxergava em suas linhas uma visão sombria em relação à humanidade como um todo, ganhando aprovação do autor como a leitura mais próxima de suas intenções.
Akutagawa e Kurosawa
Celebrado como o pai do conto japonês e mestre da narrativa curta, sua escrita é marcada pela preocupação detalhista ao descrever ambientes, épocas e situações. Em sintonia com a nova literatura praticada na época, fruto da liberdade criativa proposta pelas vanguardas ocidentais, seu estilo abre espaço para experiências no que diz respeito à forma e conteúdo. Em No Matagal, por exemplo, a investigação do assassinato de um samurai nos apresenta o mesmo fato pela ótica de sete personagens diferentes, em um caso de mistério onde nada é o que parece ser. Sua maestria na condução da trama prende o leitor e oferece um final surpreendente. Quase uma transposição da literatura policial do ocidente para o Japão feudal, o conto forneceu a Akira Kurosawa o enredo para o premiado Rashomon, filme dirigido por ele em 1950 e que entrelaça em adaptação para o cinema dois contos de Akatagawa – o outro, do qual o cineasta tirou o título, também está presente aqui.
Os dez contos que compõem Kappa e o Levante imaginário revelam a versatilidade e ecletismo de um autor apaixonado por seu ofício. Desde a infância, Akutagawa encontrou refugio nos livros. De forma compulsiva, leu todos os títulos da biblioteca da família, composta praticamente de literatura antiga japonesa e chinesa. Homem de seu tempo sofreu também influência de autores ocidentais como Ibsen, Strindberg, Baudelaire, Oscar Wilde e outros. A forma como combinou tais referências para criar uma obra única e original, faz dele um dos principais arquitetos na construção da moderna literatura japonesa. Seja na fase feudal de Os Salteadores, ou na nação moderna que despontava no início do século XX de Rodas dentadas, é sempre o Japão a fornecer o ambiente pelo qual o autor passeia com desenvoltura. Não é a toa que seu nome batiza hoje o mais importante prêmio literário de seu país.
Breve e trágica, vida refletiu na obra
Não espere por fábulas edificantes ao entrar no universo de Ryunosuke Akutagawa. Se existe uma moral da história aqui, é a amoralidade incrustada nas profundezas do espírito humano. Na maioria das vezes, seus personagens são criaturas à margem e prontas a mentir e até realizar atrocidades, alguns por puro deleite pessoal, outros, em nome da sobrevivência ou em situações limite que os colocam em confronto com o lado mais sombrio de sua natureza. Como descobre o servo solitário que protagoniza Rashomon, “não há espaço para escrúpulos quando se quer remediar uma situação irremediável”.
Reconhecida hoje como uma das principais colaborações do Japão à literatura universal, a obra de Ryunosuke Akutagawa possui forte traço autobiográfico. Sua percepção aguçada e negativa em relação à índole humana é fruto de sua origem e vivência pessoal. Nascido em 1892, o autor veio ao mundo em meio a um país que tentava se afirmar como parte da comunidade internacional, apenas quarenta anos após a revogação do xogunato, responsável por trezentos anos de isolamento e estagnação. Na época, o Japão praticamente se dividia em dois mundos distintos: Um que tentava se recuperar do atraso e firmar os pés na modernidade, importando tecnologia e sendo invadido pela cultura ocidental; e outro que rejeitava adaptar-se aos novos tempos, mantendo-se fiel às tradições e superstições que regiam o período feudal, caso de sua família.
O autor teria nascido no ano do dragão, no dia do dragão e na hora do dragão. Para completar, as idades de seus pais na época, segundo os conceitos numerológicos de suas crenças, eram representativas de mau agouro, o que o tornava duplamente amaldiçoado. Pela tradição, a criança deveria ser abandonada a própria sorte. Tentando enganar os deuses, sua família bolou um estratagema que consistia em deixá-lo em local conhecido para que um amigo o encontrasse e o levasse para casa, o que foi feito. Vitimada pela loucura, sua mãe veio a falecer poucos anos após seu nascimento, sendo seguida pelo pai meses depois. Isso colaborou para que fosse considerado de sangue ruim e destinado ao fracasso, tornando-se quase um pária em seu núcleo social.
Criado por um tio, Akutagawa cresceu sob a marca da rejeição, sentimento que o acompanhou por toda a vida e que, ao lado do medo de ter herdado da mãe o gene da loucura, contribuiu para o quadro depressivo que pontuou sua trajetória e refletiu em sua literatura. Sofrendo de abatimento nervoso, problemas gastrointestinais e ataques de alucinações, o autor morreu aos 35 anos de overdose de cianeto de potássio. Era sua terceira tentativa de suicídio. Em nota de despedida, escreveu: “Por mais paradoxal que pareça, agora que estou pronto, acho a natureza mais bela do que nunca. Vi, amei e compreendi mais que os outros.”


