quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A Lenda do Santo Beberrão - Joseph Roth



A Redenção da Boemia

Um dos melhores escritores europeus do período entre guerras, Joseph Roth, volta à nossas livrarias com as traduções de A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy.
Por César Alves

Você está numa biblioteca ou livraria e, como que por mágica, um estranho aparece e se identifica como sendo a Morte, avisando-lhe de que seu tempo está prestes a chegar ao fim. Mas, como é do comportamento do Ceifador – a Morte odeia se atrasar e por conta disso, sai cedo de casa para cumprir com seus afazeres –, ele se adiantou demais e informa que você ainda tem entre vinte minutos e meia hora de vantagem, antes de seguirem viagem. Sabendo que é muito pouco tempo para qualquer outra coisa, ele sugere que escolha um livro e faça sua última leitura, já que gosta de ler.
A pegadinha é: Que obra você escolheria?
A brincadeira era feita entre amigos que gostavam de literatura, normalmente ao redor de uma mesa de bar e com muita cerveja. Depois de ouvir da maioria que escolheriam seus poemas prediletos de As Flores do Mal de Baudelaire, Uma Temporada no Inferno de Rimbaud, algo do Bandeira ou um conto de Tolstói e etc, eu dizia que convidaria a Indesejada para ir comigo até um bar para tomarmos a saideira definitiva e, dando uma de Compadre da Morte, como no mito folclórico, tentaria ludibriá-la, embriagando-a e convencendo a danada a cair na farra em direção ao Baixo Augusta. Não funcionando, escolheria como livro derradeiro o belo A Lenda do Santo Beberrão de Joseph Roth.
A protocrônica cotidiana acima é só para falar do grato lançamento – não tão recente, aliás – da Editora Estação Liberdade. Há alguns meses, a editora lançou por aqui traduções de dois títulos de Joseph Roth; A Lenda do Santo Beberrão – principal tema de nosso papo aqui – e Hotel Savoy.
 Considerada “Obra-testamento”, A Lenda do Santo Beberrão foi o último livro escrito por Joseph Roth, também autor de A Teia da Aranha (1923) e A Marcha de Radetzky (1932) e um dos grandes autores universais pouco lidos no Brasil.
A escolha da pedida literária para meus últimos vinte minutos sobre a terra não é apenas por ser uma das minhas preferidas, é que também é possível ler o livro, do início ao fim e sem pressa, em pouco mais de um terço de hora. Trata-se de uma belíssima e curta novela de 22 páginas, capaz de tocar até mesmo aqueles que trazem um bloco de mármore ao invés de um coração batendo no peito.
Escrita como um misto de fábula e parábola cristã – mas nada carola é bom frisar –, A Lenda do Santo Beberrão começa como uma crônica cotidiana ambientada na Paris das primeiras décadas do século vinte, quando toda a Europa vivia envolta em névoas de incerteza, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.
Seu protagonista é um mendigo e alcoólatra que vaga pelas ruas e cantos menos iluminados da Cidade Luz, como os muitos que assim o faziam na época. Certa noite, quando se abrigava sob uma ponte do Rio Sena, aproxima-se um senhor muito bem vestido que puxa assunto e lhe oferece uma grande soma em dinheiro (200 Francos). Segundo o estranho benfeitor, o sem teto teria sido posto em seu caminho por designação divina, tendo em vista que ele, sendo um homem de fé, estava a cata de uma ação benevolente a um desconhecido como que para pagar uma promessa em agradecimento à bondade de Deus que nunca lhe faltara.

