Roteiros de transição
Livro reportagem de Mark Harris registra a ruptura
geracional do cinema norte-americano nos anos sessenta.
Por César Alves
A trajetória de
um casal de foras da lei texano, famoso durante a depressão, inspirou dois
jovens funcionários da revista Esquire
a iniciar o roteiro de um dos filmes que devolveriam ao cinema norte-americano sua
criatividade perdida.
Fãs de Alfred Hitchcock e da Novelle Vague francesa, David Newman e Robert Benton sonhavam ver o
texto dirigido por seu ídolo, François Truffaut. Não sob a régia do diretor
francês, mas de Arthur Penn, o resultado foi muito além do que a dupla esperava.
O filme, estrelado por Warren Beatty e Faye Dunaway, entrou para a história
como um dos que ajudaram a reinventar a indústria de Hollywood, pavimentando caminho
para uma geração de realizadores que daria início a uma de suas fases mais
criativas.
Ao lado de A primeira noite de um Homem, Adivinhe Quem Vem Para Jantar, No Calor da Noite e O Fantástico Dr. Doolitle, todos lançados em 1967 e indicados ao
Oscar no ano seguinte, Bonnie And Clyde
representa um dos cinco recortes cinematográficos da psique norte-americana nos
anos sessenta. É o que defende o escritor e jornalista Mark Harris no excelente
livro reportagem Cenas de Uma Revolução, publicado no Brasil pela L&PM
Editores.
No alvorecer da
década de 1960, a indústria cinematográfica hollywoodiana passava por uma de suas
piores crises. Se os roteiristas sofriam diante da página em branco, o mesmo
não poderia ser dito dos jornalistas. As redações estavam em fase brilhante,
graças a um estilo em ascensão que adicionava elementos da literatura às
técnicas de reportagem. O jornalismo literário ou Novo Jornalismo não era exatamente
uma novidade. O estilo, no entanto, estava em glória e a Esquire era praticamente sua residência oficial. Tendo como
colaboradores alguns dos mais notórios expoentes do gênero, era em suas páginas
que Norman Mailer, Tom Wolfe, Gay Talese e outros encontravam liberdade para
exercer seu talento em artigos que traziam de sobra todo o ritmo e criatividade
que faltavam aos filmes.
Foi do ambiente de
trabalho que Benton e Newman se alimentaram para dar início a seu projeto. O
texto embrionário de Bonnie And Clyde
foi quase todo escrito durante o expediente entre as paredes da redação da Esquire. A dupla tirava proveito de tal
liberdade justificando suas escapadelas como “saídas para pesquisa” que na
verdade eram usadas para sessões de Hitchcock e cinema europeu ou para visitar
sebos em busca de livros sobre gangsteres, literatura policial pulp e artigos em jornais e revistas
sobre o bando dos irmãos Barrow. Ai se encontra um dos principais atrativos da
reportagem de Mark Harris. O livro faz um relato pormenorizado de cada um dos
filmes, desde as idéias originárias para concepção das obras até sua
materialização em película, apropriando-se de elementos da cultura pop para fazer um retrato
histórico-social do período.
Da publicação de
Misses Robinson, romance de Charles
Webb propagandeado como novo O Apanhador
no Campo de Centeio e fracassado nas livrarias, até sua reinvenção fílmica com
A Primeira Noite de um Homem,
dirigido por Mike Nichols que traz o jovem Dustin Hoffman na atuação que o levou
ao estrelato, Harris destrincha o meio cinematográfico e o star system no contexto das profundas mudanças e conflitos sociais que
marcam a época.
Aqui nos é
apresentado um Sidney Poitier insatisfeito com os papéis edificantes que lhe
eram oferecidos, mais para dar um verniz progressista ao conservadorismo da
indústria do que para valorizar seu talento. Inteligente, sobre sua conquista
do Oscar em 1964, pela atuação em Uma Voz
nas Sombras – inédita premiação a um ator negro, celebrada na mídia como
sinal de mudanças –, ele declara: “Eu ainda era o único ali”. Tentando se
equilibrar entre o astro e o ativista pelos direitos civis em luta por maior
participação de afro-americanos nos filmes, Poitier sabia que, como um dos
únicos astros de sua raça – o outro era Harry Belafonte –, naquele contexto,
não poderia aceitar papéis que o apresentassem de forma negativa. Porém, sabia
ser capaz de atuar como Rei Lear, por
exemplo, como qualquer ator branco. Foi no protagonista de No Calor da Noite que finalmente encontrou um personagem que não se
baseava em clichês raciais.
Harris revela
curiosidades interessantes sobre os filmes. Bonnie
and Clyde, por exemplo, passou de mão em mão até chegar a Warren Beatty que
estreava como produtor e não pretendia atuar. Para ele, o papel de Clyde Barrow
deveria ser feito por Bob Dylan. François Truffaut chegou a vê-lo como ideal
para sua estréia na direção de um filme norte-americano, depois entregou o
roteiro à Godard. A passagem entusiasmada, porém breve, de Jean-Luc oferece um
dos momentos mais divertidos do livro. Ele pretendia rodar tudo em Nova Jersey no
mês de janeiro. Na primeira reunião com os produtores, teria sido informado que
o clima não favorecia as filmagens na data planejada. Reforçando sua fama de
difícil, o diretor teria respondido: “Eu estou falando de cinema e você, de meteorologia!”
Abandonando a reunião em seguida para nunca mais tocar no assunto.
Colunista da Entertainment
Weekly, o estilo de Mark Harris lembra o de mestres do jornalismo
literário como Gay Talese. Ele sabe explorar fatos que, para muitos
pesquisadores, poderiam parecer banais.
Na passagem sobre uma festa oferecida
pelo casal Jane Fonda e Roger Vadim, por exemplo, o escritor enxerga um evento
carregado de simbolismo. Numa das primeiras e raras vezes em que a antiga e a
nova Hollywood estiveram sob o mesmo teto, os expoentes da velha guarda teriam
se incomodado com o folk eletrificado
emitido pelos amplificadores da banda The Byrds no palco montado exclusivamente
para a apresentação. Irritado, o patriarca dos Fonda, Henry, teria gritado ao
filho, Peter: “Dá para pedir para eles baixarem o volume?”
A festa, que ainda teria
Peter Fonda subindo no telhado da casa para gritar: “Deus abençoe a maconha!”,
é representativa do momento de ruptura. Nos anos que se seguiram, a geração de
Henry e outros convidados, como Gene Kelly, William Wyler e Lauren Bacall,
seria destronada pelos ilustres desconhecidos ali presentes, a maioria oriunda
das produções B de Roger Corman. Gente como Dennis Hopper, Jack Nicholson e o
próprio Peter Fonda.
A nova Hollywood começava a tomar forma embalada pelas
guitarras elétricas dos Byrds. A invasão bárbara seria concluída com a chegada
de Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Brian De Palma, George Lucas, Steven
Spielberg e outros.
Mas ai já é outra história, ficando aqui a dica de Easy Riders, Ranging Bulls – no Brasil, Como
a Geração Sexo, Drogas & Rock´n´Roll Salvou Hollywood (Intrinseca
Editora) –, de Peter Biskind, como sequencia perfeita após a leitura do ótimo
lançamento da L&PM.
Serviço:
Título: Cenas
de Uma Revolução – O Nascimento da Nova Hollywood
Autor: Mark Harris
Editora: L&PM Editores
488 páginas
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