Serviço: Kappa e o Levante imaginário, tradução Shintaro Hayashi, Editora Estação Liberdade, 352 páginas.

Publicado originalmente na revista Brasileiros, em 13.10.2011

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Cinefilia na Alcova - Cinema Explícito




Cinefilia na Alcova

A representação cinematográfica do sexo através da história é tema de Cinema Explícito, livro de Rodrigo Gerace.
Por César Alves

Representado de forma sugerida, simulada ou explícita, o sexo divide a mesma alcova com o cinema, em cumplicidade lasciva, desde o surgimento do cinematógrafo. Ainda assim, poucos são os estudos sérios e aprofundados sobre o sexo no cinema a ir além das preliminares. Talvez, devido ao elevado nível de tabu e controvérsia que – surpreendentemente, em pleno século 21 – ainda gira em torno do tema, são poucos os estudiosos que ousam passar do flerte ou, diante do assunto, antecipar a broxada.
Não é o caso de Rodrigo Gerace, autor de Cinema Explícito – As Representações Cinematográficas do Sexo, lançado recentemente pela Editora Perspectiva em parceria com as Edições Sesc. Resultado de sua tese de doutorado, a obra faz justiça ao que se propõe, promovendo um mergulho aprofundado na maneira como o ato sexual vem sendo mostrado no cinema, do nascimento do gênero até os nossos dias.

Sociólogo e Crítico de Cinema, Gerace se viu seduzido pelo tema a partir de sua paixão pela sétima arte e, depois de assistir à exibição de Os Idiotas (1997), de Lars Von Trier, suas interrogações sobre o erótico e o pornográfico, o implícito e o explícito e o que faz uma película cinematográfica ser considerada obscena. A partir daí o autor empreendeu uma extensa pesquisa que incluiu assistir a cerca de mil filmes e uma jornada pela Europa em busca de museus e acervos de colecionadores particulares.
O autor parte dos primeiros filmes com temática “erótica”, ainda na fase inicial da sétima arte. Eram filmes como Sandow: Strong Man (1894) de Thomas Edson, que, de tão inocentes para os padrões de hoje em dia, dificilmente dá pra acreditar na polêmica que causaram. O Beijo (1896), dirigido por William Heise e também produzido por Edson, por exemplo, apresentava apenas um pequeno “selinho” entre dois atores que, na época, encenavam uma peça na Broadway. Por mais ingênua que a cena parece hoje em dia, uma vez deslocada do palco e apresentada em close-up, foi vista como tão obscena que um crítico de Chicago chegou a apelar para a polícia pela intervenção de sua divulgação, devido ao risco que a fita representava à moral e aos bons costumes.