Apesar de suas condições, o miserável recusa a oferta, não por orgulho, mas por nutrir um profundo senso de retidão e idoneidade. Jamais aceitaria uma soma monetária por caridade, a ser que pudesse compensá-la com seu trabalho ou ter como devolvê-la, como um empréstimo, assim que se encontrasse em melhor situação.
Sendo ambos devotos de Santa Terezinha de Lisieux, o impasse é resolvido com o mendigo se comprometendo a devolver o valor que lhe é entregue à caixa de donativos da igreja da santa, no prazo de uma semana.
Com mais dinheiro do que jamais possuíra, o pobre coitado aproveita para alugar um quarto num albergue, tomar um banho e dormir numa cama, como não fazia há anos. Boêmio e incapaz de resistir ao chamado da boemia, ele torra todo o dinheiro com bebidas e mulheres.
A partir daí, a trama gira em torno do protagonista, personagens que ele encontra e as situações inusitadas por que passa durante sua obstinada busca para cumprir com sua promessa. Ele consegue o dinheiro, às vezes quase que por milagre, mas de uma vez. Mas, sempre que está prestes a pagar a dívida para com a santa, algo acontece.
Além de ser sua obra derradeira, o motivo de A Lenda do Santo Beberrão ser considerada a “obra testamento” de Joseph Roth também diz respeito ao conteúdo autobiográfico da novela. O protagonista da trama, nada mais é que um alter ego do autor, tendo com seu criador diversos pontos em comum. Assim como o mendigo, Roth também mantinha uma vida de andarilho. Embora sua trajetória e carreira tenham obtido reconhecimento na época, entre a Alemanha e a França, o autor nunca adotou um endereço fixo ou duradouro, viajando e passando por diversos países europeus até seus derradeiros dias. Além de religioso, como seu personagem, Roth também era alcoólatra, entre outras coisas em comum.
Adaptado para o cinema pelo diretor italiano Ermano Olmi, A Lenda do Santo Beberrão ganhou o Leão de Ouro de Veneza de 1988. O filme merece ser visto. Além de ser uma feliz adaptação, também e traz a boa interpretação do holandês Hutger Hauer como o mendigo.
Filho de uma família judaica de Brody, hoje parte da Ucrânia, Joseph Roth nasceu em 1894, nos dias finais do Império Austro-Húngaro. Além de brilhante jornalista, sua obra ficcional foi marcada por personagens à margem de uma Europa angustiada pelo pesadelo diário que marcaram os dias do período entre guerras, que o autor conseguiu retratar como poucos.
Deprimido com os acontecimentos que assolavam o continente europeu, precedendo a inevitável guerra, principalmente a ascensão do nazismo na Alemanha, e cada vez mais mergulhado no alcoolismo, Joseph Roth faleceu em Paris, em 27 de Maio de 1939.

Joseph Roth nas livrarias:
Como dito acima, apesar de sua importância e qualidades indiscutíveis, Joseph Roth parece pouco lido ou, no mínimo, menos comentado e difundido do que sua obra merece. Mas existem bons títulos do autor em nossas livrarias e, além dos dois títulos lançados pela Estação Liberdade – A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy –, sugiro outros dois ótimos livros da Companhia das Letras abaixo:

Berlim Ótimo título da não menos ótima coleção Jornalismo Literário da editora, o livro compila artigos que revelam o brilhantismo do trabalho de Joseph Roth como homem de imprensa. Aqui, o autor faz uma crônica da Berlim da década de 1920. Em suas andanças, o autor destrincha o cotidiano da antiga capital prussiana, quando coração da recém-inaugurada República de Weimar. Passeia por bosques e praças e edifícios e bondes, refletindo sobre o significado da natureza, diante da paisagem artificial da modernidade. Caminha entre bairros de imigrantes, decifra a vida noturna berlinense e visita campos de refugiados e faz um tour pela cidade ao lado de um criminoso que acaba de sair da prisão para, através da ótica de seu companheiro, compreender a medida das transformações ocorridas na metrópole.


Aqui, reencontramos o grande escritor de ficção e fascinante tradutor de seus dias. Usando como pano de fundo os dias que marcaram o início da primeira guerra, Joseph Roth narra a trajetória do judeu e muito religioso, Mendel Singer, para criar uma releitura do livro de Jó. Homem modesto e temente a Deus, Singer vive com sua família numa cidadezinha russa. Apesar de humildes, são felizes e gratos pela vida que levam. A tranqüilidade e os bons dias que Singer atribui à benevolência da Providência Divina acabam com o estouro do conflito e, assim como o personagem bíblico, o personagem descobre-se face a um teste para comprovar sua fé.


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O Novo Jornalismo (Gonzo?) nos Dias da Peste



O Novo Jornalismo (Gonzo?) nos Dias da Peste
por César Alves

“O New Journalism é como o Punk: Tem tantos pais que,se a concepção não ocorreu durante uma orgia, as mães, certamente, não acreditam na monogamia”, já disse a colegas de profissão, em diversas ocasiões, quando o assunto é o Jornalismo Literário e a geração americana que ganhou notoriedade como Novo Jornalismo.
A brincadeira tem mais a intenção de fazer rir do que provocar e, muito menos, ofender a(s) progenitora (s) - longe de mim, isso de colocar a mãe no meio (risos) - um gênero ligado a gente que me influenciou muito, como Gay Talese, Truman Capote, Tom Wolfe, Norman Mailer, Hunter Thompson – na sua própria versão, o Jornalismo Gonzo – e outros.
Por outro lado, não é de toda desprovida de sentido. Afinal, como jornalismo literário, técnica de reportagem que une formas narrativas e estilo vindos da literatura ao texto jornalístico não é exatamente uma criação da América do pós-guerra. John Reed e outros já o faziam no início do mesmo século. Aqui no Brasil, Joel Silveira, A Víbora, já dava às suas reportagens o ritmo e o tratamento que os grandes escritores dão à ficção na década de 40 – para ficar apenas no meu predileto, entre muitos outros brasileiros que souberam unir muito bem o jornalismo e a literatura.
Mas é possível afirmar que, muito antes disso, jornalismo e literatura deitavam-se na mesma cama. O que dizer, por exemplo, dos textos escritos pelo poeta alemão, ícone do romantismo germânico, Heinrich Heine, durante o período em que se exilou na França e decidiu aproveitar sua boa relação com a efervescente agitação cultural parisiense para cobrir espetáculos teatrais e grandes eventos sociais para editores de seu país de origem? São do início do século dezoito.

