segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Ficção Científica no Cinema Brasileiro (Livro)



Arquivo-B, a Ficção-científica no Cinema Brasileiro

Atmosfera Rarefeita, de Alfredo Suppia, promove uma jornada ao quase desconhecido universo do cinema de ficção-científica praticado no Brasil.
Por César Alves

De tão incorporado a nossa vida cotidiana, nem parece que, quando surgiu, o cinema era feito algo saído da ficção científica. Assim como poucos gêneros literários parecem ter sido feitos sob medida para o que viria a ser chamado de linguagem cinematográfica – muito antes de ela sequer existir, como é característico do estilo – quanto o explorado por mestres como Julio Verne, H.G. Wells, Phillip K. Dick, Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Robert Heinlein, Ray Bradbury e etc, de uma lista imensa demais para citar todo mundo.
Dos experimentos visuais e colagens dos efeitos especiais avant la lettre de Georges Meliés, que resultaram em obras memoráveis como Viagem à Lua (1902), passando pelos B-movies de Ed Wood, 2001: Uma Odisséia no Espaço, Blade Runner, Alien, o Oitavo Passageiro, os mega-orçamentos e bilheterias de Steven Spielberg até chegarmos aos recentes Avatar, Eu, Robô e outros, a parceria Cinema e FC parece longe de chegar ao fim.
Além da industria de Hollywood, a ficção-científica aparece no cinema russo, alemão – Metrópolis (1927), de Fritz Lang é um marco –, japonês, entre outros; se você acha que Truffaut atuando em Contatos Imediatos do Terceiro Grau é o mais perto que a Novelle Vague esteve do gênero, lembre-se de Alphaville (1965) de Godard e a lista segue adiante.
“E no Brasil?” Pode estar se perguntando o amigo leitor ao que respondo com a sugestão de uma leitura, tão agradável quanto obrigatória, de Atmosfera Rarefeita – A Ficção Científica no Cinema Brasileiro, de Alfredo Suppia, publicado pela editora Devir.
“Minha entrada no cinema não foi planejada. Na verdade, comprei minha primeira câmera para ver se conseguia filmar um disco voador”, confessou-me mais de uma vez Ozualdo Candeias, responsável por obras emblemáticas de nosso áudio visual, como A Margem (1967).
Apesar de nunca ter realizado um Sci-Fi Rural, infelizmente, o fato de Candeias ter passado de caminhoneiro à cineasta por influência dos aliens é simbólico sobre o quanto nós fomos feitos para o gênero. Convenhamos, esse país parece coisa de outro planeta e chega a ser imperdoável que a trama de um filme como Distrito 9, não tenha sido pensada por um cineasta brasileiro. Como não poderia deixar de ser, nossa aventura cinematográfica está cheia de visitas de óvnis, viagens no tempo, cientistas loucos e suas experiências catastróficas ou cômicas, desde o início.
Já em 1908, descrita como “fita cômico phantastica”, a comédia Duelo de Cozinheiras, de Antonio Leal, já trazia características do gênero. Mas é no ano de 1947, com a estréia de Uma Aventura aos 40, de Silveira Sampaio, que um longa ousaria imaginar o mundo do futuro, imaginando o Brasil no distante ano de 1975. A partir daí marcianos desfilaram na avenida em Carnaval em Marte (1954), de Watson Macedo; Carlos Manga introduziu a guerra pela supremacia tecnológica da Guerra Fria em O Homem do Sputnik (1959), cientistas brasileiros promoveram a conquista da lua em Os Cosmonautas (1962), de Victor Lima; e até Nelson Pereira dos Santos flertou com o futuro apocalíptico zumbi de George Romero em Quem é Beta (1973).
Didi, Dedé, Mussum e Zacarias foram ao “Planalto” dos Macacos e lutaram na Guerra dos Planetas e, de sátiras eróticas como O ETesão (1988) até sucessos recentes como O Homem do Futuro (2011) o cinema brasileiro produziu tanta ficção científica quanto as curvas futuristas de Niemeyer poderiam sugerir.
Membro da Sociedade Brasileira para Estudos do Cinema e do Audiovisual, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), autor de diversos textos sobre cinema e fundador da Zanzalá, primeira revista acadêmica dedicada ao estudo de ficção científica e fantasia do Brasil (http://www.ufjf.br/lefcav/revista-zanzala), Alfredo Suppia nos oferece um excelente estudo que vai além da pesquisa histórica e avaliação crítica, resultando numa obra única e indispensável.


