Mostrando postagens com marcador Editora 34. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Editora 34. Mostrar todas as postagens

sábado, 9 de dezembro de 2017

Uma Jornada Pelas Distopias Literárias



Admirável Mundo Hoje

Depois de anos fora de catálogo no Brasil, obra mais conhecida de Zamiatín – que teria influenciado Huxley, Orwell e Ray Bradbury – ganha não uma, mas duas novas edições.
Por César Alves

Reflexo do espanto e admiração da espécie humana diante da velocidade com que os avanços técnicos se apresentavam desde o advento da Revolução Industrial e seu impacto no modo de vida e comportamento das civilizações ocidentais – somados ao uso da tecnologia bélica e propagandística no contexto político, não só por regimes ditatoriais, mas também com grande desenvoltura por governos democráticos, para o controle de corações e mentes e demarcações de territórios –, as Distopias foram vistas durante muito tempo como gênero característico do século vinte e pareciam ter perdido a força com o suposto fim da Guerra Fria.
Não é de se admirar, no entanto, que, quando termos como pós-verdade, pós-democracia e pós-humanidade, entre outros, passam a pautar o debate político e social no que diz respeito à compreensão dos rumos da sociedade contemporânea, com direito a artigos e discussões que vão além do universo acadêmico, fazendo-se parte do vocabulário cotidiano, a chamada literatura distópica volte a despertar interesse. De livros e filmes voltados ao público adolescente, passando por séries de tevê, até novas edições dos grandes clássicos do gênero, as sombras das velhas e novas distopias pairam sobre a cultura – pop, de massa e também acadêmica – do século 21, como elemento simbólico essencial para analisar os dias que correm ou advertência para os dias que estão por vir. Prova disso foi o alto número de vendas e empréstimos nas bibliotecas da obra 1984, de George Orwell, registrado nos Estados Unidos, logo após a confirmação da vitória de Donald Trump.
Ao amigo leitor (a), este pobre escriba pede perdão pela longa introdução, que, no entanto, se faz necessária, tendo em vista que este artigo se dedica a fazer um breve passeio pelas principais Distopias literárias do século 20, aproveitando a volta de Nós – para muitos o texto inaugural do gênero distopico na ficção contemporânea –, escrita pelo russo Zamiátin que, após anos fora de catálogo, acaba de ganhar não uma, mas duas novas edições. Ambas traduzidas diretamente do russo.
Antes de entrarmos no tema, no entanto, este que vos escreve pede licença para mais um aparte para tentar descrever o conceito de Utopia. Já que, para os não familiarizados, pode ser difícil compreender sua contraparte sombria, verdadeiro tema de nosso texto.

Bem vindo a Lugar Nenhum ou Paraísos Imaginários para preencher o vazio de um suposto Paraíso Perdido – Palavra de origem grega, significando algo como “lugar que não existe” ou “lugar nenhum” – topos = lugar; u-topos = não lugar –, Utopia quase sempre se refere aos lugares imaginários representando sociedades ideais, conduzidas pela razão, direitos e deveres igualitários, tanto para seus cidadãos quanto para aqueles que os governam, conduzindo a um verdadeiro Paraíso terreno, livre da fome, da ganância, da guerra e os demais males que contaminam e apodrecem a civilização como a conhecemos. Clássicos como A República de Platão; A Cidade do Sol de Tomaso Campanella e Nova Atlantis de Francis Bacon são exemplos dos mais famosos, mas o termo remete diretamente à obra de Thomas Morus, Sobre o Melhor Estado de uma República que Existe na Nova Ilha Utopia.
Idealizadas e sonhadas por pensadores humanistas indignados com as desigualdades e injustiças da Idade Média e impulsionadas por racionalistas e humanistas a partir do Renascimento, as narrativas utópicas foram populares até meados do século dezenove e se tornaram as bases para a idealização das comunidades igualitárias propostas por pensadores como Charles Fourier, identificadas como “Socialismo Utópico” por Karl Marx.

Sobre a Necrópole da Liberdade, a Nova Ordem ergue sua Cidade - Se as Utopias representavam o sonho de um futuro dourado para a evolução de nossa espécie como sociedade, o aguardado raiar das luzes sobre o longo domínio das trevas históricas, revelando uma fé quase ingênua na inclinação dos homens para o bem, o Reinado do Terror que se seguiu à Revolução Francesa, as crueldades perpetradas pelas nações esclarecidas, massacrando os povos que prometiam salvar da selvageria, culminando em barbárie colonial e neo-colonialista, mas, principalmente, com a chegada do século vinte, que trouxe consigo duas guerras mundiais, seus genocídios sistemáticos e morte em escala industrial, representaram um choque de realidade e a confirmação de que as sombras que cobriam o coração humano eram ainda mais densas do que o pior dos pessimistas poderia imaginar.
O resultado no imaginário literário ocidental foi o surgimento da contra-utopia ou Utopia negativa, chamada corretamente Distopia. Aqui, o sonho das sociedades fraternas e igualitárias dá lugar ao pesadelo do controle estatal de sociedades formatadas e automatizadas.
Em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, o autor de As Portas da Percepção, Contraponto e A Ilha (que também cabe no gênero distopico) concebe um mundo organizado através de castas, onde as pessoas são concebidas em laboratórios, através da engenharia genética, já programadas para exercer as funções que lhe cabem e o lugar que devem ocupar dentro do sistema organizacional que rege a sociedade. Aqui o controle é exercido através de uma droga, o soma, espécie de fármaco tranqüilizante de efeito social e político que inibe pensamentos e questionamentos contrários ao Estado, bloqueando as idéias perigosas com a falsa sensação de felicidade, o que é reforçado com o incentivo, quase obrigatório, do exercício pleno do hedonismo programado. (Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley – tradução: Lino Vallandro – Globo Livros – 312 páginas)
Talvez a mais famosa das Distopias, 1984 foi escrito por George Orwell e publicado em 1948, pouco depois do término da segunda grande guerra. Fortemente influenciado pelos horrores revelados durante e ao final do conflito, em face às nuvens carregadas que se formavam no horizonte, com a inauguração da era atômica e o início das disputas entre os vitoriosos por espólios de guerra e territórios dos derrotados, que culminariam na pesada tormenta que ganharia o nome de Guerra Fria, a distopia de Orwell ganhou tanta notoriedade que termos como Big Brother e novilíngua, entre outros, passaram ao vocabulário ocidental como expressões de significado reconhecido mesmo por quem nunca leu o livro.