Sendo possível construir uma árvore genealógica do New Journalism e mesmo do estilo Gonzo de Hunter Thompson – como o leitor irá descobrir mais adiante –, a partir dos exemplos citados acima, o autor de Robinson Crusoé e Moll Flanders, Daniel Defoe, talvez tenha lugar privilegiado, como um dos primeiros a praticá-lo. Seu Um Diário do Ano da Peste (A Journal of The Plague Year – 1722) foi defendido por muita gente – Gabriel Garcia Marquez, entre os mais notórios – como um dos primeiros livros reportagens da história.
E não é pra menos. Inquietante e surpreendente, a obra narra os dias sombrios da epidemia que assolou Londres entre os anos de 1665 e 1666, resultando em um número de vítimas calculado entre 75 e 100 mil mortos – um quinto da população da cidade.
Conta-se que Defoe teria se recusado a aceitar o conselho de familiares e amigos para que buscasse refúgio fora de Londres, até que o contágio fosse controlado, como fizeram todas as pessoas de posses e membros da elite londrina. Acreditando que fugir seria inútil e, conforme a praga fosse se espalhando, cedo ou tarde ela o pegaria, não importando sua localização. Decidido a não se trancar em casa, o autor passou a registrar os acontecimentos durante a epidemia, como registro histórico para a posteridade ou forma de passar o tempo, até que a doença fosse controlada ou o vitimasse.
Trata-se uma reportagem completa, com direito a dados estatísticos sobre número de contagiosos e vítimas fatais, entrevistas com famílias e descrição dos fatos, trazendo já em sua essência uma das características mais marcantes do Novo Jornalismo: O repórter, narrador, também como agente participante da história.
Bom, o amigo leitor pode achar meus argumentos convincentes, quanto ao livro ter características de jornalismo literário e até do New Journalism, mas estar se perguntando: Onde o Gonzo entra na história?
Já explico.
Além de autor de ficção, Defoe era também jornalista – editou seu próprio periódico, The Review, por conta própria –, e escreveu sua obra como depoimentos de uma testemunha ocular da história e, durante muito tempo, muita gente a enxergou assim. O relato fidedigno, os dados numéricos comprovados com exatidão, o fato histórico e a seriedade narrativa apóiam a tese e assim a obra continuou sendo divulgada mesmo muitos anos após a morte de Defoe.

Décadas depois, no entanto, biógrafos de Daniel Defoe se depararam com uma questão surpreendente em relação ao Diário do Ano da Peste: os números não batiam! Comparando as datas de nascimento do autor com o ano em que ocorreu a epidemia de peste bubônica em Londres, os relatos não poderiam ter sido registrados por ele que, na época, estaria com idade entre cinco e seis anos!
Ora, mister Defoe não só abusou do estilo jornalismo literário, como também deve ter feito o primeiro livro reportagem Gonzo conhecido. No mínimo, uma pegadinha digna de Hunter Thompson!
As experiências jornalístico-literárias de Daniel Defoe, no entanto, não terminam ai. Em 1723, durante uma visita à Escócia, o autor tomou conhecimento da história de um fora-da-lei local, Rob Roy. Pesquisando a respeito de sua história, tomou conhecimento de que o bandido era na verdade Robert Roy McGregor, do clã McGregor, que, após aderir à Rebelião Jacobita e ser derrotado na batalha de Glen Shiel, teria tido suas terras expropriadas e partido para a clandestinidade, realizando roubos e assaltos que eram contados como lendas pela população local.
Vendo ai uma grande história, Defoe escreveu um relato romanceado, dando seus toques pessoais a trama, contando as aventuras de Rob Roy, como o rebelde libertário que “roubava dos ricos para dar aos pobres”, Highland Rougue. O texto fez sucesso, tanto na Escócia como em toda a Europa, e elevou a lenda de Robin dos Bosques para a de herói nacional. Graças ao texto, em 1723, o Rei George I acabou vendo-se obrigado a dar a seu desafeto político o perdão real.