Serviço:
Título: Atmosfera Rarefeita – A Ficção Científica no Cinema Brasileiro
Autor: Alfredo Suppia
Editora: Devir
400 páginas



terça-feira, 18 de agosto de 2015

O Coração das Trevas em Quadrinhos e o Holocausto Negro do Congo



As Profundezas do Lobo do Homem no Congo Belga e Joseph Conrad em Texto e Imagem

Fruto da experiência pessoal de Joseph Conrad, durante sua estadia no Congo, em plena colonização genocida belga e um dos mais intensos cânones da literatura universal, O Coração das Trevas, ganha adaptação para quadrinhos.
Por César Alves

Certa manhã, no limiar do século XX, missionários europeus, dedicados a espalhar a boa nova entre os selvagens da África e salvar da danação suas pobres almas condenadas, receberam um cesto pesado. A princípio, acreditaram tratar-se de um presente, uma demonstração de gratidão dos nativos aos arautos da santidade entre os homens.
O Horror! Não eram frutas nativas.
O Horror! Estava cheia até a borda.
O Horror! Dezenas de mãozinhas negras decepadas.
O Horror! Membros, separados dos corpos de crianças nativas, para castigar seus pais rebeldes.
O Horror! O conteúdo do cesto era o resultado de mais de duas décadas da colonização belga, perpetradas pelos homens de boa vontade.
O Horror! Um dos maiores e mais terríveis massacres, hoje esquecido pelos livros de história.
O Horror! Cerca de 13 milhões de mortos!
O Horror! O silêncio sepulcral de Deus quase tão sombrio quanto o silêncio dos homens de bem, frente aos massacres em nome civilização e do progresso.
Apelidado de “O Açougueiro do Congo”, foi como filantropo, o bom monarca que, em socorro ao sofrimento do povo africano, empreende uma missão civilizadora e humanitária para curar os doentes, educar os ignorantes e alimentar os famintos do Congo, Leopoldo II assumiu um dos poucos territórios ainda inexplorados, durante o neo-colonialismo europeu na África.

Terreno difícil, selva invencível, o Congo era o inferno, mesmo para exploradores experimentados. No final do século XIX, ainda evitado pelas nações ricas que investiam e lucravam com a exploração das riquezas dos territórios vizinhos.
Ambicioso, Leopoldo II chegou ao poder como o soberano que iria mudar o papel de seu país na história. A Bélgica havia ficado de fora da colonização do Novo Mundo, era vista como uma nação pacífica e próspera, mas sem grande atuação no jogo político internacional. Vencer o inferno do Congo poderia ser a cartada definitiva para mudar o jogo. Mas a empreitada era por demais arriscada. As chances de fracasso eram imensas e, ainda que obtivesse sucesso, os lucros certos com as riquezas naturais levariam tempo para cobrir as despesas da aventura.
Para evitar jogar a conta no tesouro belga, o rei arquitetou um plano para financiar equipamentos, armas e mão de obra, sem tirar do próprio bolso. Fundou, em seu nome e em nome de seus parentes, diversas associações filantrópicas de fachada e, através delas, arrecadou os fundos necessários, sob a alegação de tratar-se de uma expedição humanitária. Algo bem parecido com o golpe de políticos, ativistas inescrupulosos e ONGs falsas de hoje em dia. Na verdade, sua majestade tinha verdadeiro interesse era na riqueza de marfim e extração de borracha – o potencial das riquezas minerais da região ainda não tinha sido percebido, mas o leitor não está errado se pensou nos “Diamantes de Sangue”, que não é nada mais do que um dos capítulos mais recentes dessa mesma tragédia.
Os trinta anos de dominação belga no Congo, resultou num número aproximado de 13 milhões de mortos. Portanto, quando você pensar nos grandes genocídios da história, lembre-se também do Holocausto Negro no Congo; quando falarem em campos de trabalhos forçados e de extermínio, pense no estupro de mulheres negras liberados para soldados e emissários do rei e no único caso conhecido na história de um povo e um país inteiro como propriedade e mão de obra escrava de um individuo, o Rei Leopoldo.
Quando ler sobre a crueldade perpetrada por grupos paramilitares, milicianos e guerrilheiros nas florestas africanas de hoje, pense no “Manual de Dominação e Condicionamento”, elaborado pelos alto-funcionários da coroa belga em fins do século dezenove, que incluía tortura, desmembramento, decapitação e cabeças enfiadas em estaca, como forma de imposição da ordem, ainda hoje usado para educar os integrantes dos grupos citados anteriormente.