Descrevendo uma sociedade sob o comando do Grande Irmão – espécie de “Pai da Pátria”, cuja mão pesada educa, pune e controla, e olhos que vigiam, através de telões espalhados nos prédios, repartições, fábricas e até mesmo nos dormitórios dos cidadãos –, que comanda através de técnicas baseadas na ordem e na aniquilação do individuo, tendo como instrumentos a propaganda, o controle da mídia e da própria história, como nos mostra o personagem central, cujo trabalho burocrático consiste em pesquisar e reescrever matérias e trechos de livros para que não contradigam a versão do regime.
O autor costumava dizer que a ideia teria surgido de sua experiência e do trauma histórico causado pela ameaça fascista de Hitler e Mussolini e a maneira como os déspotas conseguiram levar adiante sua loucura e conquistar a adesão de seus compatriotas que abraçaram, com raros focos de resistência, sua insanidade. Orwell, que até o fim de seus dias considerava-se um socialista, no entanto, não limita sua crítica aos regimes de direita e reconhecia o quanto havia em sua distopia (e no próprio Grande Irmão) da União Soviética sob o comando de Stalin. Portanto, sua obra era um alerta contra os perigos dos regimes ditatoriais e sua propaganda doutrinária, independente do viés ideológico.
Ou seja, 1984 é fruto tanto de Auschwitz e do Holocausto fascista quanto o é dos Gulags e campos de trabalhos forçados da Rússia comunista de Stalin. (1984 – George Orwell – Companhia das Letras – 416 páginas)

Entretenha-nos até a morte - Não só por ser a distopia predileta deste que vos escreve, mas, principalmente, por ser aquela que mais se aproxima dos dias que correm, Fahrenheit 451 não poderia ficar de fora. Aqui não estamos falando de uma sociedade em um futuro distante controlada por um regime totalitário, mas sim de um lugar em um tempo e espaço imaginário que pode muito bem ser comparado com o nosso presente. Em Fahreinheit 451 o condicionamento social é feito através do entretenimento barato, da indústria cultural e de medicamentos.
Concebida pelo genial Ray Bradbury, o ponto principal dá obra já nos é dado no excelente título: 451 graus fahrenheit é a temperatura de combustão do papel. Num mundo onde as pessoas são condicionadas a evitar ideias que as conduzam ao questionamento de seu modo de vida e seu papel social como indivíduos, os livros foram banidos como perigoso instrumento desestabilizador social. Todos vivem sob o efeito de uma felicidade anestésica, mantida através de equipamentos audiovisuais, espécie de monitores televisivos que ocupam uma parede inteira, transmitindo novelas e shows de variedades exibidos 24 horas por dia, em tempo real, e com os quais os telespectadores podem interagir – única forma de interatividade aceitável, aliás, já que mesmo os encontros com amigos e familiares são dedicados a falar sobre a grade de programação e seu “conteúdo” –, o que é reforçado com doses diárias de um poderoso fármaco. As casas são à prova de fogo e, não havendo mais a necessidade de um corpo de bombeiros, aos antigos combatentes de incêndios foi dada uma nova missão: incinerar livros e caçar aqueles que cometem o crime de esconder bibliotecas em suas casas.
Ao contrário da maioria das tramas do gênero, em Fahreinheit 451 as bases estruturais da sociedade não foram criadas após uma hecatombe nuclear, uma guerra ou a tomada do poder por um sistema ditatorial. Como o autor deixa claro em algumas das passagens mais marcantes do livro, não se trata de uma sociedade iletrada e analfabeta. As pessoas sabem ler, mas o conhecimento da leitura serve apenas para interpretar os manuais de funcionamento dos equipamentos e gadgets que os mantém distraídos e as bulas dos remédios que garantem sua anestesia comportamental. Logo, a opção pelo conformismo e a recusa aos livros foram tomadas pelas próprias pessoas. O que é mais assustador. (Fahrenheit 451 – Ray Bradbury – Globo Livros – 215 páginas)

Se não a Distopia das Distopias, Nós, do russo Ievgenin Zamiatín, merece lugar de destaque como a Distopia que teria inspirado todas as tramas distópicas que a seguiram. Ou, pelo menos, teria tido forte influência sobre as obras mais relevantes, dentre aquelas que ousaram imaginar o perigo de Utopias negativas, como um alerta para o que pode nos aguardar na esquina de um futuro não muito distante. É inegável sua influência sobre as obras comentadas anteriormente e outras A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, que só não foi descrita aqui por ter sido alvo de outro texto, assinado pelo amigo aqui, que pode ser lido no link: http://orebitedoverbo.blogspot.com.br/2014/01/laranja-mecanica-distopia-horrorshow-de.html
Narrado em primeira pessoa na forma de um diário por D-503, operário que trabalha na construção de uma espaçonave projetada por engenheiros do governo para a missão de espalhar para o resto do universo o evangelho do Estado Único, Nós descreve uma sociedade controlada através da eliminação do conceito de liberdade e da noção de indivíduo, além da criminalização da imaginação.
Como o próprio nome do personagem deixa claro, na realidade imaginada por Zamiatin o conceito de indivíduo foi completamente apagado, em prol de uma existência coletiva. Aqui, as pessoas são identificadas por números e letras, como setores de uma linha de montagem ou engrenagens de um motor. A população mundial foi reduzida para 10 milhões de habitantes que vivem em casas padronizadas, com paredes de vidros transparentes da cor verde, de maneira a coibir desvios comportamentais ou qualquer ato fora do padrão preestabelecido.
Com suas vidas expostas, todos vigiam e são vigiados, tornando-se também responsáveis pela manutenção da existência de paz e felicidade, alcançadas depois da revolução que eliminou e criminalizou a liberdade. Um preço pequeno, segundo eles, a ser pago pela segurança e felicidade perpétuas, já que a liberdade engendra a violência e alimenta pensamentos inadequados, que podem envenenar a sociedade com o mal da solidão, da tristeza e – ainda mais perigoso – da imaginação.
Para compensar, todos tem direito a uma hora de isolamento para momentos de intimidades sexuais, desde que na data, horário e com o parceiro autorizados, conforme consta no cartão rosa, emitido por burocratas do governos e sem o qual qualquer relação íntima ou ato de socialização clandestina constitui crime mortal. D-503 parece satisfeito com sua condição, chegando a exaltar as benesses do Estado Único, mas é justamente depois de um destes encontros que acontece a grande reviravolta e suas certezas são abaladas. O tremor ideológico e emocional é causado por I-330, uma mulher misteriosa, com hábitos e idéias que, a princípio, D-503 condena, embora não consiga se afastar dela. Logo o personagem é apresentado a um mundo de emoções e sentimentos como o sonho, a fantasia e o amor, proibidos e condenáveis com a morte.
Nascido em Moscou, em 1884, Ievguenin Zamiátin formou-se em engenharia naval e trabalhou como supervisor na construção de navios russos. Apoiou Revolução de Outubro de 1917, mesmo ano em que passa a dedicar-se à literatura em tempo integral. Ministra aulas na recém-fundada Casa das Artes de Petrogrado e é eleito presidente da União Pan-Russa de Escritores. Em 1919 é preso por suspeita de associação ao partido dos Socialistas Revolucionários. Nos anos seguintes termina a redação de Nós, sua obra mais conhecida, mas o romance não recebe autorização de publicação no país. O livro acaba sendo publicado numa tradução para o inglês, nos EUA, em 1924 – na Rússia, a obra só seria publicada em 1988.
 O livro já ganhou diversas edições no Brasil – uma delas com o título de O Muro Verde –, mas estava fora de catálogo há anos. O que dá ainda mais motivos para celebrar a chegada de duas novas traduções em português. Ambas feitas diretamente do russo.

