A Podridão Viaja de
Trem
A ficção-científica pós-apocalíptica
de O Perfura Neve, graphic novel concebida pelos franceses Jacques Lob,
Jean-Jacques Rochette e Benjamin Le Grand, chega às nossas livrarias.
Por César Alves
Em um vagão lotado de miseráveis, alguns de
seus passageiros – talvez tentando se esquecer da fome e do frio –, decidem
comemorar o aniversário do mais velho entre eles. A situação e condição em que
se encontram não oferecem possibilidade para a realização de uma festa, mas,
dentro de suas possibilidades, os passageiros prometem ao ancião o que ele mais
gostaria de ter como presente, naquele momento. Ele responde:
“Solidão. Ficar sozinho, nem que seja por uma
hora ou duas”.
Todos consentem e se apertam com os demais
passageiros do vagão ao lado, para dar ao pobre senhor, uma hora de
privacidade, realizando seu desejo. Enquanto aguardam, divertem-se, conversando
sobre o que estaria ele fazendo, com a rara privacidade concedida.
Ao final daquela hora, todos retornam ao vagão
original, curiosos sobre como ele teria aproveitado seu tempo e se estaria
feliz com o presente. Para o espanto de todos, encontram o aniversariante
dependurado com uma corda ao redor do pescoço. Aproveitara seus minutos de
solidão para dar fim a sua vida e escapar de seu martírio.
Concebida originalmente em 1980 pelos franceses
Jacques Lob e Jean-Jacques Rochette, a graphic novel, O Perfuraneve (Le Transperceneige),
é considerada uma obra prima da ficção-científica em quadrinhos e a tradução de
Daniel Luhmann, que acaba de ser lançada no Brasil pela Editora Aleph, comprova
não se tratar de exagero.
Ambientada num mundo pós-apocalíptico, lançado
numa nova Era do Gelo, depois de uma hecatombe nuclear, a trama gira em torno
dos conflitos dos últimos sobreviventes da raça humana, condenados a vagar pelo
planeta num mega trem de 1.001 vagões, considerado a última esperança da
espécie, o Perfuraneve.
Ao contrário do que se deveria esperar – e a
historia do homem conhecida até aqui só comprova não ser coisa da ficção –,
face à ameaça de extinção, os remanescentes do que foi um dia a civilização não
se unem em nome de um bem comum e vencem suas diferenças para salvar a espécie.
O que se dá, é exatamente o oposto.
Uma vez embarcados, os passageiros
imediatamente passam a reproduzir o comportamento que rege a sociedade, no que
ela tem de pior. A beleza e inteligência do texto vêm justamente na maneira
como os autores souberam reproduzir isso, através da maneira como estão
divididos os vagões. Sendo que os últimos deles acomodam os pobres e miseráveis
– os fundistas –, proibidos de interagir com os demais passageiros; enquanto
que estes são destinados, de forma crescente, aos mais ricos, revelando melhor
conforto e condições de vida, de acordo com as posses e classe econômica de
seus passageiros. Sendo assim, O Perfuraneve mergulha nas profundezas de nossa
espécie, revelando um microcosmo da civilização em suas mais vergonhosas e
desprezíveis características, como a intolerância, a ganância e a violência,
expostas nas atitudes políticas, daqueles que administram o trem, com como nos
adeptos de uma nova religião, surgida das cinzas das religiões monoteístas
conhecidas, que, uma vez confinadas, readaptam sua fé, substituindo a figura de
Deus pela Máquina Sagrada que corre nos trilhos.
A série teve continuidade em dois outros volumes,
The Explorers (1999) e The Crossing (2000), escritas por
Benjamin Legrand. Além do belo tratamento gráfico, a edição brasileira tem a
vantagem de reunir toda a saga em um único volume.
Definitivamente, imperdível, a obra original
foi adaptada para o cinema em 2013, lançado no Brasil como O Expresso do Amanhã, do diretor coreano Bong Joon-ho, estrelado
por Chris Evans (o Capitão América dos filmes da Marvel).
Serviço:
Título: O Perfuraneve
Editora: Aleph
280 páginas
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