O horror, segundo Joseph Conrad, em quadrinhos
Ainda hoje praticamente ignorado pelos livros de história, a tragédia colonial do Congo não passou despercebida pela literatura e acabou gerando uma das obras mais importantes de literatura universal, através da pena mestra de Joseph Conrad, autor de O Coração das Trevas e testemunha ocular do massacre – Conrad seguiu a carreira de marinheiro por 16 anos, experiência que foi base para sua obra. Em um de seus últimos empregos marítimos, o autor trabalhou para uma empresa de exploração belga, justamente conduzindo um barco a vapor através do Rio Congo. O período de dominação de Leopoldo II.
A obra, que já ganhou duas adaptações para cinema e pode ser encontrada em diversas traduções em nossas livrarias, acaba de chegar às nossas prateleiras em adaptação para os quadrinhos.
Roteirizado pelo premiado dramaturgo norte-americano, David Zane Mairowitz, com desenhos de Catherine Anyango, do Royal College of Arts of London, e tradução para o português de Ludimila Hashimoto, no ótimo lançamento da heróica editora Veneta.

Inspiração para o roteiro de Apocalypse Now de Francis Ford Coppola, O Coração das Trevas narra a saga do capitão Charles Marlow e sua busca pelo misterioso senhor Kurtz. Lobo do mar e aventureiro, Marlow se vê entediado após longo período sem trabalho. Para quem tem em um navio seu único lar e na vastidão do mar sua única pátria, nada pior que terra firme. Contratado por uma companhia inglesa de exploração de marfim, Marlow assume o comando de um barco a vapor. É enviado a uma colônia africana para, pelo rio, transportar de um posto a outro o produto extraído da selva. Antes, no entanto, é incumbido de resgatar o senhor Kurtz, funcionário que dirige o posto mais produtivo, localizado na parte mais alta e inóspita da rota. A busca por Kurtz mergulha Marlow em uma jornada sombria em direção às profundezas da selva e da alma humana.


Serviço:

Título: O Coração das Trevas
Autores: Joseph Conrad, David Mairovitz e Catherine Anyango
Editora Veneta
128 páginas




segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A Jornada do Escritor - Christopher Vogler (Livro)




A Jornada Heroica do Autor

Depois de anos fora de catálogo, A Jornada do Escritor, de Christopher Vogler, volta às livrarias brasileiras em nova edição da editora Aleph.
Por César Alves

Em conversas com amigos já disse mais de uma vez que a única regra válida para a escrita criativa é a de regras existem para ser quebradas. Não se aprende a ser criativo; não se ensina a ser escritor, o artista forma-se e, formando-se, desenvolve, inventa e reinventa suas próprias formas e linguagens.
Mas isso não significa que a arte de contar histórias não possui suas próprias formas inevitáveis e que o bom contador de histórias deve ignorá-las. Conhecê-las bem, aliás, mesmo que para subvertê-las, como é do feitio de escritores realmente bons, é quase uma obrigação. Como defende Christopher Vogler forma não significa fórmula e é às formas que compõe uma grande história a que se dedica em seu A Jornada do Escritor, que após anos longe de nossas prateleiras ganha nova edição em português pela editora Aleph.
Desde que o herói Gilgamesh empreendeu sua epopéia no poema épico da Mesopotâmia, registrados em escrita cuneiforme em placas no século sétimo antes de Cristo, até a última aventura de Batman ganhar as telas dos cinemas e faturar milhões em bilheteria; passando pelo bravo Odisseu e sua argúcia para vencer as armadilhas de Posseidom em sua jornada de volta a Ítaca, depois de vencer praticamente sozinho a guerra contra os troianos, com a brilhante estratégia do cavalo de madeira, certas características na narrativa de uma aventura continuam as mesmas.
Tais características e passagens, denominadas A Jornada do Herói, foram tema recorrente na obra de Joseph Campbell, especialista em mitologia e religião comparada norte-americano. Em sua obra O Herói de Mil Faces, Campbell disseca passagens recorrentes na trajetória heróica dos mitos ancestrais, tanto na mitologia clássica, quanto na bíblica e cristã, de Homéro a Shakespeare, tais como O Chamado à Aventura e A Descida aos Infernos, por exemplo. Foi justamente inspirado em O Herói de Mil Faces, de Campbell, que Vogler desenvolveu seu A Jornada do Escritor.
O livro apropria-se dos tópicos abordado pelo genial mitólogo norte-americano em seus estudos obrigatório, usando uma linguagem atual e acessível, fazendo uso não só dos exemplos mitológicos clássicos de Campbell como também de obras contemporâneas como a trilogia Star Wars, de George Lucas, entre outras, por exemplo.
Além de Campbell, Vogler baseou-se nos estudos de Carl G. Jung sobre arquétipos e Inconsciente Coletivo para estruturar seu livro que é considerado uma das obras mais importantes sobre estrutura literária hoje, utilizada como guia por escritores de roteiros cinematográficos, peças de teatro e literatura.
Longe de ter a intenção de estabelecer fórmulas – o próprio autor sugere aos seus leitores que as desconstrua, afinal, a simples leitura do livro não faz de ninguém um escritor –, a obra oferece uma série de dicas e observações importantes para se compreender o processo de construção de uma narrativa, como amarrar bem uma história e, através de uma leitura atenta, ajudar na formação de escritores como escrever com maestria.
Consultor de grandes estúdios, o autor colaborou com filmes de grande sucesso como O Rei Leão, Clube da Luta e Cisne Negro, entre outros. Leitura indicada tanto para estudantes e profissionais das mais diversas áreas da escrita criativa, quanto para leigos.

