terça-feira, 2 de junho de 2015

Linhas de baixo, riffs de palavras e livros de musica - Livros


Linhas de baixo, riffs de palavras e livros de musica

Das memórias de Peter Hook sobre os dias do Joy Division, passando pelo The Cure, ao nascimento da New Wave brasileira, na biografia de um de seus artífices, Kid Vinil, as historias do pós-punk invadem nossas livrarias com o lançamento de ótimos títulos.
Por César Alves

Desde criança, sempre gostei de musica e sempre gostei de histórias, ficcionais ou não e independente da forma como eram contadas. Sendo assim, logo que comecei a ter algum dinheiro, através de bicos e, principalmente, quando passei a ter um salário – miserável, diga-se de passagem –, como Office-boy, por volta dos 14 anos, não é de se estranhar que boa parte de meus gastos pessoais tenham sido na aquisição de discos e livros.
A conversa fiada autobiográfica não é de toda sem sentido. Serve para ilustrar o motivo da empolgação do amigo que vos escreve em relação ao verdadeiro tema deste texto: os mais do que bem vindos livros Unknown Plesures – Joy Division, de Peter Hook, Nunca é o Bastante – A História do The Cure, de Jeff Apter, e Kid Vinil – Um Herói do Brasil, de Ricardo Gozzi e Duca Belintani, das editoras Seoman e Edições Ideal – a segunda, responsável pela biografia de Ian Curtis, também citada aqui.

Sobre jovens e o peso em seus ombros

Poucas bandas na história do rock podem ser comparadas ao Velvet Underground no que diz respeito ao culto e o impacto de sua influência sobre as gerações que as seguiram. Dentre elas se inscreve o Joy Division.
Formado em Manchester por quatro garotos da classe operária sob o nome Warsaw – referência a canção Warszawa, faixa do cultuado álbum Low, da não menos cultuada trilogia de Berlim de David Bowie e Brian Eno –, o Joy Division possui tudo o que é preciso para justificar o culto em torno de sua historia: uma produção tão curta quanto impactante, formada por dois álbuns que se tornaram clássicos, Unknown Plesures (1979) e Closer (1980); originalidade musical e lírica marcantes, atitude e, principalmente, uma biografia marcada pela tragédia.
Eram os dias caóticos e sombrios da segunda metade da década de 70 e, influenciados pela fúria sonora verborrágica do punk rock, os amigos de escola Bernard Summer e Peter Hook, respectivamente guitarra e baixo, se uniram ao baterista Stephen Morris e ao cantor e letrista Ian Curtis para dar início à sua própria banda. É justamente na figura de Curtis que se apóia o dado trágico citado no parágrafo anterior.
Suas letras intensas e carregadas de poética e urgência niilista, associadas à sonoridade sombria e clima tenso, marcado, principalmente, pela produção e Martin Hannett, foram essenciais para criar a aura glacial comumente associada à banda. Seu suicídio, pouco antes de sua banda embarcar para uma turnê pelos Estados Unidos, o que poderia dar início a uma promissora carreira internacional, foi mais do que suficiente para completar o mito – não totalmente desprovido de verdade – do gênio atormentado e deprimido que antecipa o outono de sua existência no auge de sua primavera criativa e torná-lo, junto com sua banda, alvo de inúmeros livros e reportagens – algumas boas, outras nem tanto –, explorando tal imagem.
É justamente por confirmar e, ao mesmo tempo, desmitificar tais características – que vieram se tornar verdadeiros clichês, quando se fala de Ian Curtis e do Joy Division –, mas, principalmente, por lançar novos pontos de vista sobre sua trajetória que as duas obras disponíveis agora nas livrarias brasileiras são especiais.
Lançado recentemente pela editora Seoman, o primeiro, Unknown Pleasures – Joy Division, escrito pelo baixista da banda e, mais tarde, junto com os outros sobreviventes, fundador do New Order, Peter Hook, o livro oferece uma visão interna sobre a história, do ponto de vista de quem participou dela desde o início.
Na condução das quatro cordas de seu contrabaixo, passando por palcos de inferninhos, estúdios de gravação e bastidores de shows, Hook protagonizou e ajudou a construir a historia que narra, de forma honesta e leitura agradável, de seu ponto de vista privilegiado. Embora, humildemente, o baixista não se considere o dono da verdade, como diz em vários momentos, sua versão dos fatos é um relato detalhado e apaixonado daqueles dias de quem esteve e consegue colocar o leitor no olho do furacão que foi a trajetória de sua banda. É como um garoto em uma banda que Hook conta sua história sobre quatro amigos conquistando seu espaço no explosivo nos subterrâneos do rock europeu, com descrições detalhadas de cada uma das apresentações, momentos engraçados e até escatológicos, uso abusivo de álcool e drogas, mas principalmente amizade.
Tocando à Distância, de Deborah Curtis, apresenta uma visão mais íntima e pessoal, focada na persona de Ian Curtis, com quem a autora foi casada e teve uma filha. Publicado no Brasil ano passado, o livro é considerado item essencial para compreender seu biografado na intimidade. Narrativa intensa e comovente, contém imagens da vida familiar de Ian Curtis, além de lançar luz sobre os motivos que o levaram a cometer o ato final que marca sua trajetória – um coração dividido entre as glórias e os excessos de um rock star e o pai de família, entre o amor pela esposa e a amante e, para piorar, a saúde comprometida pela epilepsia. O livro foi a base para a cinebiografia, Control, de Anton Corbjin,e traz prefácios de Jon Savage e Kid Vinil. A publicação é da Edições Ideal.