A edição da Aleph, traduzida diretamente do russo por Gabriela Soares chama atenção por seu belo acabamento gráfico e por conter extras de respeito, como uma carta do próprio autor a Stalin, na qual solicitava ao ditador autorização para deixar seu país, já que sua permanência ali não fazia sentido, uma vez que seus livros não eram publicados e não podia trabalhar; e também um artigo assinado por George Orwell no qual o autor de A Revolução dos Bichos estabelece conexões entre a obra de Zamiatin e o Admirável Mundo Novo de Huxley – concluindo que o primeiro, certamente, influenciou o segundo, o que também pode ser dito a respeito de 1984, publicado anos depois. A edição da Editora 34 faz parte da coleção Narrativas da Revolução (que será alvo de um próximo artigo aqui). Com tradução de Francisco Araújo, também traz o excelente prefácio de Cássio de Oliveira que ajuda o leitor a entender a importância da obra no contexto em que foi escrita e seu valor ainda para nossos dias. Embora se trate do mesmo texto, ambas as edições possuem qualidades e complementos que as distinguem e – em caso de dúvida e condições financeiras – recomendo aos amigos ficarem com as duas.


Serviço:

Nós
Autor: Ievguêni Zamiátin

Tradução: Francisco de Araújo
Editora 34
288 páginas

Tradução: Gabriela Soares
Editora Aleph
344 páginas

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Alice no País das Maravilhas - 150 anos Depois



Obra infantil que alçou Lewis Carroll ao cânone universal ainda encanta e desperta polêmica.

Ocupando o terceiro lugar – depois de Shakespeare e da Bíblia – entre os livros mais vendidos em todo mundo, Alice no País das Maravilhas completa 150 anos. Celebrando a data, o livro ganha novas edições em nossas livrarias e é tema de documentário, produzido pela BBC.
Por César Alves

“Obras brilhantes podem ser concebidas por pessoas horríveis e não vejo problema nisso”, diz Will Self ao entrevistador, talvez irritado com sua insistência em focar a conversa mais no comportamento polêmico e moralmente duvidoso do autor do que nas qualidades estéticas e importância da obra sobre a qual teria sido convidado a dar seu depoimento, que completava 150 anos desde sua primeira publicação.
Autor de títulos brilhantes – pelo menos para este que vos escreve –, como Cock & Bull (Geração Editorial), a ficha corrida de polêmicas de Self talvez o faça, aos olhos de muitos “uma pessoa horrível”. Entre seus feitos, por exemplo, é conhecido o episódio, revelado pelo próprio autor, de que ele teria tomado heroína no banheiro do avião do primeiro ministro inglês, quando fez parte de uma comitiva diplomática, reunindo políticos e escritores britânicos, para a abertura de um evento cultural – transformando o ato de fumar maconha na casa da rainha, praticado pelos Beatles, uma travessura adolescente. Sua declaração poderia ser interpretada como defesa em causa própria, não fosse o livro em questão nada além do revolucionário, enigmático e surpreendente Alice no País das Maravilhas, seu autor, Lewis Carroll, e as duvidas e suspeitas que cercam sua relação com Alice Liddell, que teria inspirado sua personagem mais famosa.
A cena está em The Secret World of Lewis Carroll, documentário para televisão, produzido pela BBC, que vem sendo exibido desde o início de julho, como especial que celebra o aniversário do livro infantil que, desde sua primeira edição, nunca deixou as listas de mais vendidos em todo o mundo. Explorada e debatida por especialistas, psicólogos, biógrafos e outros, a fixação de Lewis Carroll, um homem adulto, na casa dos trinta, por sua musa inspiradora – na época com dez anos de idade – é, no mínimo, suspeita, claro. Porém tanto já se falou e escreveu a respeito, sem chegar a lugar nenhum, que a equipe do programa não vai além do mais do mesmo do jornalismo de fofoca, perdendo a oportunidade de desvendar o que faz a obra ser ainda hoje tão relevante e capaz de encantar crianças e adultos.
Como o objetivo do texto são os livros, Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá, estrelados pela personagem, não é minha vontade entrar no debate se Carroll era ou não pedófilo, assim como não me interessa decidir se Bentinho era mesmo corno. Cabe ao amigo leitor decidir se o autor era mesmo “uma pessoa horrível”, mas recomendando que – ainda que sua conclusão seja “sim”, “ele era uma péssima pessoa” – não deixe que o julgamento, em relação a supostos desvios morais de Lewis Carroll, desmereça ou diminua a obra.