Mas é bom lembrar que tratar como caso de polícia as manifestações da sensualidade na arte, já naquela época, não era bem uma novidade. Já em 1873 o congresso norte-americano aprovou o Ato de Supressão do Comércio e Circulação de Literatura Obscena e Artigos Imorais, que criminalizava a distribuição através dos correios de obras literárias, artigos censurados e qualquer material impresso cujo conteúdo fosse considerado contrário aos padrões morais da época. O conjunto de leis foi proposto pelo congressista, chefe dos correios e arauto da luta pela moralidade e controle da vida sexual alheia, Anthony Comstock. A Lei Comstock, como ficou conhecida, promovia uma verdadeira caçada a textos proibidos, como traduções clandestinas de Sade, por exemplo, mas também barrava textos médicos e panfletos sobre métodos contraceptivos.
Quem leu o brilhante livro reportagem de Gay Talese, A Mulher do Próximo – e, para quem não leu, fica aqui a dica –, deve se lembrar que a lei teve papel importante na repressão à livros como O Amante de Lady Chatterly, de D.H. Lawrence, e foi fundamental para barrar a publicação nos Estados Unidos de autores como James Joyce, por exemplo. A lei serviu também para impedir a difusão, através do correios, dos controversos Stag films, (aqui também analisados), que eram curtas de conteúdo erótico, produzidos na época do cinema mudo, como o argentino El Satario (1907), de autor desconhecido, e A Free Ride (1915), de A Wise Guy.  Mas viria de um ex-colaborador e pupilo de Anthony Comstock, o líder do Partido Republicano, William H. Hays, a verdadeira repressão ao sexo no cinema.

Aprovado em 1921 e em vigência até meados do século XX, o Código Hays impunha uma série de regras e condutas a serem seguidas pelos produtores de cinema, para que os filmes fossem exibidos, da sugestão de que um casal nunca poderia aparecer indo dormir no mesmo quarto, com exceção de quando eram casados e, mesmo assim, não na mesma cama, mas em camas separadas, até a duração de um beijo que, dos quatro segundos, na época da primeira publicação da lei, chegou a ser reduzido para um segundo e meio, a partir de 1930.
De O Cão Andaluz a Garganta Profunda
Mas Gerace não se limita a analisar o aparelho repressor do “empata foda jurídico” Estatal contra o sexo no cinema e, se o assunto são as representações do sensual e do erótico na grande tela, o autor promove um verdadeiro compêndio do que até aqui foi feito, tanto no cinema comercial das grandes salas, quanto no circuito independente Cult e underground, passando pela indústria pornô. É o caso de Garganta Profunda (1972), de Gerard Damiano, estrelado por Linda Lovelace, que causou polêmica no meio acadêmico e dividiu o movimento feminista entre aquelas que enxergavam no filme uma propaganda machista e falocêntrica, enquanto outras o viam como libertador e um marco contracultural do movimento pela liberdade e igualdade sexual. Reflexo disso ou não, Garganta Profunda ganhou admiração de gente como Truman Capote e, dos 25 mil dólares gastos para realizá-lo, acabou faturando 600 milhões de dólares em todo o mundo, consolidando o potencial financeiro da indústria cinematográfica do cinema adulto.

De O Cão Andaluz, de Dali e Buñuel, aos experimentos de Andy Warhol; de O Diabo em Miss Jones a Ninfomaníaca, de Lars VonTrier, passando por Pasolini, John Waters, o cinema gay e o movimento New Queer, mais que um registro histórico, o autor pautou-se pela analise sociológica e acadêmica e teve como referência não só os filmes e os registros publicados sobre eles, mas também a obra de grandes autores que também debruçaram-se sobre o tema, como Susan Sontag e, principalmente, Michel Foucault.
Mas não pense o leitor que Gerace limitou sua pesquisa às manifestações do sexo no cinema internacional, o Brasil não ficou de fora, com direito a um capitulo especial sobre a produção marginal da Boca do Lixo paulistana e a Pornochanchada.
Ricamente ilustrada, a obra nos oferece um deleite quase orgástico, graças ao excelente trabalho de pesquisa, a escrita nada cansativa e produção visual, com reproduções de cartazes pouco vistos e cenas antológicas dos filmes citados.
Rodrigo promete um livro sobre Lars Von Trier para os próximos meses. Então, ainda falaremos muito dele por aqui.