Jumping Someone Else´s Train

Pela mesma editora, acaba de sair também Nunca é o Bastante – A História do The Cure.
A historia do Cure é como a de diversas bandas ao redor do mundo. Começa com garotos inventando formas para vencer o tédio na cidade de Crawley, Sussex, Inglaterra, até alcançar o estrelato como uma das principais bandas do pop britânico da década de 80.
Falar sobre o The Cure é falar sobre Robert Smith, líder e único integrante permanente em todas as diversas formações que a banda teve até os dias de hoje. Apaixonado por rock desde que, ainda na infância, teve contato com os discos dos Beatles e viu uma apresentação de Jimi Hendrix pela tevê, foi através de David Bowie que Smith aprendeu a importância da imagem para a construção estética de um artista. Lição que seguiria à risca desde o início da banda que formaria com os amigos, sob a inspiração do Punk e do pós-punk em meados dos anos 70.
Também autor de uma biografia sobre os Red Hot Chilli Peppers, o australiano Jeff Apter fez uma série de entrevistas com os integrantes do Cure e seu líder para construir um relato detalhado de sua história em suas diversas fases, disco a disco, turnê a turnê, incluindo suas passagens pelo Brasil, resultando numa obra, no mínimo, indispensável, para fãs ou não.

Adicionar legenda
O Herói do Brasil

“Na hora do almoço a minha fome é de leão. Abro a marmita e o que vejo, feijão. Chega o fim do mês, com toda aquele euforia. Todos ganham bem e eu aquela micharia”. Nos anos de minha primeira infância, assim como todos os garotos da época, sabia cantar de cor a letra desse sucesso das rádios e programas de auditório, mas só alguns anos depois, quando comecei a trabalhar – e aqui está o link com o parágrafo que abre este texto, é que fui entender de verdade do que falava a musica interpretada por Kid Vinil, à frente de seu Magazine.
Não só como cantor do Magazine, mas também como líder dos Heróis do Brasil, Antonio Carlos Senefonte, o Kid Vinil, fez sucesso da década de oitenta com outros sucessos, como Tic, Tic, Nervoso, mas seu papel na construção do rock brasileiro de sua geração e para as gerações vindouras vai muito além disso, como o leitor pode conferir na biografia autorizada Kid Vinil, O Herói do Brasil, de Ricardo Gozzi e Duca Belintani.
De auxiliar de Departamento Pessoal a executivo da gravadora Continental, passando pelo início do punk brasileiro, como vocalista do Verminose, os sucessos nacionais citados acima e o processo hercúleo para trazer aos ouvintes e fãs de musica o que se passava no universo da musica pop internacional, tanto como radialista como apresentador de tevê, a vida de Kid Vinil, que se confunde com a do próprio pop brasileiro, é aqui narrada de forma leve e divertida, contando com depoimento do próprio biografado, familiares, parceiros e gente como Fabio Massari, Fernando Naporano e outros dos que o ajudaram a construir essa historia.

Serviço:

Livros:
Título: Unknown Pleasures – Joy Division
Autor: Peter Hook
Editora: Seoman
392 páginas

Título: Tocando a Distância
Autor: Deborah Curtis
Editora: Edições Ideal
328 páginas

Título: Nunca é o Bastante – A História do The Cure
Autor: Jeff Apter
Editora: Edições Ideal
336 páginas

Título: Kid Vinil – O Herói do Brasil
Autor: Ricardo Gozzi e Duca Belintani
Editora Edições Ideal

160 páginas

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Marquês de Sade - Livros



Evangelhos Libertinos (ou Tratado Filosófico de Perversões)

Marquês de Sade é celebrado com  lançamento de dois livros sobre sua obra, A Felicidade Libertina e Os Libertinos de Sade, e apresentação do espetáculo Julliete, da Cia. Os Satyros.
Por César Alves

Muito já foi dito sobre Donatien Alphonse François de Sade. Demonizado por homens santos, conservadores e demais defensores da retidão moral e dos costumes castos, como o Marquês de Sade, tornou-se o anti-papa da religião que celebra o pecado, apóstolo primeiro, entre os pregadores dos evangelhos da luxúria e dos excessos. Ainda assim, para o bem e para o mal, em se tratando de autor e obra tão fascinantes, muito parece ainda ser pouco.
Esse é apenas um dos argumentos que fazem mais do que bem vindos os lançamentos das obras A Felicidade Libertina, de Eliane Robert Moraes, e Os Libertinos de Sade, de Clara Castro, ambos publicados pela editora Iluminuras – que há anos vem disponibilizando para os leitores brasileiros, títulos da obra de Sade, incluindo Os 120 Dias de Sodoma ou a Escola da Libertinagem, A Filosofia na Alcova e Os Infortúnios da Virtude.
Embora no exterior contavam-se mais de seiscentos títulos sobre a obra do Marquês de Sade – todos publicados entre 1950 e 1973, ano em que foi a realizada a pesquisa –, no Brasil, poucos estudos sérios nesse sentido foram publicados, até os dias de hoje. É justamente para preencher tal vácuo que chegam os novos títulos.
Em A Felicidade Libertina, a pesquisadora Eliane Roberto Moraes faz uso das personagens e enredos criados pelo prolífico autor para introduzir e destrinchar a filosofia “lúbrica” de Sade para o leitor brasileiro. Já, em Os Libertinos de Sade, Clara Castro debruça-se sobre a obra e suas diversas encarnações no universo da arte – além do teatro e cinema, como a clássica adaptação de Os 120 Dias de Sodoma, de Pasolini, Sade teve forte impacto sobre movimentos artísticos como o Surrealismo, por exempl0 –, descrevendo sua verdadeira importância, que vai muito além da literatura erótica e pornográfica, como erroneamente muitas vezes é catalogado.
O lançamento oficial de ambas as obras acontece quinta-feira, 14 de maio, na Estação Satyros, residência da Companhia Teatro d´Os Satyros, que encena, até 30 de junho, o texto Juliette, da obra do Marquês de Sade.