Serviço:
Título: A Jornada do Escritor
Autor: Christopher Vogler
Editora: Aleph
488 páginas





quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Cantatas de J.S. Bach - Alfred Dürr (livro)



Compendio do Êxtase Divino

Com acabamento gráfico belíssimo e pesquisa digna de sua importância, finalmente chega às nossas livrarias a primeira edição brasileira das Cantatas de J. S. Bach, de Alfred Dürr.
Por César Alves


Segundo Lewis Thomas (1913-1993), “musica é nosso esforço para explicar a nós mesmos o funcionamento de nosso cérebro”. O argumento tenta explicar o êxtase experimentado – mesmo em se tratando dos ouvintes não familiarizados com música erudita – durante a execução das composições de J. Sebastian Bach. Segundo o médico, biólogo, escritor e poeta, entre as diversas atividades que exerceu, “quando ouvimos Bach, ouvimos a manifestação da própria mente humana”.
Sendo o cérebro humano morada de nosso sentido de existência, a mente – que também pode ser traduzida por alma, conforme o gosto do leitor – é o templo filosófico intimo e interior do humano como indivíduo, onde a razão científica e a graça religiosa oram juntas e, na musica – seja sacra ou profana –, mesmo os mais racionais dos materialistas, entre os homens, entram em comunhão com o que talvez não encontre uma tradução melhor além de divino. Para Lewis, J. S. Bach não apenas comunica-nos a nós mesmos como indivíduos, como também, dentre todos os grandes compositores da história, foi quem melhor traduziu nossa civilização como espírito coletivo.
Leigo que sou – há gente muito mais gabaritada do que eu para explanar sobre Lewis Thomas e J. S. Bach –, minha interpretação pode ser um disparate pretensioso ou quase uma ofensa aos argumentos de Lewis em defesa de seu compositor favorito. Embora não seja de toda sem sentido.

Conta-se que, certa vez, ao ser questionado sobre que mensagem ele enviaria a uma possível civilização, distante no tempo e no espaço, para exemplificar o que a raça humana tinha de mais gracioso e belo, sem pestanejar, teria respondido: “Eu enviaria toda a obra de Bach”. Sua sugestão foi acatada e, em 1977, junto com a Voyager 1 – atualmente o objeto de fabricação humana mais distante a vagar no universo –, seguiu um disco dourado que deveria apresentar nossa espécie a possíveis outras civilizações alienígenas, incluindo o compositor das peças que compõem Cantatas, livro assinado pelo musicólogo Alfred Dürr (1918-2011), que finalmente ganha edição brasileira graças ao excelente projeto da editora da Universidade Sagrado Coração (Edusc).
Publicado originalmente em 1971, As Cantatas de J. S. Bach, desde o início, atraiu a atenção não só de especialistas e músicos eruditos, como também do grande público. Fruto de anos de dedicação meticulosa de seu autor, a obra reúne parte considerável da produção do maior compositor alemão do período Barroco.
Considerado um dos maiores especialistas na obra do autor de peças inconfundíveis para qualquer um que possua um aparelho auditivo – tanto profundos conhecedores quanto leigos –, de Jesus Alegria dos Homens e Tocata em Ré Menor – ainda há teorias conspiratórias que põem em dúvida Bach como verdadeiro autor da última, é bom lembrar –, o berlinense Alfred Dürr debruçou-se sobre o tema de forma aprofundada, resultando num trabalho ainda inigualável e estudo indispensável para musicólogos, músicos, admiradores da musica clássica e erudita, mas nem por isso, incompreensível para leigos.