E, em se tratando da personagem clássica, criada por Carroll, nossas livrarias estão repletas de motivos para comemorar. Tanto o primeiro livro, Alice no País das Maravilhas, quanto o segundo, Alice Através do Espelho e o que Ela Encontrou por Lá, possuem excelentes edições nacionais, como a tradução e adaptação de Nicolau Sevcenko, da Cosac e Naify, e a de Pepita de Leão e Marcia Feriotti Meira, lançamento da Martin Claret.
Merecem atenção também a edição luxo de bolso, reunindo os dois livros, publicada recentemente pela Zahar; e Alice no Jardim da Infância, da Iluminuras, que também lançou Algumas Aventuras de Silvia e Bruno, obra do mesmo autor, pouco conhecida dos leitores brasileiros.
Verdadeiro primor é a edição especial  comemorativa publicada em parceria pela Editora 34 e Livraria Cultura, As Aventuras de Alice (No País das Maravilhas e Através do Espelho), traduzida por Sebastião Uchoa Leite, trazendo as ilustrações originais, que se tornaram tão conhecidas quanto o texto, de John Tenniel.

Seja através do desenho animado da Disney, a recente adaptação para cinema de Tim Burton ou apropriações de personagens e trechos da obra pelo universo da cultura pop – Tom Petty, como o chapeleiro louco, no videoclipe de Don´t come round here no more, ainda hoje deve estar registrado na cabeça de quem tem mais de 35 anos –, todo mundo reconhece Alice e demais personagens emblemáticos – como o Gato Chashiere, o Chapeleiro Maluco, A Rainha de Copas e tantos outros –, mesmo que nunca tenha lido o livro.

Publicado na Inglaterra Vitoriada, em 15 de julho de 1865, Alice no País das Maravilhas já surge como obra revolucionária por sua explosão de criatividade, inovação narrativa e ousadia, deixando claro que, a partir dali, a literatura infantil jamais seria a mesma. Verdadeiro divisor de águas, a obra rompe a tradição da escrita para crianças – marcadas por uma mensagem edificante e pontuadas por um fundo moral – dos autores da época e, praticamente, inventa o gênero literário infantil moderno, mais voltado a estimular o intelecto – através de jogos de palavras, charadas, questionamentos – e incentivar a imaginação.
Mas Carroll – mais por acidente do que intencionalmente – foi além do universo infantil, chegando a influenciar a literatura adulta, sendo citado por nomes que vão de James Joyce a Jorge Luis Borges, passando pelos Surrealista e ícones da cultura jovem, como John Lennon.
Apropriações de passagens e trechos da obra pelo universo da cultura pop – Tom Petty, como o chapeleiro louco, no videoclipe de Don´t come around here no more, ainda hoje deve estar registrado na cabeça de quem tem mais de 35 anos –, através dos anos, fizeram com que todo mundo reconheça Alice e demais personagens emblemáticos – como o Gato Chashiere, o Chapeleiro Maluco, A Rainha de Copas e tantos outros –, mesmo que nunca tenha lido o livro.

Grace Slick – primeiro, com seu Great Society; depois, na gravação mais conhecida, com o Jefferson Airplane –. assim como Dylan apresentou a maconha aos Beatles, introduziu Alice ao universo do LSD, nos versos clássicos de White Rabbit: “One pill makes you larger and one pill make you small. And the ones that mother gives you don´t do anything at all”. Desde então, a menininha curiosa e aventureira de Carroll nunca mais foi a mesma.
Cinematográfica de berço, ainda que nascida antes do cinema, não faltam referências à obra dentro da linguagem áudio visual, como no universo de Matrix, por exemplo. Mas, mesmo antes da adaptação em desenho animado da Disney ou de Tim Burton, a menina protagonizou suas aventuras, através da tela grande. A primeira foi Alice in Wonderland (1903), dos diretores britânicos Cecil M. Hepworth e Percy Stow e, desde então, do cinema mudo ao falado; do preto e branco ao Tecnicolor, o livro de Carroll serviu de base para dezenas de adaptações, em diversos países – o amigo aqui indicaria o experimental e lisérgico Alice in Wonderland (1966), de Jonathan “Wolf” Miller.
As ilustrações icônicas do original, criadas por Tenniel, inspiraram mais de uma dezena de artistas a dar seu toque pessoal ao universo de Lewis Carroll, incluindo Salvador Dalí e o parceiro de Hunter Thompson, Ralph Steadman.


Alice na Casa das Rosas
Como parte das comemorações, a Casa das Rosas promove o evento 150 Anos de Alice no País das Maravilhas, no próximo domingo, com intervenção e contação de história de Camila Feltre e Rafael Copetti, a partir das 15h.
O evento também conta com exposição de trinta e dois desenhos de Sir John Tenniel.

Serviço:
Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura
Avenida Paulista, 37, São Paulo, tel. 0XX11 3285-6986 / 3288-9447.








quarta-feira, 5 de agosto de 2015

A Barbárie dos Homens e a Paixão do Menino, Segundo Dostoiévski




A Barbárie dos Homens e a Paixão do Menino, Segundo Dostoiévski

Distintas na forma e conteúdo, Recordações da Casa dos Mortos e O Pequeno Herói estão diretamente ligadas à jornada do autor russo aos Infernos do Cárcere.
Por César Alves