O Filósofo “Lúbrico”
Considerado “um libertino entre os libertinos”, capaz de enrubescer constrangidos até mesmo alguns dos pornógrafos declarados, sua vida e obra foram o suficiente para seu nome estar na raiz do substantivo “sadismo”, como definição de perversão sexual extremada, e que, para seus adeptos, fosse cunhado o adjetivo “sádico”.
Nascido em 1740, filho de aristocratas franceses – o que lhe renderia o título de conde e não marquês, como ficou famoso –, logo na infância Donatien deu sinais de seu comportamento errático e tendências violentas que lhe renderiam uma ficha corrida de fazer inveja a muitos criminosos lendários da historia.
Na tentativa de preparar o filho para uma vida grandiosa no seio da aristocracia e honrar o nome da família futuramente, sua mãe fez de tudo para aproximar o menino de Louis-Joseph de Bourbon, príncipe de Condé, contando que, assim, seu filho cultivaria, desde cedo, uma amizade com um membro da realeza.
Primeira de muitas manifestações de seu comportamento descontroladamente impulsivo que, mais tarde, associado às suas experiências sexuais extremas, que chocaram a burguesia de sua época, e declarações nada veladas contra a igreja, o matrimônio e a moral aristocrática, que o levaram a ser perseguido pelo clero e toda a sociedade, rendendo à ele diversas prisões por sodomia, heresia e indecência – ao contrário do que pode se pensar, suas passagens por prisões, incluindo a famigerada Bastilha, foram motivadas por suas práticas de perversão e lascívia, não por seus escritos, que surgiram justamente durantes suas estadias no cárcere. Sua vida foi uma verdadeira coleção de desafetos, que vão da Igreja a Napoleão Bonaparte, passando pelos rebeldes que perpetraram a Revolução Francesa.
Durante o bicentenário da morte de Sade, no ano passado, sua obra passou por uma reavaliação, com direito a homenagens e uma exposição no Museu D´Orsay de Paris. Nada mau para alguém que teria pedido em seus últimos momentos que fosse esquecido e que seu corpo fosse abandonado para apodrecer em um terreno baldio ou servir de alimento para animais carniceiros, entre as árvores de uma floresta.


Serviço:

Livros:

A Felicidade Libertina
Autor: Eliana Robert Moraes
280 páginas

Os Libertinos de Sade
Autor: Clara Castro
312 páginas
Editora: Iluminuras
Lançamentos: 14 de maio. Das 18H30 às 20h30 – Local: Estação Satyros

Peça:

Juliette
Texto: Marquês de Sade
Direção: Rodolfo Garcia Vasquez
Elenco: Teatro d´Os Satyros
Local: Estação Satyros
Endereço: Praça Roosevelt, 134 – Consolação – São Paulo – SP


segunda-feira, 11 de maio de 2015

Cenas de Uma Revolução - O Nascimento da Nova Hollywood



Roteiros de transição

Livro reportagem de Mark Harris registra a ruptura geracional do cinema norte-americano nos anos sessenta.
Por César Alves


A trajetória de um casal de foras da lei texano, famoso durante a depressão, inspirou dois jovens funcionários da revista Esquire a iniciar o roteiro de um dos filmes que devolveriam ao cinema norte-americano sua criatividade perdida.
Fãs de Alfred Hitchcock e da Novelle Vague francesa, David Newman e Robert Benton sonhavam ver o texto dirigido por seu ídolo, François Truffaut. Não sob a régia do diretor francês, mas de Arthur Penn, o resultado foi muito além do que a dupla esperava.
O filme, estrelado por Warren Beatty e Faye Dunaway, entrou para a história como um dos que ajudaram a reinventar a indústria de Hollywood, pavimentando caminho para uma geração de realizadores que daria início a uma de suas fases mais criativas.
Ao lado de A primeira noite de um Homem, Adivinhe Quem Vem Para Jantar, No Calor da Noite e O Fantástico Dr. Doolitle, todos lançados em 1967 e indicados ao Oscar no ano seguinte, Bonnie And Clyde representa um dos cinco recortes cinematográficos da psique norte-americana nos anos sessenta. É o que defende o escritor e jornalista Mark Harris no excelente livro reportagem Cenas de Uma Revolução, publicado no Brasil pela L&PM Editores.
No alvorecer da década de 1960, a indústria cinematográfica hollywoodiana passava por uma de suas piores crises. Se os roteiristas sofriam diante da página em branco, o mesmo não poderia ser dito dos jornalistas. As redações estavam em fase brilhante, graças a um estilo em ascensão que adicionava elementos da literatura às técnicas de reportagem. O jornalismo literário ou Novo Jornalismo não era exatamente uma novidade. O estilo, no entanto, estava em glória e a Esquire era praticamente sua residência oficial. Tendo como colaboradores alguns dos mais notórios expoentes do gênero, era em suas páginas que Norman Mailer, Tom Wolfe, Gay Talese e outros encontravam liberdade para exercer seu talento em artigos que traziam de sobra todo o ritmo e criatividade que faltavam aos filmes.