Obra de valor incontestável, a versão brasileira que acaba de ser lançada, não foi missão das mais fáceis e demandou dedicação apaixonada e trabalho exaustivo de todos os envolvidos. A idéia de traduzir o livro de Dürr surgiu em 2002, mas o projeto ficou parado até 2010 e, entre aprovação do projeto pela Lei Rouanet, captação de verbas, revisões, formatação estética e adaptação, o mais fiel possível, do original em alemão para o português, tendo como objetivo único nada abaixo da perfeição, até que o calhamaço de cerca de 1.400 páginas chegasse até os leitores brasileiros, representou uma verdadeira Via Sacra. O resultado – e o leitor pode conferir por conta própria –, certamente, valeu a pena. A belíssima edição da Edusc, desde já, merece lugar de destaque entre os melhores lançamentos do ano.
Considerado um dos maiores monumentos da musica ocidental, o conjunto das Cantatas de Bach está diretamente ligado ao legado luterano. Durante sua vida, J. S. Bach compôs mais de mil peças musicais, buscando inspiração e apropriando-se dos mais diversos gêneros musicais da época, do folclórico ao religioso, de temas sacros ao materialismo profano, mais de dois terços de sua produção, dedicado a Igreja Luterana.
Na verdade, não há como separar Bach do perpetrador das Reformas, Martinho Lutero, apesar do quase um século e meio que separam o nascimento do primeiro, depois da morte do segundo. Também musico, foi Lutero quem redefiniu o papel do canto nas congregações cristãs, até aqui obrigatoriamente em latim ou grego, ao permitir a composição de cânticos na língua local para que fossem compreendidos pelos fies das igrejas, além de fazer a primeira tradução para o alemão do texto da Bíblia – o que lhe valeria a excomunhão.
 Gênio precoce, aos 14 anos, J. S. Bach compôs sua Cantata Número 4, justamente inspirada no cântico Christ Lag In Tades Bonden (Cristo Está nos Domínios da Morte), composto por Lutero.
Tido como o maior nome do Barroco Alemão e Cânone Maior da Musica Ocidental, pode parecer estranho que Bach não tenha gozado de grande fama em vida. Era pouco conhecido fora de seu país e, para se ter uma idéia, quando veio a falecer, aos 65 anos, em 1750, sequer foi considerado importante para ter uma lápide com seu nome, ao ponto de ser preciso escavar cerca de 47 covas, em 1894, para encontrar seus restos que, desde 1950, descansam na Igreja Thomaskirche, em Leipzig, à qual dedicou sua vida.


Serviço:
As Cantatas de J.S. Bach
Autor: Alfred Dürr
Editora: Edusc
1.400 páginas



quarta-feira, 5 de agosto de 2015

A Barbárie dos Homens e a Paixão do Menino, Segundo Dostoiévski




A Barbárie dos Homens e a Paixão do Menino, Segundo Dostoiévski

Distintas na forma e conteúdo, Recordações da Casa dos Mortos e O Pequeno Herói estão diretamente ligadas à jornada do autor russo aos Infernos do Cárcere.
Por César Alves