Serviço:
Título: Cinema Explícito
Autor: Rodrigo Gerace
Lançamento: Editora Perspectiva e Edições Sesc
320 páginas



segunda-feira, 14 de março de 2016

Sobre Mitos, Heróis e Deusas - Joseph Campbell



Sobre Mitos, Heróis e Deusas

Joseph Campbell vive nas livrarias brasileiras com a reedição de O Herói de Mil Faces, livro de cabeceira de roteiristas e mitólogos mundo afora, e a publicação de Deusas – Os Mistérios do Divino Feminino e As Transformações do Mito Através dos Tempos.
Por César Alves


Falecido em 1987, Joseph Campbell entrou para a história do século vinte como um dos mais importantes especialistas em mitologia universal, ganhando respeito e notoriedade no meio acadêmico e também no universo da indústria cultural, como o autor predileto de nove entre dez roteiristas de Blockbusters Hollywoodianos, principalmente depois de George Lucas citá-lo como referência na construção de sua saga Star Wars.

Embora sua bibliografia em português esteja longe de ser completa, já que o autor, além de seus trabalhos publicados em vida, deixou, sob os cuidados de instituição que leva o seu nome, uma enorme quantidade de textos, transcrições de palestras e entrevistas, que costumam render obras póstumas, Campbell possui uma boa quantidade de títulos publicados por aqui. A lista acaba de engrossar com a chegada às nossas livrarias de O Herói de Mil Faces, As Transformações do Mito Através dos Tempos e Deusas.

O primeiro, O Herói de Mil Faces (Editora Pensamento), é a reedição de sua obra mais conhecida e que despertou a atenção dos figurões da indústria do entretenimento. Publicado originalmente em 1949, o livro parte do conceito do “Monomito”, no qual é possível identificar pontos em comum e similaridades na estrutura lógica das narrativas antigas sobre diversos personagens míticos, em inúmeras culturas e povos, mesmo que separados na história, tanto no tempo como no espaço. Dos contos de fada e do folclore às narrativas sobre os feitos dos heróis mitológicos clássicos, passando também pelas narrativas bíblicas e livros sagrados das demais religiões, o autor defende que todas representam simultaneamente as várias fases de uma mesma história. Valendo-se da psicologia, estabelece o relacionamento entre seus símbolos intemporais e os símbolos detectados nos sonhos e a interpretação das palavras proferidas por grandes líderes espirituais, como Moisés, Jesus, Maomé, Lao-Tzu e os Anciãos das tribos australianas.
As Transformações do Mito Através do Tempo (Editora Cultrix) compila uma série de treze palestras ministradas por Campbell no final de sua vida que examinam o vasto campo do desenvolvimento da mitologia em todo o mundo e em todas as épocas. Ilustrado com imagens que acompanham as conferências originais, a obra expõe a compreensão de Campbell sobre como o mito reconcilia os seres humanos com os mistérios da vida.
Embora nunca tenha escrito um livro específico sobre as manifestações do divino feminino nas mitologias universais, Joseph Campbell tinha muito a dizer sobre o tema. Tanto que, entre 1972 e 1986 ministrou cerca de 20 palestras dedicadas ao tema que a especialista e editora Safron Rossi reuniu no ótimo Deusas – Os Mistérios do Divino Feminino (Editora Palas Athena). Aqui Joseph Campbell traça a evolução do divino feminino desde a Grande Deusa até as muitas deusas da Antiga Europa do Neolítico até a Renascença. Lança nova luz sobre temas clássicos e revela seus símbolos das energias arquetípicas de transformação, iniciação e inspiração.
Ainda hoje considerado uma das maiores autoridades em mitologia, Joseph Campbell teve seu interesse pelo tema despertado ainda na infância, incentivado por seu pai, que costumava levá-lo ao Museu Americano de História Natural de Nova York, onde, maravilhado, tomou contato com impressionantes coleções antropológicas. Embora tenha começado seus estudos na área da biologia e matemática, dirigiu os seus estudos acadêmicos para a literatura inglesa e literatura medieval, tema de seu mestrado na Universidade de Columbia.
Também é autor das Séries As Máscaras de Deus (Palas Athena) e O Poder do Mito.