Foi do ambiente de trabalho que Benton e Newman se alimentaram para dar início a seu projeto. O texto embrionário de Bonnie And Clyde foi quase todo escrito durante o expediente entre as paredes da redação da Esquire. A dupla tirava proveito de tal liberdade justificando suas escapadelas como “saídas para pesquisa” que na verdade eram usadas para sessões de Hitchcock e cinema europeu ou para visitar sebos em busca de livros sobre gangsteres, literatura policial pulp e artigos em jornais e revistas sobre o bando dos irmãos Barrow. Ai se encontra um dos principais atrativos da reportagem de Mark Harris. O livro faz um relato pormenorizado de cada um dos filmes, desde as idéias originárias para concepção das obras até sua materialização em película, apropriando-se de elementos da cultura pop para fazer um retrato histórico-social do período.
Da publicação de Misses Robinson, romance de Charles Webb propagandeado como novo O Apanhador no Campo de Centeio e fracassado nas livrarias, até sua reinvenção fílmica com A Primeira Noite de um Homem, dirigido por Mike Nichols que traz o jovem Dustin Hoffman na atuação que o levou ao estrelato, Harris destrincha o meio cinematográfico e o star system no contexto das profundas mudanças e conflitos sociais que marcam a época.
Aqui nos é apresentado um Sidney Poitier insatisfeito com os papéis edificantes que lhe eram oferecidos, mais para dar um verniz progressista ao conservadorismo da indústria do que para valorizar seu talento. Inteligente, sobre sua conquista do Oscar em 1964, pela atuação em Uma Voz nas Sombras – inédita premiação a um ator negro, celebrada na mídia como sinal de mudanças –, ele declara: “Eu ainda era o único ali”. Tentando se equilibrar entre o astro e o ativista pelos direitos civis em luta por maior participação de afro-americanos nos filmes, Poitier sabia que, como um dos únicos astros de sua raça – o outro era Harry Belafonte –, naquele contexto, não poderia aceitar papéis que o apresentassem de forma negativa. Porém, sabia ser capaz de atuar como Rei Lear, por exemplo, como qualquer ator branco. Foi no protagonista de No Calor da Noite que finalmente encontrou um personagem que não se baseava em clichês raciais.
Harris revela curiosidades interessantes sobre os filmes. Bonnie and Clyde, por exemplo, passou de mão em mão até chegar a Warren Beatty que estreava como produtor e não pretendia atuar. Para ele, o papel de Clyde Barrow deveria ser feito por Bob Dylan. François Truffaut chegou a vê-lo como ideal para sua estréia na direção de um filme norte-americano, depois entregou o roteiro à Godard. A passagem entusiasmada, porém breve, de Jean-Luc oferece um dos momentos mais divertidos do livro. Ele pretendia rodar tudo em Nova Jersey no mês de janeiro. Na primeira reunião com os produtores, teria sido informado que o clima não favorecia as filmagens na data planejada. Reforçando sua fama de difícil, o diretor teria respondido: “Eu estou falando de cinema e você, de meteorologia!” Abandonando a reunião em seguida para nunca mais tocar no assunto.
Colunista da Entertainment Weekly, o estilo de Mark Harris lembra o de mestres do jornalismo literário como Gay Talese. Ele sabe explorar fatos que, para muitos pesquisadores, poderiam parecer banais.
Na passagem sobre uma festa oferecida pelo casal Jane Fonda e Roger Vadim, por exemplo, o escritor enxerga um evento carregado de simbolismo. Numa das primeiras e raras vezes em que a antiga e a nova Hollywood estiveram sob o mesmo teto, os expoentes da velha guarda teriam se incomodado com o folk eletrificado emitido pelos amplificadores da banda The Byrds no palco montado exclusivamente para a apresentação. Irritado, o patriarca dos Fonda, Henry, teria gritado ao filho, Peter: “Dá para pedir para eles baixarem o volume?”
A festa, que ainda teria Peter Fonda subindo no telhado da casa para gritar: “Deus abençoe a maconha!”, é representativa do momento de ruptura. Nos anos que se seguiram, a geração de Henry e outros convidados, como Gene Kelly, William Wyler e Lauren Bacall, seria destronada pelos ilustres desconhecidos ali presentes, a maioria oriunda das produções B de Roger Corman. Gente como Dennis Hopper, Jack Nicholson e o próprio Peter Fonda.
A nova Hollywood começava a tomar forma embalada pelas guitarras elétricas dos Byrds. A invasão bárbara seria concluída com a chegada de Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Brian De Palma, George Lucas, Steven Spielberg e outros.
Mas ai já é outra história, ficando aqui a dica de Easy Riders, Ranging Bulls – no Brasil, Como a Geração Sexo, Drogas & Rock´n´Roll Salvou Hollywood (Intrinseca Editora) –, de Peter Biskind, como sequencia perfeita após a leitura do ótimo lançamento da L&PM.



