segunda-feira, 30 de março de 2015

Anatole France - A Rebelião dos Anjos



Para Acabar com a Tirania de Deus

Considerada por muitos uma obra-prima da literatura francesa e universal, A Rebelião dos Anjos, último livro do Prêmio Nobel de Literatura de 1921, Anatole France, explora o inconformismo de anjos rebelados para descrever a condição conflituosa da sociedade ocidental no início do século XX e criticar o fanatismo religioso e a intolerância.
Por César Alves

Muito antes de Wim Wenders dar voz aos conflitos existenciais e sentimentos dos seres celestiais que, como emissários do Deus único das religiões monoteístas, protegem nossos espíritos, virtudes e, desde antes de existirmos, o Paraíso Perdido por Adão e Eva; ou nos seduzem, corrompem e negociam nossas almas, quando rebelados e caídos, Anatole France (1844-1924) compôs uma das mais belas e impressionantes tramas protagonizadas por tais criaturas, em A Rebelião dos Anjos.
Título que encerra a brilhante obra do autor de O Crime de Silvestre Bonnard, Thais, O Lírio Vermelho e o Poço de Santa Clara, A Rebelião dos Anjos faz parte daquela lista de obras que os leitores que ainda não leram precisam ler, antes da morte e, aqueles que já tiveram a oportunidade de um mergulho por suas páginas, nunca devem perder a chance de uma nova leitura – quantas vezes forem possíveis, até o final de seus dias. Parte do catálogo da editora Axis Mundi, a tradução de Merle Scoss, reeditada recentemente, oferece a imperdível chance de imersão nas águas – tão turbulentas quanto profundas, em sua fluidez narrativa, lírica, dramática e filosófica – aos novos marujos e escolados lobos do mar literários.
Mas não se engane amigo leitor, o livro vai muito além da uma fábula moral religiosa ou subversão imoral da mitologia cristã e demais religiões monoteístas, que um resumo breve pode sugerir.
Às vezes descrita como alegoria política ou compêndio filosófico e social realista, sob o disfarce do Maravilhoso e Fantástico, a trama narrada por France, apropria-se da imaginação e realidade, do cômico e trágico e do profano e sagrado para descrever seu tempo, com as cores dos mitos de criação ancestrais e atemporais; e o que há de mais demasiadamente humano, através de seres divinos mitológicos, com afrescos cristãos e gnósticos.
Protagonizado por Maurice, jovem, pertencente à elite burguesa, boêmio, bon-vivant e libertino; e Arcade, um anjo encarregado de protegê-lo, aconselhá-lo e guiá-lo, como seu anjo da guarda, em direção ao caminho da virtuosidade cristã, é na curiosidade do último, em relação às descobertas mundana, que a trama toma forma. 
Influenciado pela leitura de grandes pensadores da ciência, filosofia, matemática e literatura – lidos na vasta biblioteca pertencente à família de seu protegido, enquanto este se diverte com mulheres casadas, empregadas bonitas e ingênuas, jogatina e bebedeira, certa noite – Arcade se apresenta a Maurice para informá-lo de que abdica de sua função e, vestindo as calças de um suicida, sai pelo mundo em busca de outros anjos caídos como ele para arquitetar um segundo levante dos anjos, contra a ditadura de Deus.
É na jornada de Arcade, por entre ruas estreitas, povoadas por miseráveis e tavernas violentas e mal iluminadas, freqüentadas por almas perdidas e ébrias, ladrões, vagabundos, comunistas e anarquistas, que arquitetam levantes e atentados contra a burguesia e os representantes do estado para promover a desordem; promover a vingança popular definitiva que pouco avança além das mesas dos bares e o banho de sangue nas ruas de amanhã, termina por ser adiado ou substituído por um banho de vômito de inconformistas bêbados, sobre o assoalho da bodega, onde poucas horas antes, como em todas as outras noites, recitavam seus manifestos, convocavam o povo às armas, tendo como público, nada além de um punhado de sem-tetos maltrapilhos e uma multidão de ratos, cães e gatos sem dono, mais interessados em recolher sobras e migalhas.
Que o leitor não se deixe levar por um resumo breve, devido a natureza de alguns de seus personagens. Em Anatole France, a história de um anjo da guarda que desiste de seu protegido e a busca do último para reencontrá-lo é muito mais do que uma fábula moral ou provocação imoral anticristã, como pode sugerir a alguns.
Escrito em meio as convulsões ideológicas, sociais e culturais que marcam os primeiros anos de um século explosivo. Avanços tecnológicos e descobertas científicas, em contraste com um abismo de desigualdade, separando uma multidão de miseráveis que passavam fome nas ruas ou definhavam nas fábricas em jornadas diárias desumanas por um salário dos mais injustos de um punhado de poderosos glutões financeiros e políticos; acirramento do diálogo entre os representantes das classes prejudicadas com os representantes de industriais gananciosos, proprietários das fábricas e donos não eleitos do poder, como compradores de um Estado corrupto.
Há muito do autor, da sociedade e do contexto histórico. Exemplos do que dito, existem vários, mas fico no meu predileto, o anjo caído Sophar, que no mundo dos homens usa a alcunha de Barão Max Everdingen. Responsável por guardar o ouro do soberano celeste, devido a seu talento para administrar tesouros e sua paixão pelo brilho dos minerais preciosos, até descobrir seu verdadeiro Paraíso na economia dos homens, quando a França, “terra abençoada da Economia e do Crédito”, desperta sua curiosidade. Seduzido, o anjo rouba os cofres que deveria guardar e foge para o mundo dos homens, onde se torna um capitalista respeitado e poderoso. Ao contrário de seus semelhantes, ele não apóia a revolução, mas também não está do lado dos que buscam a manutenção do status quo. Entre Deus e o Diabo, prefere o dinheiro e, como todo bom capitalista, aproveita a tensão para fazer ficar mais rico, como fornecedor de armas para ambos os lados.
Obra madura de um autor já reconhecido e experimentado, A Rebelião dos Anjos sintetiza, em cada capítulo, os temas e idéias que marcaram o pensamento de Anatole France por toda a sua vida; o desprezo por toda a forma de agrilhoar as liberdades, através do fanatismo religioso, ideologias políticas impostas, através de leis arbitrárias ou pelo cerceamento da livre expressão da censura de estado e amordaçamento dos contrários. Como diz uma de suas citações mais famosas: “Há que se duvidar sempre, mesmo da dúvida”.
Frase nada descabida, aliás, principalmente, em se tratando de A Rebelião dos Anjos. Assim como “aqueles que combatem monstros correm o risco de tornarem-se monstros também”, é no sonho de um dos personagens que a revelação se mostra aos rebelados:  o risco dos que se propõe a derrubar o Demiurgo é de obter sucesso em sua empreitada e, sendo assim, ver-se obrigado a se fazer Demiurgo.


Serviço:
Título: A Rebelião dos Anjos
Autor: Anatole France
Editora: Axis Mundi

288 páginas

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