1849 foi um ano ruim para Fiodór Dostoiévski.
Encarcerado, sob a acusação de conspirar contra o czar Nicolau I, e a espera de um julgamento, cujo veredicto, conforme o autor talvez já esperasse, seria culpado. O que pode ter causado surpresa foi a sentença e condenação, pena de morte, já que, na época, Dostoiévski gozava de certa notoriedade, como um dos mais promissores jovens talentos da literatura de seu país, graças a boa recepção de Gente Pobre (Editora 34), seu livro de estréia, publicado três anos antes.
Acompanhado de seus supostos cúmplices de conspiração, Dostoiévski chegou a ficar de frente com o pelotão de fuzilamento e vislumbrar o olhar frio e sentir o odor de necrose e o bafo da Morte em seu cangote. No último instante, no entanto, quando os atiradores já estavam a postos e prestes a efetuar os disparos, um emissário do governo aparece com um documento que substituía a pena máxima por quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, seguida de mais cinco anos servindo como soldado voluntário do exército russo. Mais para encenação cruel e sádica, com o intento de quebrar de vez o espíritos dos inimigos do Estado, do que demonstração de benevolência política, certo é que o episódio seria o primeiro dos muitos, durante o martírio penal, que marcaria de forma indelével sua obra e biografia.
O drama prisional do mestre russo está diretamente ligado a dois excelentes títulos recém chegados às livrarias brasileiras, Recordações da Casa dos Mortos (Nova Alexandria) e O Pequeno Herói (Editora 34).
O primeiro, também conhecido por Notas da Casa dos Mortos, é uma edição revista, de capa dura, da tradução de Nicolau Peticov, que andava sumida das prateleiras. Inspirado em suas anotações clandestinas – o autor foi proibido de escrever, durante o cumprimento de sua pena –, sobre sua experiência nos campos de trabalhos siberianos e suas conversas com outros condenados, realizadas entre 1850 e 1854.
Originalmente, a obra foi publicada em capítulos, de 1860 à 1862, no periódico Mundo Russo. Escrito como romance, Recordações da Casa dos Mortos conta história de Aleiksandr Pietrovitch, assassino confesso de sua esposa seus dias de tormento como condenado a trabalhar na franquia siberiana do Inferno, pelas quais também passou seu criador. E é justamente esse tempero autobiográfico que faz do livro mais do que um romance.
Embora construída como ficção, a obra é dotada de inegável conteúdo documental. Trata-se de um rico, minucioso e brilhante estudo sobre a miséria humana, análise social e psicológica e depoimento quase pessoal sobre o cotidiano brutal de condenados e carcereiros, oprimidos e opressores; o inconsciente conflituoso entre sentimentos de fúria, resignação, apatia e revolta, num caldeirão de violência e miséria.

O Menino e o Sexo
Talvez por ser parte da produção de seus dias de cárcere – escrito na prisão, entre julho e dezembro de 1849 –, O Pequeno Herói pode surpreender alguns leitores de Fiodor Dostoiévski, por parecer tão distante do contexto sombrio em que o autor se encontrava ao concebê-lo e que se fez presente em grande parte de sua obra.
Uma leitura das cartas que o autor escreveu para seu irmão do cativeiro, no entanto, pode apontar a narrativa como fruto direto do impacto sobre o autor da percepção do verdadeiro valor do convívio social e grandeza encontrada num raio de sol sobre seu rosto. Algo que, não só os dotados da sensibilidade artística, mas todo o gênero humano só venha a se dar conta quando uma vez tendo sido privado.
Análises pretensiosas à parte, aqui, o ambiente descrito é composto de belas paisagens, passeios e manhãs ensolaradas de dias de verão, clima pouco explorado por Dostoiévski na maioria de suas criações. Assim como pode parecer também a trama, que gira em torno da descoberta do amor por um garoto de dez anos de idade.
Narrado em primeira pessoa por um menino, o texto nos é apresentado como relatos de suas memórias em relação a acontecimentos que marcaram o fim de sua primeira infância. Em seu relato ele descreve os dias daquele verão em que se apaixonou pela primeira vez. Amor impossível, como é sempre nessa fase, por uma mulher mais velha e casada.
Dotado de uma poesia singela, O Pequeno Herói explora o começo do fim das inocências infantis, o despertar do amadurecimento – há uma bela simbologia na passagem em que o protagonista decide montar um cavalo selvagem e quase morre, na tentativa de impressionar sua musa – de forma quase inocente. E, quando digo quase inocente, é porque Dostoiévski nunca é inocente.
Uma leitura mais atenta deixa claro, logo nas primeiras páginas, que mais que o despertar do amor, o autor também fala sobre a descoberta dos desejos sensuais na infância, bem antes daquele famoso médico de Viena.
Nosso herói, a principio, também volta sua atenção à uma moça mais jovem, a mais bela e jovem, por quem o menino se sente atraído, mas de uma forma diferente da atração que sente por sua musa. O que o atrai aqui, está mais ligado às suas belas formas. Percebendo isso, a garota acaba se aproveitando disso para atraí-lo e pregar-lhe peças, como, por exemplo, quando ela pede a ele para se sentar em seu colo e, entre um cafuné e outro, desfere-lhe pequenas torturas com beliscões dolorosos. Com sua primeira Famme Fatale, acaba descobrindo que a beleza do objeto de desejo, quase sempre, vem acompanhada de uma crueldade que beira o sadismo.
A tradução é de Fatima Biancchi e ilustrada com gravuras de Marcelo Grassman

Serviço:
Título: Recordações da Casa dos Mortos
Autor: Fiodór Dostoiévski
Editora: Nova Alexandria

Título: O Pequeno Herói
Autor: Fiodór Dostoiévski
Editora: 34




segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Robert Walser - Absolutamente Nada e Outras Histórias



A Intencionalidade Superior de Robert Walser

Livro reúne 41 textos curtos do autor suíço que influenciou nomes como Elias Canetti, Franz Kafka e Herman Melville, entre outros, oferecendo nova oportunidade aos leitores brasileiros de mergulhar no universo literário de um dos grandes autores europeus esquecidos por nossas editoras.
Por César Alves

No Brasil, podemos ler menos coisas de Robert Walser do que sobre ele. O que não significa que estamos bem servidos de material biográfico sobre o autor, já que sua trajetória pessoal continua envolta em mistério, passagens jamais confirmadas de fontes pouco confiáveis e um sem número de lendas que, graças ao culto em torno de Walser e sua obra, só fizeram crescer, desde sua morte. Mas, ao contrário do que diz Walter Benjamin na abertura de seu artigo sobre Robert Walser, mal parafraseado por este amigo que vos escreve, no Brasil o autor é muito comentado e muito, muito pouco mesmo, lido.
Praticamente ignorado por nossas casas editoriais, apesar do peso de seu nome – além de Benjamim, Walser é citado como referência e verdadeira admiração por nomes como Herman Melville e Franz Kafka, entre outros – e da incontestável qualidade e grandiosidade de sua obra, tendo apenas uma quantidade miserável de seus títulos traduzidos e publicados por aqui – se não me engano, até agora, apenas dois de seus livros haviam sido lançados no Brasil. Motivo mais que justo para recebermos com festejos e fogos de artifício a chegada de Absolutamente nada e outras histórias, que a editora 34 acaba de lançar.
Reunindo 41 textos curtos do autor, o volume foi traduzido diretamente do alemão por Sérgio Tellaroli e oferece oportunidade imperdível aos leitores brasileiros de entrar em contato com autor cuja simplicidade narrativa – carregada de imaginação, inventividade e sensibilidade, no que diz respeito ao conteúdo – ultrapassa o sublime, expondo uma complexidade temática, filosófica e lírica, poucas vezes vista na literatura universal.