Serviço:

Título: Cenas de Uma Revolução – O Nascimento da Nova Hollywood
Autor: Mark Harris
Editora: L&PM Editores
488 páginas

sexta-feira, 24 de abril de 2015

O Perfuraneve - Quadrinhos




A Podridão Viaja de Trem

A ficção-científica pós-apocalíptica de O Perfura Neve, graphic novel concebida pelos franceses Jacques Lob, Jean-Jacques Rochette e Benjamin Le Grand, chega às nossas livrarias.
Por César Alves


Em um vagão lotado de miseráveis, alguns de seus passageiros – talvez tentando se esquecer da fome e do frio –, decidem comemorar o aniversário do mais velho entre eles. A situação e condição em que se encontram não oferecem possibilidade para a realização de uma festa, mas, dentro de suas possibilidades, os passageiros prometem ao ancião o que ele mais gostaria de ter como presente, naquele momento. Ele responde:
“Solidão. Ficar sozinho, nem que seja por uma hora ou duas”.
Todos consentem e se apertam com os demais passageiros do vagão ao lado, para dar ao pobre senhor, uma hora de privacidade, realizando seu desejo. Enquanto aguardam, divertem-se, conversando sobre o que estaria ele fazendo, com a rara privacidade concedida.
Ao final daquela hora, todos retornam ao vagão original, curiosos sobre como ele teria aproveitado seu tempo e se estaria feliz com o presente. Para o espanto de todos, encontram o aniversariante dependurado com uma corda ao redor do pescoço. Aproveitara seus minutos de solidão para dar fim a sua vida e escapar de seu martírio. 

Concebida originalmente em 1980 pelos franceses Jacques Lob e Jean-Jacques Rochette, a graphic novel, O Perfuraneve (Le Transperceneige), é considerada uma obra prima da ficção-científica em quadrinhos e a tradução de Daniel Luhmann, que acaba de ser lançada no Brasil pela Editora Aleph, comprova não se tratar de exagero.
Ambientada num mundo pós-apocalíptico, lançado numa nova Era do Gelo, depois de uma hecatombe nuclear, a trama gira em torno dos conflitos dos últimos sobreviventes da raça humana, condenados a vagar pelo planeta num mega trem de 1.001 vagões, considerado a última esperança da espécie, o Perfuraneve.
Ao contrário do que se deveria esperar – e a historia do homem conhecida até aqui só comprova não ser coisa da ficção –, face à ameaça de extinção, os remanescentes do que foi um dia a civilização não se unem em nome de um bem comum e vencem suas diferenças para salvar a espécie. O que se dá, é exatamente o oposto.
Uma vez embarcados, os passageiros imediatamente passam a reproduzir o comportamento que rege a sociedade, no que ela tem de pior. A beleza e inteligência do texto vêm justamente na maneira como os autores souberam reproduzir isso, através da maneira como estão divididos os vagões. Sendo que os últimos deles acomodam os pobres e miseráveis – os fundistas –, proibidos de interagir com os demais passageiros; enquanto que estes são destinados, de forma crescente, aos mais ricos, revelando melhor conforto e condições de vida, de acordo com as posses e classe econômica de seus passageiros. Sendo assim, O Perfuraneve mergulha nas profundezas de nossa espécie, revelando um microcosmo da civilização em suas mais vergonhosas e desprezíveis características, como a intolerância, a ganância e a violência, expostas nas atitudes políticas, daqueles que administram o trem, com como nos adeptos de uma nova religião, surgida das cinzas das religiões monoteístas conhecidas, que, uma vez confinadas, readaptam sua fé, substituindo a figura de Deus pela Máquina Sagrada que corre nos trilhos.
A série teve continuidade em dois outros volumes, The Explorers (1999) e The Crossing (2000), escritas por Benjamin Legrand. Além do belo tratamento gráfico, a edição brasileira tem a vantagem de reunir toda a saga em um único volume.
Definitivamente, imperdível, a obra original foi adaptada para o cinema em 2013, lançado no Brasil como O Expresso do Amanhã, do diretor coreano Bong Joon-ho, estrelado por Chris Evans (o Capitão América dos filmes da Marvel).


Serviço:

Título: O Perfuraneve
Editora: Aleph
280 páginas


quarta-feira, 15 de abril de 2015

William Eggleston - A Cor Americana



América de Todas as Cores

Provavelmente, mais conhecido no Brasil pelas capas de discos de artistas como Big Star e Primal Scream, maior exposição individual já realizada de William Eggleston,  A Cor Americana, é exibida no Instituto Moreira Salles.
Por César Alves


Meu primeiro contato com a fotografia de William Eggleston se deu atravéss da musica. Eggleston é responsável pelas imagens que ilustram a embalagem de diversos álbuns que fizeram minha trilha sonora pessoal – entre suas capas mais famosas, estão a de Radio City (1974), do Big Star, e Give Out But Don´t Give Up (1994), do Primal Scream. Desde que seu admirador e amigo, Alex Chilton, utilizou uma de suas imagens icônicas para ilustrar a capa do cultuado segundo disco de sua não menos cultuada banda, suas fotos apareceram em tantas outras que muitos o consideram The King of the Album Cover Photo. Não deixa de ser uma verdade, mas limitar seu trabalho a isso é também reducionismo. Sua fotografia é muito mais, como atesta a exposição William Eggleston, a Cor Americana,  que o Instituto Moreira Salles exibe até 28 de junho, no Rio de Janeiro.