Serviço:
Título: O Herói de Mil Faces
Autor: Joseph Campbell
Editora: Pensamento
416 páginas

Título: As Transformações do Mito Através do Tempo
Autor: Joseph Campbell
Editora: Cultrix
264 páginas

Título: Deusas – Os Mistérios do Divino Feminino
Autor: Joseph Campbell
Editora: Palas Athena


terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Dramaturgia Elizabetana - Barbara Heliodora (Livro)




Além de Shakespeare

Organizado por Bárbara Heliodora, Dramaturgia Elizabetana reúne peças escritas por dois dos mais importantes contemporâneos do bardo.
Por César Alves

Em 15 de maio de 1593, Thomas Kyd foi preso, sob a acusação de alta Traição. Após passar por uma série de torturas, teria acusado Christopher Marlowe de ser o verdadeiro dono de documentos heréticos que estariam em seu poder. Preso, logo em seguida, Marlowe teria assumido a responsabilidade pelos papéis e, até onde se cogita, a passagem estaria diretamente ligada ao seu misterioso assassinato, no dia 30 de maio do mesmo ano, dez dias após ser liberado da prisão.
A história, que poderia estar entre os atos de uma tragédia de William Shakespeare, é apenas um dos poucos e desencontrados dados biográficos de dois dos mais importantes contemporâneos do Bardo, cujas peças A Tragédia Espanhola, de Kyd; e Tamerlão e A Trágica História do Doutor Faustus, de Marlowe, chegam às livrarias brasileiras nas páginas de Dramaturgia Elizabetana (Editora Perspectiva), organizado pela crítica teatral, Bárbara Heliodora.
A Dramaturgia Elisabetana está diretamente ligada ao Renascimento. Revolução de idéias que viria a alterar de forma profunda e irreversível o pensamento e a própria civilização ocidental, iluminando as trevas que marcaram a Idade Média e encerrando uma das noites mais longas da história, a Renascença tem como epicentro a Itália e principais protagonistas famílias poderosas dispostas a promover um retorno ao belo estético clássico, vislumbrando, principalmente, a arquitetura e as artes, incentivando financeiramente ou adotando como protegidos, os mais promissores artistas disponíveis.
Da Itália o Renascimento se espalhou para o resto da Europa e, na Inglaterra, é no universo das letras que seu reflexo se mostrou mais impactante, principalmente na dramaturgia de William Shakespeare que viria a se tornar um dos pilares da cultura ocidental, exercendo influencia sobre tudo o que foi feito na literatura e dramaturgia até os dias de hoje.

O bardo, no entanto, não é astro solitário na constelação conhecida como Dramaturgia Elisabetana. De Ben Johnson a John Webster, passando inclusive por um ancestral distante do poeta americano T.S. Eliot, Sir Thomas Elyot, a era de ouro da dramaturgia, que vai do reinado da rainha Elizabeth I (1558-1603) e James (1603-1625), foi marcada por uma efervescência de obras e autores que vão muito além das tragédias de Shakespeare e é aqui que reencontramos os dois protagonistas do primeiro parágrafo, Thomas Kyd e Christopher Marlowe.
Thomas Kyd é tido como um dos dramaturgos da Era Elisabetana que teriam influenciado a obra de William Shakespeare. Pai do gênero que se tornou conhecido como “Tragédia de Vingança”, é aqui representado pelo texto que lhe valeu o título. Trama de sangue e vingança, A Tragédia Espanhola revela semelhanças incontestáveis com diversos dos textos do bardo, principalmente, Hamlet. Como o leitor poderá conferir na tradução, até então inédita, realizada por Bárbara Heliodora para a presente edição.