O que este escriba traduz aqui – muito porcamente – por simplicidade narrativa e que Walter Benjamin chamou, corretamente, de “extrema ausência de intenção”, em seu excelente artigo sobre Robert Walser (pode ser encontrado na edição brasileira de Magia + Técnica. Arte + Política, de Walter Benjamin, publicado no Brasil pela Editora Brasiliense), seria um dos motivos de o autor ser tão pouco explorado e praticamente ignorado por estudiosos e especialistas em literatura, tão dedicados que são às formas e técnicas da construção estética, como reguladora e juízo de valor da escrita como arte. O fato de o próprio Robert Walser, certa vez, ter declarado jamais revisar seus textos, ao que tudo indica, talvez tenha colaborado para que sua obra, embora reconhecida, cultuada e sempre reeditada na Europa, tenha recebido muito menos atenção dos especialistas do que realmente merece, ao longo dos anos e décadas.
É ao artigo de Benjamin que, novamente, recorro para dizer que é justamente na ausência de intencionalidade de Walser que pode estar o grande valor de sua escrita de inventividade. Sua despretensão, no fundo, revela uma “intencionalidade superior”, conforme descreve Walter Benjamin – tomado de empréstimo para intitular este texto.
Tal intencionalidade superior em sua ausência de intenções é nítida nos textos que compõem o recente lançamento. O autor levou sua vida de forma nômade e é justamente o olhar humano de um viajante, traduzindo a complexidade da existência, sob a simplicidade da vida e o que ela oferece de melhor e pior o que encontramos em cada uma das deliciosas páginas do livro. Walser amava as mulheres e aqui há muitas delas, no que todas elas têm de delicado e também no que não têm; o amor é força motriz de algumas histórias, portanto, há amor, mas também não há, posto que, para o autor, no fundo, todo individuo é um solitário.
Aqui o autor discorre sobre o romance impossível de uma cegonha e um porco espinho; um anjo que não come porque a comida cansa; a descoberta do amor por um macaco; e a nitidez com que se desmascara a frágil existência humana, quando vista do alto, durante um passeio de balão. Mas há também ensaios sobre a liberdade, considerações sobre O Idiota de Dostoiévski, uma cara de solicitação de emprego nada corriqueira e um humor, fino e sarcástico maravilhoso.
Exemplo da genialidade e brilhantismo do autor de dizer muito, parecendo dizer absolutamente nada, é o brilhante conto que dá nome ao livro. Num breve e pobre resumo deste que vos escreve, fala sobre uma Esposa que vai ao mercado fazer compras, com o objetivo de oferecer um jantar especial ao Marido. Ela pode escolher o que quiser levar e se perde em meio a tanta variedade de produtos e possibilidades disponíveis. Podendo levar de tudo, ela decide levar “absolutamente nada”.

Quando, à noite, o Esposo chega do trabalho, pergunta à Mulher:
“O que teremos para o jantar?”
“Absolutamente, nada!”
Ela responde.
Seu cônjuge estranha, mas nada diz. E a mulher esclarece:
“Precisamos variar o cardápio, pois é um dia especial. Então, hoje me dediquei a preparar absolutamente nada.”
O marido sorri com ternura e sente-se feliz com a dedicação de sua amada.
Eles, então, se sentam à mesa. Preenchem seus pratos com absolutamente nada, saboreiam e se fartam com porções de absolutamente nada e, no final, sentem-se satisfeitos com absolutamente nada.
Nascido em Biel, Suíça, em 1878, Robert Walser escreveu três romances, diversos volumes de contos e prosas curtas, além de incontáveis páginas e artigos para jornais e revistas. Apesar de sua importância e do reconhecido valor de sua obra, até agora, apenas dois títulos de sua autoria estavam disponíveis em nossas livrarias, vertidos para o português: O Ajudante (Arx, 2003), traduzido por Zé Pedro Antunes; e Jacob van Gunten (Cia das Letras, 2011), tradução de Sérgio Tellaroli, o mesmo tradutor de Absolutamente nada e outras histórias, objeto de nosso artigo.
Após uma produção intensa, em 1925, Robert Walser publicou seu último texto Die Rose (A Rosa). Em 1929, aos 50 anos de idade, o autor teria se internado  numa clínica psiquiátrica. Seu estado psicológico só agrava a partir daí, gerando diversas internações, até a última delas, em 1933, na qual permaneceria até o fim de seus dias. Walser teria falecido no natal de 1956, enquanto caminhava solitário, como costumava fazer, nas dependências da instituição mental. Seu corpo teria sido encontrado caído na neve por funcionários.
O culto a Robert Walser e sua obra, só fez aumentar, depois de sua morte. Até hoje, a possibilidade de o autor ter escrito inéditos posteriores a 1925, ainda gera lendas e histórias jamais confirmadas. Uma das lendas relativas aos seus últimos anos de que gosto conta que, durante sua última internação, depois de mais de duas décadas sem publicar e muita duvida no meio literário sobre se o autor ainda estaria ou não vivo, um jovem repórter teria conseguido se infiltrar no hospital para tentar uma entrevista. Segundo reza a lenda, Walser não se comunicava com ninguém, passava seus dias passeando pelas dependências da instituição e cuidando de um jardim, onde teria acontecido o suposto encontro. O repórter teria tentado estabelecer contato com o autor de várias formas. Walser, no entanto, apenas teria ignorado suas investidas, dedicando-se aos cuidados para com o jardim, como se ele não estivesse ali.
Cansado de tentar, certo de que não arrancaria nada e conformado em não obter qualquer resposta às suas perguntas, teria feito uma última tentativa:
_ Se puder me responder ao menos uma pergunta, senhor Walser, me diga se o senhor ainda escreve...
 Tendo como resposta apenas o silêncio, o jovem se despediu e seguiu seu caminho. Já de costas, poucos passos a frente, em direção da saída, o escritor teria exclamado em voz baixa:
_ Eu não estou aqui para escrever. Estou aqui para ser louco.
Fato ou ficção, acho a lenda, no que tem de bela e melancólica, digna de um ficcionista cuja própria vida gera ficção.