Reunindo 172 obras do acervo de instituições renomadas como o Museu de Arte Moderna de New York e o Museum of Fine Arts de Houston, além de itens da coleção pessoal do artista e das galerias Cheim & Read e Victoria Miro, a mostra representa a maior exposição individual do artista já realizada no mundo.
Considerado um dos maiores nomes da fotografia americana da segunda metade do século XX, Eggleston costuma ser associado ao grupo de fotógrafos – entre eles William Klein, Robert Adams, Martin Parr, Jurgen Teller, entre outros –, surgidos durante o pós-guerra, dotados do mesmo inconformismo e desconfiança em relação a hipocrisia da sociedade e de seus líderes. Decididos a não desperdiçar suas vidas, como os garotos, pouco mais velhos do eles, lutando uma guerra sem sentido, assim como seus colegas geracionais literários, os Beatniks, empreenderam uma viagem aos cantos mais obscuros dos Estados Unidos para registrar a América Profunda, munidos de suas máquinas e o desejo de descoberta.
A jornada de Eggleston, no entanto, começa nas dependências de seu próprio quintal. Nascido em Menphis, Tennesee, cresceu sob o ambiente marcado pela tensão racial, indignado com a desigualdade social de uma região, ainda fortemente presa a seu passado escravocrata, e seduzido pela beleza das pessoas simples e a musica. Entre 1960 e meados da década seguinte, o fotógrafo se dedicou a registrar, ainda sem pretensões artísticas, o universo do Sul do país, em cujo entorno, atuavam personagens como Martin Luther King e Elvis Presley, mas, principalmente, as pessoas comuns e a vida simples nos subúrbios.

O fotógrafo é reconhecido por abrir novas fronteiras para o gênero fotográfico. Marcadas por cores vibrantes, suas imagens vão além do registro cotidiano e dos personagens que protagonizavam o momento histórico, marcado pela ambição de um país recém-saído de uma campanha vitoriosa no maior conflito bélico jamais visto, como líder das nações livres, e decidido a assumir como missão abraçar a promessa grandiosa do futuro, fazendo vista grossa para as falhas de seu passado. Sendo assim, a lente de Eggleston também mirava carros, outdoors, fachadas de supermercados e outros objetos que representavam a sociedade de consumo capitalista e sua modernidade em contraste com sua realidade desigual e anacrônica.
Há uma canção de Neil Young que diz: “there´s more to the Picture than meets the eye”. Poucos artistas me remetem tanto ao verso do que Eggleston. Especialista em revelar a intensa maravilha do óbvio, esse “mais” de que fala Young e que suas imagens nos induzem a procurar está sempre presente, embora nunca de forma explícita. Ele fotografa o que vê, mas parece ter o foco no que está além dos olhos. Pelo menos, é a impressão que temos ao passear pela exposição e folhear o belo catálogo que a acompanha.
Como o amigo aqui escreve mais como admirador do que verdadeiro especialista na área, talvez não tenha ficado claro o que tentei dizer no último parágrafo. Sendo assim, aproveito para sugerir um documentário sobre o fotógrafo, disponível na internet, William Eggleston in The Real World, de Michael Almereyda, de 2005.
O diretor do filme se propõe a acompanhar o fotógrafo para registrar seu processo criativo. É na simplicidade com que ele passeia, acompanhado apenas de seu filho, Winston, como ajudante, por lojas, praças e ruas, conversando com gente que passa, observando um poste de luz, um cachorro ou uma escada, é que temos a certeza de que, naquela foto conhecida e que faz parte da exposição do IMS, há muito mais do que um triciclo infantil, largado sozinho.
Com curadoria de Thyago Nogueira, fico na torcida para que a mostra chegue a São Paulo e outras cidades. O Livro-catálogo, de mesmo título, também vale a pena o investimento. Além de reprodução das obras que fazem parte da mostra, traz textos inéditos de David Byrne, Geoff Dyer, Richard Woodward e do curador, Thyago Nogueira.






Serviço:

Exposição:
William Eggleston, a Cor Americana
Local: Instituto Moreira Salles
Endereço: Rua Marques de São Vicente, 476 – Gávea – Rio de Janeiro – RJ

Livro:
William Eggleston, a Cor Americana
Vários Autores
Editora: IMS






segunda-feira, 13 de abril de 2015

Geraldo de Barros e a Fotografia



Geraldo de Barros e a Fotografia
Chega a São Paulo a maior exposição já realizada sobre a obra de Geraldo de Barros.
Por César Alves

Desde a semana passada – depois de passar com sucesso pelo Rio de Janeiro –, uma exposição, no mínimo, imperdível para os amantes da fotografia, arte e experimentação gráfica está em São Paulo. Com curadoria da pesquisadora e coordenadora de artes visuais do Instituto Moreira Salles, Heloísa Espada, Geraldo de Barros e a Fotografia é uma parceria do IMS com as Organizações Sesc e reúne cerca de 300 obras do pintor, designer e fotógrafo paulista, divididas em três ambientes da unidade do Sesc Belenzinho.