1849 foi um ano ruim para Fiodór Dostoiévski.
Encarcerado, sob a acusação de conspirar contra o czar Nicolau I, e a espera de um julgamento, cujo veredicto, conforme o autor talvez já esperasse, seria culpado. O que pode ter causado surpresa foi a sentença e condenação, pena de morte, já que, na época, Dostoiévski gozava de certa notoriedade, como um dos mais promissores jovens talentos da literatura de seu país, graças a boa recepção de Gente Pobre (Editora 34), seu livro de estréia, publicado três anos antes.
Acompanhado de seus supostos cúmplices de conspiração, Dostoiévski chegou a ficar de frente com o pelotão de fuzilamento e vislumbrar o olhar frio e sentir o odor de necrose e o bafo da Morte em seu cangote. No último instante, no entanto, quando os atiradores já estavam a postos e prestes a efetuar os disparos, um emissário do governo aparece com um documento que substituía a pena máxima por quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, seguida de mais cinco anos servindo como soldado voluntário do exército russo. Mais para encenação cruel e sádica, com o intento de quebrar de vez o espíritos dos inimigos do Estado, do que demonstração de benevolência política, certo é que o episódio seria o primeiro dos muitos, durante o martírio penal, que marcaria de forma indelével sua obra e biografia.
O drama prisional do mestre russo está diretamente ligado a dois excelentes títulos recém chegados às livrarias brasileiras, Recordações da Casa dos Mortos (Nova Alexandria) e O Pequeno Herói (Editora 34).
O primeiro, também conhecido por Notas da Casa dos Mortos, é uma edição revista, de capa dura, da tradução de Nicolau Peticov, que andava sumida das prateleiras. Inspirado em suas anotações clandestinas – o autor foi proibido de escrever, durante o cumprimento de sua pena –, sobre sua experiência nos campos de trabalhos siberianos e suas conversas com outros condenados, realizadas entre 1850 e 1854.
Originalmente, a obra foi publicada em capítulos, de 1860 à 1862, no periódico Mundo Russo. Escrito como romance, Recordações da Casa dos Mortos conta história de Aleiksandr Pietrovitch, assassino confesso de sua esposa seus dias de tormento como condenado a trabalhar na franquia siberiana do Inferno, pelas quais também passou seu criador. E é justamente esse tempero autobiográfico que faz do livro mais do que um romance.
Embora construída como ficção, a obra é dotada de inegável conteúdo documental. Trata-se de um rico, minucioso e brilhante estudo sobre a miséria humana, análise social e psicológica e depoimento quase pessoal sobre o cotidiano brutal de condenados e carcereiros, oprimidos e opressores; o inconsciente conflituoso entre sentimentos de fúria, resignação, apatia e revolta, num caldeirão de violência e miséria.

O Menino e o Sexo
Talvez por ser parte da produção de seus dias de cárcere – escrito na prisão, entre julho e dezembro de 1849 –, O Pequeno Herói pode surpreender alguns leitores de Fiodor Dostoiévski, por parecer tão distante do contexto sombrio em que o autor se encontrava ao concebê-lo e que se fez presente em grande parte de sua obra.
Uma leitura das cartas que o autor escreveu para seu irmão do cativeiro, no entanto, pode apontar a narrativa como fruto direto do impacto sobre o autor da percepção do verdadeiro valor do convívio social e grandeza encontrada num raio de sol sobre seu rosto. Algo que, não só os dotados da sensibilidade artística, mas todo o gênero humano só venha a se dar conta quando uma vez tendo sido privado.
Análises pretensiosas à parte, aqui, o ambiente descrito é composto de belas paisagens, passeios e manhãs ensolaradas de dias de verão, clima pouco explorado por Dostoiévski na maioria de suas criações. Assim como pode parecer também a trama, que gira em torno da descoberta do amor por um garoto de dez anos de idade.
Narrado em primeira pessoa por um menino, o texto nos é apresentado como relatos de suas memórias em relação a acontecimentos que marcaram o fim de sua primeira infância. Em seu relato ele descreve os dias daquele verão em que se apaixonou pela primeira vez. Amor impossível, como é sempre nessa fase, por uma mulher mais velha e casada.
Dotado de uma poesia singela, O Pequeno Herói explora o começo do fim das inocências infantis, o despertar do amadurecimento – há uma bela simbologia na passagem em que o protagonista decide montar um cavalo selvagem e quase morre, na tentativa de impressionar sua musa – de forma quase inocente. E, quando digo quase inocente, é porque Dostoiévski nunca é inocente.
Uma leitura mais atenta deixa claro, logo nas primeiras páginas, que mais que o despertar do amor, o autor também fala sobre a descoberta dos desejos sensuais na infância, bem antes daquele famoso médico de Viena.
Nosso herói, a principio, também volta sua atenção à uma moça mais jovem, a mais bela e jovem, por quem o menino se sente atraído, mas de uma forma diferente da atração que sente por sua musa. O que o atrai aqui, está mais ligado às suas belas formas. Percebendo isso, a garota acaba se aproveitando disso para atraí-lo e pregar-lhe peças, como, por exemplo, quando ela pede a ele para se sentar em seu colo e, entre um cafuné e outro, desfere-lhe pequenas torturas com beliscões dolorosos. Com sua primeira Famme Fatale, acaba descobrindo que a beleza do objeto de desejo, quase sempre, vem acompanhada de uma crueldade que beira o sadismo.
A tradução é de Fatima Biancchi e ilustrada com gravuras de Marcelo Grassman

Serviço:
Título: Recordações da Casa dos Mortos
Autor: Fiodór Dostoiévski
Editora: Nova Alexandria

Título: O Pequeno Herói
Autor: Fiodór Dostoiévski
Editora: 34