Serviço: Absolutamente nada e outras histórias
Autor: Robert Walser
Tradução: Sérgio Tellaroli
Editora: Editora 34
170 páginas


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

20 Poemas Para Ler no Bonde - Olivério Girondo



A Poesia Passeia de Bonde
Por César Alves

20 Poemas para Ler no Bonde, livro de estréia de Olivério Girondo, é finalmente publicado no Brasil, em edição bilíngüe e ilustrado com fotos de Horacio Copolla.


O poeta tem fome de inspiração, seus olhos devoram a realidade que mastiga à dentadas, engolindo-a num bolo digestivo de imaginário, que digere em criatividade e regurgita em verso e prosa. O viajante tem fome de estrada, seus pés devoram milhas percorridas, engolem paisagens, digerem experiências e regurgita uma mistura da necessidade irresistível de trilhar novos caminhos com a saudade de lugares e pessoas para trás deixados que, de tão intensa, só perde para o imenso desejo de seguir viagem.
Com o perdão do filosofar barato que introduz o texto, caro leitor, é como um amálgama do artista com o viajante que os 20 Poemas Para Ler no Bonde, de Olivério Girondo, nos encantam.
Lançado pela Editora 34, a tradução de Fabrício Corsaletti e Samuel Titan Jr corrige uma das muitas lacunas existentes nas prateleiras de nossas bibliotecas e livrarias de edições nacionais de títulos e autores importantes da literatura produzida na América Latina. Em se tratando de expoentes das vanguardas, então – como é o caso de Olivério Girondo –, são tantos buracos que beiram se tornar um imenso vácuo.

Expoente máximo do Modernismo argentino, Olivério Girondo é também considerado por especialistas como aquele, dentre os poetas das vanguardas latino-americanas, que melhor dialoga com a produção brasileira, principalmente, Oswald e Mário de Andrade.
Originário de uma família abastada de Buenos Aires, muito cedo o autor se deu conta de que as facilidades financeiras que seu berço lhe garantia não poderiam ser desperdiçadas com uma existência fútil, esnobe e cômoda. Sendo assim, ainda muito jovem decidiu tirar proveito de sua condição para abraçar a vida como experiência e saciar-se do banquete das descobertas.
Vivendo de forma quase nômade entre a Argentina e a Europa, apesar de seu espírito boêmio, Girondo dedicou-se de forma apaixonada aos estudos, lendo tudo o que estivesse ao alcance, com especial devoção à literatura e artes em geral. Aqueles eram os anos convulsivos de horror, quando as nações do mundo entravam no primeiro dos dois conflitos mundiais que modelariam a história do século que se iniciava; espanto e fascínio, diante da promessa de possibilidades que as novas invenções e descobertas científicas e tecnológicas prenunciavam; e pulsão criativa, experimental e provocativa, conforme apontavam as vanguardas artísticas européias. Um século novo, exige uma arte também nova, era o que diziam ou pareciam dizer.
Ora, para um garoto com aspirações artísticas e inclinado ao inconformismo, deve ter sido como aquele senhor aposentado, ex-hippie, que hoje não confia em ninguém com menos de sessenta, quando ouviu ainda adolescente alguém pregar: “Não confie em ninguém com mais de trinta!” Ou o garoto suburbano que, em meados da década de 1970, ouviu Never Mind The Bollocks. Here is The Sex Pistols e concluiu: “Eu também posso fazer isso!”
Citações pop e anedotas geracionais à parte, sem medo do afogamento o jovem poeta então saltou de seu trampolim para mergulhar profundamente nas águas do novo, onde a vida artística realmente estava fluindo, num maremoto de ousadia promovido pelas ondas tormentosas dos dada, futuristas, cubistas e surrealistas.
Os 20 Poemas Para Ler no Bonde apresentam um poeta em sintonia com seu tempo e, embora ainda em formação, completamente adaptado às novas propostas criativas de sua época. Mas também, oferecem o olhar do andarilho experiente e, ainda assim, fascinado com a beleza das coisas mais simples, atos e fatos corriqueiros da vida cotidiana, o gigantesco multiverso guardado no micro, imperceptível aos que só tem olhos para o macro; mas claro como o dia para aqueles dotados da capacidade de enxergar além da física dos corpos e das estruturas do concreto.

Todos escritos durante suas andanças por cidades como Buenos Aires, Paris, Veneza e Rio de Janeiro, cada poema convida a vivenciar com o viajante as experiências de sua passagem, enquanto o poeta desperta os sentidos, com saboroso lirismo inspirado no caminhar das mulheres, o olhar de desafio da madura e o rosar das bochechas da virgem inocente, em resposta ao mesmo flerte; a cacofonia das conversas desconexas entre amigos ébrios; a máquina motorizada que segue em descompasso e, mesmo com o ronco de sua artificialidade, não quebra a naturalidade com que transcorrem os dramas pessoais dos que passam, vão ou ficam e dos que bebem, conversam, namoram; assim como a cidade que, aos pouco, toda a natureza cobre, em harmônica desarmonia acelerada.
 Publicado originalmente na França em 1922, o livro só saiu na Argentina em 1925. Um ano antes, Girondo retornou à Buenos Aires, onde ajudou a agitar o modernismo local, como colaborador do órgão difusor das vanguardas hispano-americanas, a revista Martín Fierro (1924-1927) e consagrou-se como poeta e autor de diversos livros, com destaque para Calcomanias (1925), Espantapájaros (1932) e Persuasón de los dias (1942), que merecem artigos próprios para discorrer a respeito.
Além de bilíngüe e ilustrada, a edição brasileira de 20 Poemas para Ler no Bonde conta com reproduções de trabalhos de Horacio Coppola, figura central da fotografia latino-americana, um dos fundadores do Cineclube de Buenos Aires, em 1920, que, em 1932, durante viagem à Alemanha, travou contato com a Bauhaus e a fotógrafa Grete Stern, com quem veio a se casar. Em 1935, o casal promoveu a primeira exposição de fotografia moderna na Argentina.
Antes tarde do que nunca, a feliz chegada do livro de estréia do poeta argentino, como primeiro título dele publicado no Brasil, talvez sinalize como ponto de partida para uma possível reedição de sua obra, para o deleite dos leitores brasileiros.
Para ler no bonde, no ônibus, no metrô, no taxi ou no avião.