Sympathy for the Devil
Alguém já disse que Shakespeare está para a dramaturgia e poesia da Era Elisabetana como os Beatles para a musica do século vinte. Sendo assim, com o perdão da analogia pop previsível, a ninguém menos do que Christopher Marlowe cabe o título de Rolling Stones. Mente perigosa, tanto para momento político e social em que viveu quanto para sua própria segurança – como seu trágico destino acabou por comprovar –, Marlowe produziu uma série textos fundamentais para a poesia e dramaturgia elisabetana durante sua existência fugaz, dentre os quais se destacam Tamerlão e A Trágica História do Doutor Faustus da presente edição. Se o primeiro comprova de maneiro inquestionável o lugar de seu autor entre os maiores dentre os precursores do Bardo – se não o maior –, o segundo o coloca de forma definitiva entre os grandes nomes da dramaturgia ocidental.

Livre pensador, poeta, dramaturgo e adepto dos excessos do tabaco, do álcool e da carne – fáustico por natureza, dizem alguns, não sem razão – é praticamente inevitável fugir do clichê “artista que encarna a própria obra”, quando se trata de Marlowe e sua peça mais conhecida. Afinal, é em A Trágica História do Doutor Fausto que as idéias de Christopher Marlowe se manifestam de forma aberta, além de traçar as premissas que possibilitariam uma nova forma de teatro a partir da herança medieval.
Inspirado em um personagem real, o mito do homem de ciências que aceita barganhar com o Diabo em troca de conhecimento ilimitado já era encenado como peça moral, durante a Idade Média, mas é na adaptação de Marlowe – e, depois, Goethe – que ganha as características que dão forma à maneira como o conhecemos hoje, em suas diversas manifestações através dos anos – indo da releitura de Thomas Mann ao cinema de Murnau. Aqui, a tradição de peça moralizante cristã é mantida em sua estrutura básica, com direito aos personagens do Anjo Bom e o Anjo Mau, representação da consciência e tentação nas profundezas da alma pecadora. Mas Marlowe subverte a tradição, principalmente nas falas do Demônio, antigamente representado como ser caricato e cômico, na interpretação da igreja. O Diabo de Marlowe, mais que um mercador de alma trapaceiro, está para um advogado que nutre simpatia pela humanidade e é em suas falas que mais se identificam a voz do próprio autor.
Filho de um sapateiro que demonstrou muito cedo talento para as artes e vocação para a transgressão, Marlowe também manteve uma atuação política secreta, atuando como espião a serviço de sua majestade. Espírito contestador numa época em que a contestação poderia resultar em sérios riscos, seu assassinato, aos 29 anos de idade, motivado por uma conta de bar, segundo a versão oficial, é carregado de mistérios, dignos de uma trama policial – como o episódio que abre este texto, por exemplo – e, ainda hoje, gera diversas teorias conspiratórias.

Caminhos do Teatro Ocidental
Bárbara Heliodora faleceu em abril do ano passado e, além deste Dramaturgia Elizabetana, publicou, poucos meses antes de sua partida, pela mesma editora, o excelente Caminhos do Teatro Ocidental. Como o próprio título já diz, a obra traça um histórico do fazer teatral no Ocidente, partindo do teatro clássico grego, passando pela Idade Média, Renascimento, até chegar aos nossos dias. Obra de referência, é apenas parte de um colossal legado que a escritora nos deixa para história da crítica e estudos das artes dramáticas que deverá ficar para sempre.

Serviço:

Título: Dramaturgia Elizabetana
Autor: Bárbara Heliodora
Editora Perspectiva
352 páginas

Título: Caminhos do Teatro Ocidental
Autor: Bárbara Heliodora
Editora Perspectiva
424 páginas