Para Acabar com a
Tirania de Deus
Considerada por muitos
uma obra-prima da literatura francesa e universal, A Rebelião dos Anjos, último livro do Prêmio Nobel de Literatura de
1921, Anatole France, explora o inconformismo de anjos rebelados para descrever
a condição conflituosa da sociedade ocidental no início do século XX e criticar
o fanatismo religioso e a intolerância.
Por César Alves
Muito antes de Wim Wenders dar voz aos
conflitos existenciais e sentimentos dos seres celestiais que, como emissários do
Deus único das religiões monoteístas, protegem nossos espíritos, virtudes e,
desde antes de existirmos, o Paraíso Perdido por Adão e Eva; ou nos seduzem,
corrompem e negociam nossas almas, quando rebelados e caídos, Anatole France
(1844-1924) compôs uma das mais belas e impressionantes tramas protagonizadas
por tais criaturas, em A Rebelião dos
Anjos.
Título que encerra a brilhante obra do autor de
O Crime de Silvestre Bonnard, Thais, O Lírio Vermelho e o Poço de
Santa Clara, A Rebelião dos Anjos
faz parte daquela lista de obras que os leitores que ainda não leram precisam
ler, antes da morte e, aqueles que já tiveram a oportunidade de um mergulho por
suas páginas, nunca devem perder a chance de uma nova leitura – quantas vezes
forem possíveis, até o final de seus dias. Parte do catálogo da editora Axis Mundi, a tradução de Merle Scoss,
reeditada recentemente, oferece a imperdível chance de imersão nas águas – tão
turbulentas quanto profundas, em sua fluidez narrativa, lírica, dramática e
filosófica – aos novos marujos e escolados lobos do mar literários.
Mas não se engane amigo leitor, o livro vai muito além da uma fábula moral religiosa ou subversão imoral da mitologia cristã e demais religiões monoteístas, que um resumo breve pode sugerir.
Mas não se engane amigo leitor, o livro vai muito além da uma fábula moral religiosa ou subversão imoral da mitologia cristã e demais religiões monoteístas, que um resumo breve pode sugerir.
Às vezes descrita como alegoria política ou
compêndio filosófico e social realista, sob o disfarce do Maravilhoso e
Fantástico, a trama narrada por France, apropria-se da imaginação e realidade,
do cômico e trágico e do profano e sagrado para descrever seu tempo, com as
cores dos mitos de criação ancestrais e atemporais; e o que há de mais
demasiadamente humano, através de seres divinos mitológicos, com afrescos
cristãos e gnósticos.
Protagonizado por Maurice, jovem, pertencente à
elite burguesa, boêmio, bon-vivant e libertino; e Arcade, um anjo encarregado
de protegê-lo, aconselhá-lo e guiá-lo, como seu anjo da guarda, em direção ao
caminho da virtuosidade cristã, é na curiosidade do último, em relação às descobertas mundana, que a trama toma forma.
Influenciado pela leitura de grandes pensadores
da ciência, filosofia, matemática e literatura – lidos na vasta biblioteca
pertencente à família de seu protegido, enquanto este se diverte com mulheres
casadas, empregadas bonitas e ingênuas, jogatina e bebedeira, certa noite –
Arcade se apresenta a Maurice para informá-lo de que abdica de sua função e,
vestindo as calças de um suicida, sai pelo mundo em busca de outros anjos
caídos como ele para arquitetar um segundo levante dos anjos, contra a ditadura
de Deus.
É na jornada de Arcade, por entre ruas
estreitas, povoadas por miseráveis e tavernas violentas e mal iluminadas,
freqüentadas por almas perdidas e ébrias, ladrões, vagabundos, comunistas e
anarquistas, que arquitetam levantes e atentados contra a burguesia e os
representantes do estado para promover a desordem; promover a vingança popular
definitiva que pouco avança além das mesas dos bares e o banho de sangue nas
ruas de amanhã, termina por ser adiado ou substituído por um banho de vômito de
inconformistas bêbados, sobre o assoalho da bodega, onde poucas horas antes,
como em todas as outras noites, recitavam seus manifestos, convocavam o povo às
armas, tendo como público, nada além de um punhado de sem-tetos maltrapilhos e
uma multidão de ratos, cães e gatos sem dono, mais interessados em recolher
sobras e migalhas.
Que o leitor não se deixe levar por um resumo
breve, devido a natureza de alguns de seus personagens. Em Anatole France, a
história de um anjo da guarda que desiste de seu protegido e a busca do último
para reencontrá-lo é muito mais do que uma fábula moral ou provocação imoral
anticristã, como pode sugerir a alguns.
Escrito em meio as convulsões ideológicas,
sociais e culturais que marcam os primeiros anos de um século explosivo.
Avanços tecnológicos e descobertas científicas, em contraste com um abismo de
desigualdade, separando uma multidão de miseráveis que passavam fome nas ruas
ou definhavam nas fábricas em jornadas diárias desumanas por um salário dos
mais injustos de um punhado de poderosos glutões financeiros e políticos;
acirramento do diálogo entre os representantes das classes prejudicadas com os
representantes de industriais gananciosos, proprietários das fábricas e donos
não eleitos do poder, como compradores de um Estado corrupto.
Há muito do autor, da sociedade e do contexto
histórico. Exemplos do que dito, existem vários, mas fico no meu predileto, o
anjo caído Sophar, que no mundo dos homens usa a alcunha de Barão Max
Everdingen. Responsável por guardar o ouro do soberano celeste, devido a seu
talento para administrar tesouros e sua paixão pelo brilho dos minerais
preciosos, até descobrir seu verdadeiro Paraíso na economia dos homens, quando
a França, “terra abençoada da Economia e do Crédito”, desperta sua curiosidade.
Seduzido, o anjo rouba os cofres que deveria guardar e foge para o mundo dos
homens, onde se torna um capitalista respeitado e poderoso. Ao contrário de
seus semelhantes, ele não apóia a revolução, mas também não está do lado dos
que buscam a manutenção do status quo.
Entre Deus e o Diabo, prefere o dinheiro e, como todo bom capitalista,
aproveita a tensão para fazer ficar mais rico, como fornecedor de armas para
ambos os lados.
Obra madura de um autor já reconhecido e
experimentado, A Rebelião dos Anjos
sintetiza, em cada capítulo, os temas e idéias que marcaram o pensamento de
Anatole France por toda a sua vida; o desprezo por toda a forma de agrilhoar as
liberdades, através do fanatismo religioso, ideologias políticas impostas,
através de leis arbitrárias ou pelo cerceamento da livre expressão da censura
de estado e amordaçamento dos contrários. Como diz uma de suas citações mais
famosas: “Há que se duvidar sempre, mesmo
da dúvida”.
Frase nada descabida, aliás, principalmente, em
se tratando de A Rebelião dos Anjos.
Assim como “aqueles que combatem monstros correm o risco de tornarem-se
monstros também”, é no sonho de um dos personagens que a revelação se mostra
aos rebelados: o risco dos que se propõe
a derrubar o Demiurgo é de obter sucesso em sua empreitada e, sendo assim,
ver-se obrigado a se fazer Demiurgo.
Serviço:
Título: A Rebelião dos
Anjos
Autor: Anatole France
Editora: Axis Mundi
288 páginas
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