Trecho:
“A cidade imita um papelão uma cidade de pórfiro. Caravanas de montanhas acampam nos arredores. O Pão de Açúcar basta para adoçar a baía inteira o Pão de Açúcar e seu teleférico que há de perder o equilíbrio por não usar uma sombrinha de papel (...)”.


Serviço: 20 Poemas Para Ler no Bonde. Autor: Olivério Girondo. Tradução: Fabrício Corsaletti e Samuel Titan Jr. Editora 34. 112 páginas. Fotografias de Horácio Coppola.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Vladímir Sorókin - Dostoiévski-trip




Barato da Literatura Quando Vício
por César Alves

Os amantes da literatura já devem ter experimentado a sensação de que o hábito de ler e pesquisar certos autores e obras, muitas vezes, se aproxima do vício. Descobrir um autor e sentir a necessidade de ler e reler toda a obra mais de uma vez é quase como encontrar aquela fórmula perfeita, lícita ou não, para os males da existência – com o perdão da filosofia barata. Para os que sofrem de tal dependência, a livraria, biblioteca ou estante de livros pessoal é feito farmácia, o sebo, uma boca de fumo, onde encontra obras não-ilícitas, mas tão raras que são como se proibidas, depois de anos fora das prateleiras. O atendente da livraria, seu farmacêutico; o alfarrabista, seu traficante ou dealer. Existem, inclusive, aqueles que despertam a curiosidade e, quando finalmente experimentamos, não bate ou dá barato! Livros feito placebos; autores que são feito cocaína batizada ou “fumo palha”.
Assim como o viciado em drogas, o dependente do verso e da prosa, mesmo percebendo o mal que o mergulho no universo de certos autores lhe causa, sente o desejo irresistível de ir além. Não havendo clínica de reabilitação, nem um programa dos sete passos para retroceder ao Paraíso da Ignorância, o leitor segue em busca de novas doses de psicotrópicos filosóficos, estimulantes existenciais, misturando doses de tramas, personagens, ficção, realismo, fantasia e fantástico, com formas narrativas, verbais, experimentos estético-textuais, num Breaking Bad químico-literário que só acaba com a inevitável overdose das letras, num quarto solitário ou laboratório clandestino de meta-anfetaletras.
Pedindo perdão pelo enorme nariz de cera acima – entenda como exemplo de como bate o barato das letras no leitor que também escreve, antes que eu fuja do tema, vamos logo ao que interessa.
Se toda aquela minha conversa fiada que abre o texto tem algum sentido, não é exagero dizer que, para alguns leitores, obras e autores, títulos e nomes escritos nas bordas dos livros, dispostos nas estantes, são como uma variedade de fármacos e substâncias, nas prateleiras de uma drogaria ou nas mãos de um traficante dos lados selvagens da paisagem urbana.
Tal analogia pode ser o que baliza a trama de Dostoiévski-Trip, peça de um único ato, escrita por um dos mais celebrados nomes da literatura contemporânea russa, Vladímir Sorókin, e publicado recentemente no Brasil pela Editora 34.
Com tradução e posfácio de Arlete Cavaliere, a obra é ótima introdução ao universo de Sorókin.
Protagonizado por sete personagens – cujos nomes não sabemos, assim como o lugar onde a historia se passa – que aguardam a chegada de um misterioso fornecedor, o texto abre com os diálogos inevitáveis que a impaciência costuma impor aos desconhecidos. Não demora e o leitor vai sacar que todos ali são como o personagem de uma velha canção do Velvet Underground, e estão waiting for their man. Sim, todos junkies! Viciados na droga da literatura. O traficante que eles esperam, negocia uma variedade de substâncias ilícitas que costuma trazer em uma maleta. São cápsulas com doses de William Faulkner, Franz Kafka, Tolstoi, Gogól, Celiné, Sartre e o que mais o cliente precisar.
Sim, a citação é intencional, os personagens estão a procura de um autor ou Sete Viciados à Procura de um Autor – novamente, pedindo perdão pelo trocadilho infame.
Mas essa é apenas a primeira das muitas sacadas interessantes e cômicas do livro. Como viciados que esperam o fornecedor que está atrasado e tentam evitar pensar na síndrome de abstinência, eles conversam para passar o tempo e evitar pensar no pior cenário: o de que ele não apareça. Como todo viciado, sem a substância de seu vício, o assunto não é outro senão as drogas, suas experiências com ela e seus efeitos.
São justamente os diálogos entre os cinco homens e as duas mulheres e suas histórias e experiências com substâncias de muitos dos nomes mais celebrados da literatura universal que compõem a primeira parte da narrativa, que empolga, envolve e surpreende o leitor, principalmente com a chegada do negociante que os personagens aguardam. Como sempre, em sua valise o homem tem tudo, mas sugere aos clientes uma novidade: um novo produto de nome Dostoiévski!
Vou parar por aqui para não estragar o barato da viagem, mas a experiência lisérgica, em que os personagens são transportados para uma passagem conhecida de O Idiota, que culmina em uma terrível bad-trip é fantástica.
Carregada de humor, sarcasmo, violência, pornografia e escatologia, a obra de Sorókin não é o tipo de narcótico para estômagos fracos, é sempre bom avisar. Opositor assumido de Putin, Vladímir Sorókin surgiu na cena underground moscovita dos anos oitenta. Mas, embora reconhecido mundialmente desde 1985, quando seu romance A Fila foi publicado na França, o autor foi censurado em seu país e seu primeiro livro na terra pátria só saiu em 1992, uma coletânea de Contos Escolhidos.
Entre seus diversos romances e peças, merecem destaque O Dia do Opríchnik (2006), a trilogia Gelo (2002), O Caminho de Bro (2004) e 23000 (2005).

Serviço: Dostoiévski-Trip; Autor: Vladímir Sorókin; editora: Editora 34