segunda-feira, 30 de junho de 2014

Artigo - Jorge Schwartz



Entre as Vanguardas do Novo Mundo e transformistas do submundo

Jorge Schwartz aborda as vanguardas Latino-Americanas e o submundo paulistano no trabalho de sua mãe, a fotógrafa Madalena Schwartz.
Por César Alves

Diretor do Museu Lasar Segall desde 2008 e também professor titular de literatura hispano-americana da USP, Jorge Schwartz é um incansável estudioso, pesquisador e crítico de arte. Com principal foco nas produções latino-americanas, ele é autor de incontáveis livros e artigos sobre artes visuais e literatura, além de possuir um currículo de fazer inveja como curador de diversas e importantes exposições.
Nascido em 1944, sua colaboração para com o segmento que escolheu como objeto de estudo e atividade profissional possui diversidade, constância e quantidade de formatos o suficiente para imaginar que o autor pouco tenha descansado nas últimas décadas, tornando quase impossível encontrar outra palavra que descreva sua relação com o universo das artes além de paixão. São frutos dessa paixão dois títulos que trazem sua assinatura, que recentemente chegaram às nossas livrarias. 
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O primeiro deles, lançamento fresquinho da Companhia das Letras, chama-se Fervor das Vanguardas. Se o título não diz muito ou até pode fazer com que alguns leitores torçam o nariz, devido ao número de picaretagens pretensiosas associadas à palavra “vanguarda” que hoje aparecem em nossas livrarias e salas de exposições, o subtítulo talvez deixe mais claro do que se trata e explique sua importância: Arte e Literatura na América Latina.
O tema não é novidade para o autor dos importantes Vanguardas Latino-Americanas e Vanguardas Argentinas – o segundo escrito em parceria com May Lorenzo Alcala –, ambos lançados pela Editora Iluminuras. Fervor das Vanguardas chega para ser associado a estes títulos e enriquecer ainda mais a bibliografia sobre o assunto em nossas prateleiras. A obra reúne uma série de ensaios e artigos de Schwartz produzidos ao longo dos últimos anos.
Autor de estudos aprofundados sobre as obras de Oswald de Andrade e Oliverio Girondo, dois dos nomes mais emblemáticos das vanguardas do Brasil e Argentina, ambos aparecem aqui em novos textos que abordam aspectos específicos de seus trabalhos e sua importância. É justamente Oswald um dos protagonistas do artigo que abre o livro, o ótimo Tarcila e Oswald na sábia preguiça solar, que traça um estudo sobre a colaboração conjugal e artística do casal emblemático do Modernismo Brasileiro, batizado por Mario de Andrade de “Tarciwald”. Mario, que assim como Oswald figura em vários dos textos que compõe a obra, também teria sido um dos primeiros a estabelecer uma ponte entre os modernistas brasileiros e argentinos, divulgando por aqui os nomes de Jorge Luis Borges e Oliverio Girondo, poeta que, antes dos beatniks e da contracultura, empreendeu uma jornada pelo Oriente no início dos anos 1920, como ficamos sabendo em Ver/ler: O júbilo do olhar em Oliverio Girondo.
Merece destaque o artigo Surrealismo no Brasil?: Décadas de 1920 e 1930. O texto parte da estadia do surrealista francês Benjamin Péret no Rio de Janeiro e em São Paulo entre os anos de 1929 e 1931, quando se casou com a cantora brasileira Elsie Houston,  vinculada a Heitor Villa-Lobos, e estabeleceu relações e colaborou com expoentes de nosso modernismo até ser expulso do país devido a sua ação política com o trotskismo – Perét chegou a ser preso em sua segunda visita em 1956, quando veio assistir ao casamento de seu filho –, para falar do flerte de nossos artistas com o Movimento liderado por André Breton. Schwartz assinala o embarque na aventura surrealista de nomes como Ismael Nery, Cícero Dias, Vicente Rego Monteiro, Tarcila do Amaral, Flávio de Carvalho (“um antropófago avant la lettre”) e Jorge de Lima, entre outros, mas responde à questão que da título ao artigo concluindo que não existe um surrealismo brasileiro, mas sim obras de artistas nacionais de inspiração surrealista.

Também discute a reivindicação de Vicente Rego Monteiro de ter sido ele o precursor da Antropofagia modernista e a obra do lituano radicado no Brasil, Lasar Segall – tema de três capítulos do livro –, como ponto de confluência de um itinerário afro-latino-americano nos anos 1920.
Verdadeiro passeio em busca de pontos em comum entre as produções artísticas de vanguarda do Brasil, Argentina e Uruguai, o livro traz 128 páginas só com reproduções das obras citadas. Além dos nomes acima, a obra também vislumbra os trabalhos do uruguaio Joaquím Torres García e dos argentinos Xul Solar e Horácio Coppola.

