terça-feira, 28 de junho de 2016

Ryunosuke Akutagawa, o Mestre da Narrativa Breve



Sob o signo do Dragão

Pai do conto japonês, influência para o cinema de Akira Kurosawa e um dos arquitetos da literatura moderna de seu país, Ryunosuke Akutagawa volta às livrarias brasileiras em nova tradução e textos inéditos.
Por César Alves

Descrito como uma mistura de réptil com marsupial de corpo humanoide e baixa estatura, o Kappa é quase uma espécie de Chupa-Cabras dotado do mesmo espírito zombeteiro de nosso Saci.
Parte das lendas da cultura milenar japonesa, conta-se que vive a espreita na beira dos rios para pregar peças nos viajantes que passam.  Permeado por criaturas fantásticas assim, o rico folclore nipônico deu a ele uma reputação duvidosa. Apesar da aparência engraçada que muitas das descrições podem sugerir, o hábito de afogar pescadores e banhistas desatentos faz do Kappa criatura traiçoeira. Tal característica pode estar entre os motivos que levaram Ryunosuke Akutagawa a escolher os Kappas como protagonistas do conto alegórico que abre a coletânea Kappa e o Levante imaginário, lançamento da editora Estação Liberdade.
Publicado em 1927, Kappa é um dos últimos textos conhecidos de Akutagawa. Narrado por um interno em um hospital psiquiátrico que alega ter sido levado ao mundo dos kappas e convivido com as criaturas, a trama gira em torno de seu relato fantástico.
Denominado apenas como Paciente de número 23, ele descreve uma sociedade não muito diferente da dos humanos, mas com características muito particulares. Um bebê kappa, por exemplo, já nasce falando e, no momento do parto, é questionado se está pronto ou não para vir ao mundo. Sendo a resposta negativa, um tubo é inserido no ventre da mãe e seu conteúdo sugado, como que esvaziando a um balão. Embora suas religiões sejam as mesmas que as nossas, a mais influente é a Modernista ou Vitalista. Conforme o personagem descobre durante visita a um de seus templos, seus seguidores têm como apóstolos Strindberg, Nietzsche, Tolstói, Doppo Kunikida e Wagner.
Sob o divertido e inocente disfarce de fábula infantil, o texto esconde uma contundente crítica à sociedade moderna. Na época de sua publicação, foi acusado de ser um manifesto em defesa do socialismo, pelo qual Akutagawa nutria simpatia. Uma das críticas, no entanto, enxergava em suas linhas uma visão sombria em relação à humanidade como um todo, ganhando aprovação do autor como a leitura mais próxima de suas intenções.
Akutagawa e Kurosawa
Celebrado como o pai do conto japonês e mestre da narrativa curta, sua escrita é marcada pela preocupação detalhista ao descrever ambientes, épocas e situações. Em sintonia com a nova literatura praticada na época, fruto da liberdade criativa proposta pelas vanguardas ocidentais, seu estilo abre espaço para experiências no que diz respeito à forma e conteúdo. Em No Matagal, por exemplo, a investigação do assassinato de um samurai nos apresenta o mesmo fato pela ótica de sete personagens diferentes, em um caso de mistério onde nada é o que parece ser. Sua maestria na condução da trama prende o leitor e oferece um final surpreendente. Quase uma transposição da literatura policial do ocidente para o Japão feudal, o conto forneceu a Akira Kurosawa o enredo para o premiado Rashomon, filme dirigido por ele em 1950 e que entrelaça em adaptação para o cinema dois contos de Akatagawa – o outro, do qual o cineasta tirou o título, também está presente aqui.
Os dez contos que compõem Kappa e o Levante imaginário revelam a versatilidade e ecletismo de um autor apaixonado por seu ofício. Desde a infância, Akutagawa encontrou refugio nos livros. De forma compulsiva, leu todos os títulos da biblioteca da família, composta praticamente de literatura antiga japonesa e chinesa. Homem de seu tempo sofreu também influência de autores ocidentais como Ibsen, Strindberg, Baudelaire, Oscar Wilde e outros. A forma como combinou tais referências para criar uma obra única e original, faz dele um dos principais arquitetos na construção da moderna literatura japonesa. Seja na fase feudal de Os Salteadores, ou na nação moderna que despontava no início do século XX de Rodas dentadas, é sempre o Japão a fornecer o ambiente pelo qual o autor passeia com desenvoltura. Não é a toa que seu nome batiza hoje o mais importante prêmio literário de seu país.
Breve e trágica, vida refletiu na obra
Não espere por fábulas edificantes ao entrar no universo de Ryunosuke Akutagawa. Se existe uma moral da história aqui, é a amoralidade incrustada nas profundezas do espírito humano. Na maioria das vezes, seus personagens são criaturas à margem e prontas a mentir e até realizar atrocidades, alguns por puro deleite pessoal, outros, em nome da sobrevivência ou em situações limite que os colocam em confronto com o lado mais sombrio de sua natureza. Como descobre o servo solitário que protagoniza Rashomon, “não há espaço para escrúpulos quando se quer remediar uma situação irremediável”.
Reconhecida hoje como uma das principais colaborações do Japão à literatura universal, a obra de Ryunosuke Akutagawa possui forte traço autobiográfico. Sua percepção aguçada e negativa em relação à índole humana é fruto de sua origem e vivência pessoal. Nascido em 1892, o autor veio ao mundo em meio a um país que tentava se afirmar como parte da comunidade internacional, apenas quarenta anos após a revogação do xogunato, responsável por trezentos anos de isolamento e estagnação. Na época, o Japão praticamente se dividia em dois mundos distintos: Um que tentava se recuperar do atraso e firmar os pés na modernidade, importando tecnologia e sendo invadido pela cultura ocidental; e outro que rejeitava adaptar-se aos novos tempos, mantendo-se fiel às tradições e superstições que regiam o período feudal, caso de sua família.
O autor teria nascido no ano do dragão, no dia do dragão e na hora do dragão. Para completar, as idades de seus pais na época, segundo os conceitos numerológicos de suas crenças, eram representativas de mau agouro, o que o tornava duplamente amaldiçoado. Pela tradição, a criança deveria ser abandonada a própria sorte. Tentando enganar os deuses, sua família bolou um estratagema que consistia em deixá-lo em local conhecido para que um amigo o encontrasse e o levasse para casa, o que foi feito. Vitimada pela loucura, sua mãe veio a falecer poucos anos após seu nascimento, sendo seguida pelo pai meses depois. Isso colaborou para que fosse considerado de sangue ruim e destinado ao fracasso, tornando-se quase um pária em seu núcleo social.
Criado por um tio, Akutagawa cresceu sob a marca da rejeição, sentimento que o acompanhou por toda a vida e que, ao lado do medo de ter herdado da mãe o gene da loucura, contribuiu para o quadro depressivo que pontuou sua trajetória e refletiu em sua literatura. Sofrendo de abatimento nervoso, problemas gastrointestinais e ataques de alucinações, o autor morreu aos 35 anos de overdose de cianeto de potássio. Era sua terceira tentativa de suicídio. Em nota de despedida, escreveu: “Por mais paradoxal que pareça, agora que estou pronto, acho a natureza mais bela do que nunca. Vi, amei e compreendi mais que os outros.”


Serviço: Kappa e o Levante imaginário, tradução Shintaro Hayashi, Editora Estação Liberdade, 352 páginas.

Publicado originalmente na revista Brasileiros, em 13.10.2011