Parte da geração de artistas surgidas na esteira das propostas idealizadas pelos Modernistas nas primeiras décadas do século vinte, Geraldo de Barros inicia sua produção em fins da década de trinta, tendo como marca o gosto pela experimentação e a liberdade desenvolta em relação a linguagens, estilos e formatos. Nome dos mais significativos dentro da construção de uma linguagem moderna e diálogo em sintonia com as vanguardas artísticas internacionais no contexto da arte brasileira, Barros esteve diretamente envolvido com movimentos importantes, como o concretismo, e participou ativamente dos grupos Ruptura e Rex.
Reunindo de forma cronológica fotografias, desenhos, gravuras, monotipias e pinturas – concretas e flertes com o Pop –, a exposição oferece uma rara oportunidade de compreender como se deu o processo criativo e evolutivo, durante a construção de uma obra única.
É o que se percebe ao visitar a sala dedicada a série Fotoformas, com peças que formaram a histórica exposição Fotoforma, realizada em 1951, no Masp, ainda em seu primeiro endereço provisório na rua 7 de Abril, no centro de São Paulo.
A exposição conta também com 268 colagens de negativos e 70 ampliações da série Sobras, do final de da trajetória do artista.

Dono de uma visão que ia além do universo artístico, suas preocupações sociais e o desejo de levar sua arte a extremos que iam além dos museus e espaços tradicionais, em 1956, junto com Frei João Batista, Barros fundou a Unilabor, cooperativa que fabricava móveis e mantinha uma escola de arte e um posto de saúde. Ao lado de Alexandre Wollner e Rubem Martim, Geraldo de Barros também esteve a frente do primeiro escritório de design brasileiro, quando, em 1957, fundou a Form-Inform.

Livro
 Recentemente, o Instituto Moreira Salles recebeu cerca de dois mil itens que fazem parte da obra de Geraldo de Barros, tornando-se referência na pesquisa sobre o artista. O material faz parte de sua faceta fotográfica, composto das séries Fotoformas (1940-1950) e Sobras (1996-1998).
Para celebrar a aquisição, além da exposição, o Instituto Moreira Salles, em co-edição com as Edições Sesc-SP, também lança o livro-catálogo Geraldo de Barros e a Fotografia. Belo no formato e rico em conteúdo, a obra se destaca como referência das mais ambiciosas sobre o artista, reunindo reproduções de seus trabalhos e trazendo novos dados sobre sua biografia e temas pouco abordados em trabalhos anteriores, como sua atuação no Foto Cine Clube Bandeirante.
O livro traz também textos, produzidos exclusivamente para compor a obra, escrito por especialistas como Heloísa Espada, Tadeu Chiarelli, Simone Forster, João Bandeira e Giovanna Bagaglia.

Serviço:
Exposição
Geraldo de Barros e a Fotografia (de 7 de abril a 31 de Maio)
Sesc Belanzinho
Endereço: Rua Padre Adelino, 1000
Telefone: (11) 2076-9700

Livro
Geraldo de Barros e a Fotografia
Autor: Vários
Editora: co-edição IMS e Edições Sesc-SP
300 páginas


segunda-feira, 30 de março de 2015

Anatole France - A Rebelião dos Anjos



Para Acabar com a Tirania de Deus

Considerada por muitos uma obra-prima da literatura francesa e universal, A Rebelião dos Anjos, último livro do Prêmio Nobel de Literatura de 1921, Anatole France, explora o inconformismo de anjos rebelados para descrever a condição conflituosa da sociedade ocidental no início do século XX e criticar o fanatismo religioso e a intolerância.
Por César Alves