Filho da fotógrafa Madalena Schwartz (1921-1923), Jorge também assina a curadoria da exposição Crisálidas, reunindo trabalhos de sua mãe. Moradora do Edifício Copan na década de 1970, Madalena focou seu olhar sob os personagens do Centro de São Paulo. São da época os cliques de transformistas, travestis e performers que compõem a mostra que fica no Museu da diversidade até setembro. A exposição acabou gerando também um livro que reúne 100 fotografias, com destaque para os ensaios com Ney Matogrosso na fase-Secos & Molhados e os Dzi Croquettes, todas extraídas dos mais de 16 mil negativos que fazem parte do acervo do Instituto Moreira Salles que também edita a obra.
De origem húngara, Madalena Schwartz descobriu a fotografia por acaso, depois de o filho Julio ganhar um prêmio do programa de Bibi Ferreira na extinta Tv Excersior. Com o dinheiro, ele comprou uma câmera, mas foi sua mãe quem se interessou pelo aparelho. Da simples necessidade de registrar seu olhar afetivo sobre a cidade, a fotografia acabou por se tornar profissão. Em sua carreira, Madalena Schwartz passou por publicações como as revistas Claudia, Planeta, Status, Lui e Vogue.

Serviço:

Livros: Fervor das Vanguardas, Jorge Schwartz, Companhia das Letras, 376 páginas. Crisálidas, Madalena Schwartz, Editora IMS, 136 páginas.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Boca do Inferno - Otto Lara Resende



Os Infantes Terríveis de Otto Lara Resende

Contundentes e ainda provocadores, os contos de Boca do Inferno estão de volta às livrarias, em nova edição.

por César Alves

“Em São João Del Rei, onde nasci e me criei, cemitério se debruça na rua, está junto das igrejas. Os mortos ficam espiando os vivos, com o olho irônico do Undiscovered Country”, disse, certa vez, Otto Lara Resende a um entrevistador. Embora pulsando vida e contemporaneidade, talvez seja este olhar, carregado de ironia e provocação inteligente, que dá o tom nos sete contos – todos protagonizados por crianças e pré-adolescentes – que compõem Boca do Inferno, obra seminal do autor mineiro, que acaba de ganhar nova edição, através da editora Companhia das Letras.
Lançado originalmente em 1957, Boca do Inferno teve efeito explosivo no imaginário intelectual brasileiro de sua época. Alvo de debates acalorados no meio literário, o livro foi praticamente boicotado pelas editorias de cultura e literatura da época, que, arbitrariamente, decidiram ignorar ou divulgá-lo em algumas curtas e poucas críticas – negativas, em sua esmagadora maioria. O impacto do lançamento e a maneira inesperada como foi recebido chegou a atingir emocionalmente o já respeitado escritor e jornalista, ao ponto de ele mesmo condená-lo ao limbo, recusando-se veementemente a reeditar a obra até sua morte, em 1992.
Com a autorização da família, o livro só voltou às livrarias em 1998, desta vez, ganhando o merecido reconhecimento que lhe foi negado em sua primeira vinda. Ainda assim, embora celebrado por sua ousadia e por manter-se contemporâneo tantas décadas depois, os elogios vinham com certo constrangimento diante das tramas assustadoras e das ações dos personagens imaginados por Otto Lara Resende. 

O que justificaria tal assombro? Seriam as historias de Boca do Inferno, ainda capazes de impressionar os leitores de hoje?
A leitura desta nova edição pode oferecer as respostas e, certamente, esclarecer o que causou tanta discussão, quando o livro veio à luz pela primeira vez, e o que ainda mantém a obra contundente.
Segundo livro na carreira do autor mineiro, Boca do Inferno vinha na sequência de O Lado Humano (1952). Embora recebido de forma modesta, os contos de seu livro de estréia deram ao autor lugar de destaque entre os novos escritores da época. Já reconhecido por seu brilhantismo como jornalista, cronista e excelente frasista – um dos melhores que este país produziu, diga-se de passagem –, em Boca do Inferno, Otto Lara Resende transferia o ambiente urbano das tramas de seu primeiro livro para as cidades do interior e substituía seus protagonistas adultos por crianças.
É justamente na idade de seus personagens e suas ações que se encontra o estopim do choque causado pela obra na sociedade conservadora do período. Para o moralismo vigente no Brasil dos anos cinqüenta eram inconcebíveis os atos dos envenenadores, psicopatas homicidas, tarados incestuosos e suicidas mirins de Resende. Para seus detratores, a obra representava uma ofensa explicita a tudo o que definia a moral e os bons costumes.
Tendo em vista o conservadorismo vigente nas classes dominantes da época – e talvez ainda hoje, quando novas Marchas da Família são planejadas para pedir a volta da ordem sob tutela de uma ditadura militar –, em sua ousadia, o autor sabia estar se arriscando e que pisava em terreno minado. Não é preciso avançar muito na leitura para sacar seus principais alvos: a Igreja (principalmente, no conto que abre e dá título ao livro), a hipocrisia moral da sociedade e a família.
A maioria dos críticos insistia na mesma tecla: a de que os personagens eram inverossímeis e que suas atitudes eram inconcebíveis para crianças. Os Infantes Terríveis de Lara Resende, no entanto, nem de longe, são inverossímeis, assim como não o são suas monstruosidades. Mas não é preciso uma leitura muito atenta para perceber que, para Otto Lara Resende, nos atos dos adultos é que estão engendrados os monstros da infância. Assim é hoje, como também o era naquela época. Como diz uma velha canção dos anos oitenta, a Barbárie começa em casa.
Isto fica claro nos castigos infligidos pelo padre contra seu afilhado, Trindade, em Boca do Inferno; na mãe e na avó que reprimem e duvidam de Silvia, quando a menina revela o assédio e abuso sofridos, inclusive por um parente, em O Segredo; e na crueldade do tio para com o sobrinho órfão, Chico, em O Moinho.
Principal objeto de repúdio dos críticos, o conto Três Pares de Patins, começa numa tarde de diversão no adro da igreja, transformado em pista improvisada, e culmina com a invasão do cemitério onde, sobre uma sepultura, irmão faz sexo com a própria irmã e depois a oferece ao amigo.
Aliás, a maestria com que Otto Lara Resende conduz suas narrativas, muitas vezes, passando da delicadeza de uma tarde ensolarada numa cidadezinha interiorana para o mais sombrio ato de violência, é um de seus principais atrativos. Um dos melhores e mais surpreendentes contos de Boca do Inferno é exemplo disso.
Em O Porão, a história do pequeno torturador de animais – com direito a menção ao clássico de Edgar Allan Poe, O Gato Preto – nos é apresentada durante uma manhã primaveril, culmina num assustador ato de violência e fecha com a cena familiar da mãe que serve o chá da tarde ao filho.
Conforme sugere Augusto Massi, no ótimo posfácio escrito exclusivamente para esta edição, em Otto Lara Resende, o sol de uma bela manhã interiorana se esbarra com o reflexo solar que se faz cúmplice do assassinato praticado pelo personagem de Albert Camus, durante a situação limite de O Estrangeiro.
Ainda impactante e surpreendente, mesmo para nossos dias, Boca do Inferno merece figurar entre as mais importantes obras de nossa narrativa curta. Quase seis décadas depois de sua primeira edição, o livro ainda transpira frescor, provocação e choque e sua volta às nossas livrarias é mais do que bem vinda.

Serviço: Livro: Boca do Inferno – autor: Otto Lara Resende – editora: Companhia das Letras – 188 páginas.


sexta-feira, 20 de junho de 2014

A Flying "V" de Dave Davies





A Flying V de Dave Davies
por César Alves


Os Kinks sempre serão uma de minhas bandas prediletas e sempre rendem assunto para o colega aqui. Mas o motivo deste texto é uma guitarra. A Flying “V”usada por Dave, o caçula dos Davies.
A última vez que ela apareceu em um leilão, foi arrematada por meio milhão de dólares. Instrumentos que pertenceram a artistas de renome costumam valer muito, mas o verdadeiro motivo do valor alcançado pelo item é que, além de ter sido tocada pelo irmão caçula de Ray Davies, é também o protótipo, feito em 1959, do que seria a clássica Gibson Flying V, cujo projeto tinha sido abandonado devido ao formato pouco atraente do instrumento.
A história de como a guitarra foi parar nas mãos do mais jovem e encrenqueiro dos “safados” é ainda mais interessante. Conta a lenda, que os organizadores da primeira turnê americana deles perderam o instrumento usado por Davies e, desesperados para substituí-lo, deram dinheiro ao guitarrista e o mandaram a loja mais próxima escolher uma nova guitarra.
Apesar de o The Kinks já estar galgando o caminho do sucesso, o dinheiro do caçula Dave era controlado pelo irmão mais velho, Ray, e o empresário do grupo, logo o garoto viu uma boa oportunidade de comprar um instrumento barato e embolsar o troco para outras “coisinhas”. Na loja, insistiu que não gostara de nenhum dos instrumentos disponíveis e perguntou por aquela guitarra estranha guardando poeira no fundo da loja.
Não levando a sério, o vendedor teria dito: “Isso ai? É uma guitarra velha que ninguém quer, pois é muito feia. A única garantia que posso lhe dar é que você terá um modelo exclusivo, pois não foram fabricadas outras.” Davies imediatamente fechou negócio por alguns dólares, o valor exato, o guitarrista diz já não se lembrar e voltou feliz para o hotel para agüentar a chacota dos outros integrantes da banda. O modelo começou a ser fabricado em meados dos anos 60 e ganhou popularidade na década seguinte, empunhado por artistas de glam rock, funk e hard rock.
Não dá pra dizer até que ponto Dave Davies aparecendo em shows e programas de TV com seu protótipo, colaborou para o futuro da Flying V, mas a história é muito boa e entrou para o caderno das lendas do universo pop.