Muito antes de Wim Wenders dar voz aos conflitos existenciais e sentimentos dos seres celestiais que, como emissários do Deus único das religiões monoteístas, protegem nossos espíritos, virtudes e, desde antes de existirmos, o Paraíso Perdido por Adão e Eva; ou nos seduzem, corrompem e negociam nossas almas, quando rebelados e caídos, Anatole France (1844-1924) compôs uma das mais belas e impressionantes tramas protagonizadas por tais criaturas, em A Rebelião dos Anjos.
Título que encerra a brilhante obra do autor de O Crime de Silvestre Bonnard, Thais, O Lírio Vermelho e o Poço de Santa Clara, A Rebelião dos Anjos faz parte daquela lista de obras que os leitores que ainda não leram precisam ler, antes da morte e, aqueles que já tiveram a oportunidade de um mergulho por suas páginas, nunca devem perder a chance de uma nova leitura – quantas vezes forem possíveis, até o final de seus dias. Parte do catálogo da editora Axis Mundi, a tradução de Merle Scoss, reeditada recentemente, oferece a imperdível chance de imersão nas águas – tão turbulentas quanto profundas, em sua fluidez narrativa, lírica, dramática e filosófica – aos novos marujos e escolados lobos do mar literários.
Mas não se engane amigo leitor, o livro vai muito além da uma fábula moral religiosa ou subversão imoral da mitologia cristã e demais religiões monoteístas, que um resumo breve pode sugerir.
Às vezes descrita como alegoria política ou compêndio filosófico e social realista, sob o disfarce do Maravilhoso e Fantástico, a trama narrada por France, apropria-se da imaginação e realidade, do cômico e trágico e do profano e sagrado para descrever seu tempo, com as cores dos mitos de criação ancestrais e atemporais; e o que há de mais demasiadamente humano, através de seres divinos mitológicos, com afrescos cristãos e gnósticos.
Protagonizado por Maurice, jovem, pertencente à elite burguesa, boêmio, bon-vivant e libertino; e Arcade, um anjo encarregado de protegê-lo, aconselhá-lo e guiá-lo, como seu anjo da guarda, em direção ao caminho da virtuosidade cristã, é na curiosidade do último, em relação às descobertas mundana, que a trama toma forma. 
Influenciado pela leitura de grandes pensadores da ciência, filosofia, matemática e literatura – lidos na vasta biblioteca pertencente à família de seu protegido, enquanto este se diverte com mulheres casadas, empregadas bonitas e ingênuas, jogatina e bebedeira, certa noite – Arcade se apresenta a Maurice para informá-lo de que abdica de sua função e, vestindo as calças de um suicida, sai pelo mundo em busca de outros anjos caídos como ele para arquitetar um segundo levante dos anjos, contra a ditadura de Deus.
É na jornada de Arcade, por entre ruas estreitas, povoadas por miseráveis e tavernas violentas e mal iluminadas, freqüentadas por almas perdidas e ébrias, ladrões, vagabundos, comunistas e anarquistas, que arquitetam levantes e atentados contra a burguesia e os representantes do estado para promover a desordem; promover a vingança popular definitiva que pouco avança além das mesas dos bares e o banho de sangue nas ruas de amanhã, termina por ser adiado ou substituído por um banho de vômito de inconformistas bêbados, sobre o assoalho da bodega, onde poucas horas antes, como em todas as outras noites, recitavam seus manifestos, convocavam o povo às armas, tendo como público, nada além de um punhado de sem-tetos maltrapilhos e uma multidão de ratos, cães e gatos sem dono, mais interessados em recolher sobras e migalhas.
Que o leitor não se deixe levar por um resumo breve, devido a natureza de alguns de seus personagens. Em Anatole France, a história de um anjo da guarda que desiste de seu protegido e a busca do último para reencontrá-lo é muito mais do que uma fábula moral ou provocação imoral anticristã, como pode sugerir a alguns.
Escrito em meio as convulsões ideológicas, sociais e culturais que marcam os primeiros anos de um século explosivo. Avanços tecnológicos e descobertas científicas, em contraste com um abismo de desigualdade, separando uma multidão de miseráveis que passavam fome nas ruas ou definhavam nas fábricas em jornadas diárias desumanas por um salário dos mais injustos de um punhado de poderosos glutões financeiros e políticos; acirramento do diálogo entre os representantes das classes prejudicadas com os representantes de industriais gananciosos, proprietários das fábricas e donos não eleitos do poder, como compradores de um Estado corrupto.
Há muito do autor, da sociedade e do contexto histórico. Exemplos do que dito, existem vários, mas fico no meu predileto, o anjo caído Sophar, que no mundo dos homens usa a alcunha de Barão Max Everdingen. Responsável por guardar o ouro do soberano celeste, devido a seu talento para administrar tesouros e sua paixão pelo brilho dos minerais preciosos, até descobrir seu verdadeiro Paraíso na economia dos homens, quando a França, “terra abençoada da Economia e do Crédito”, desperta sua curiosidade. Seduzido, o anjo rouba os cofres que deveria guardar e foge para o mundo dos homens, onde se torna um capitalista respeitado e poderoso. Ao contrário de seus semelhantes, ele não apóia a revolução, mas também não está do lado dos que buscam a manutenção do status quo. Entre Deus e o Diabo, prefere o dinheiro e, como todo bom capitalista, aproveita a tensão para fazer ficar mais rico, como fornecedor de armas para ambos os lados.
Obra madura de um autor já reconhecido e experimentado, A Rebelião dos Anjos sintetiza, em cada capítulo, os temas e idéias que marcaram o pensamento de Anatole France por toda a sua vida; o desprezo por toda a forma de agrilhoar as liberdades, através do fanatismo religioso, ideologias políticas impostas, através de leis arbitrárias ou pelo cerceamento da livre expressão da censura de estado e amordaçamento dos contrários. Como diz uma de suas citações mais famosas: “Há que se duvidar sempre, mesmo da dúvida”.
Frase nada descabida, aliás, principalmente, em se tratando de A Rebelião dos Anjos. Assim como “aqueles que combatem monstros correm o risco de tornarem-se monstros também”, é no sonho de um dos personagens que a revelação se mostra aos rebelados:  o risco dos que se propõe a derrubar o Demiurgo é de obter sucesso em sua empreitada e, sendo assim, ver-se obrigado a se fazer Demiurgo.


Serviço:
Título: A Rebelião dos Anjos
Autor: Anatole France
Editora: Axis Mundi

288 páginas