terça-feira, 10 de abril de 2018

Símbolos que representam a si mesmos – Roy Wagner





Símbolos que representam a si mesmos – Roy Wagner

Roy Wagner destrincha e importância dos símbolos e seu papel na construção e desenvolvimento da cultura em Símbolos que representam a si mesmos, lançamento da editora Unesp.
Por César Alves.

Professor de antropologia na Universidade de Virginia, Roy Wagner é autor daquele que é tido como um dos mais importantes títulos da antropologia contemporânea, não só por sua importância histórica, como também por sua relevância ainda hoje, A Invenção da Cultura.
Publicado em 1975, no livro o autor trazia à luz o argumento de que a cultura surge da dialética entre o individual e o mundo social. Sua análise tinha como base as relações entre invenção e convenção, inovação e controle e significado e contexto, insistindo na importância da criatividade e colocando a humanidade, como espécie inventora por natureza, no coração do processo que dá origem à cultura.
Anos depois, Roy Wagner retomaria o argumento de a Invenção da Cultura, em Símbolos que Representam a si mesmos, que acaba de chegar às livrarias brasileiras pela Editora Unesp. Tão importante quanto a obra que a precedeu, aqui Roy Wagner aborda a importância dos símbolos e seu papel na criação da cultura.
Fazendo uso de exemplos tirados de sua relação pessoal com os povos Daribí, da Guinéa, e também da cultura ocidental, Wagner aborda a questão da criação de significado, examinando as qualidade não referenciais dos símbolos, do ponto de vista estético e das propriedades de sua forma, que autoriza aos símbolos comunicarem por si mesmos.
Em resumo, a obra aborda o sentido como poder organizador e constitutivo na vida cultural. Seu argumento é de que o fenômeno humano é uma ideia única e coerente, organizada mental, física e culturalmente em torno da forma de percepção que chamamos de “sentido”. Essa ideia possibilita uma perspectiva em desdobramento, simples e unificada, em vez do mosaico explanatório gerado pela colisão acidental entre um fenômeno genérico conhecido e disciplinas acadêmicas particulares.


Serviço:
Símbolos que representam a si mesmos
Autor: Roy Wagner
Tradução: Priscila Santos da Costa
Editora Unesp
197 páginas


sábado, 7 de abril de 2018

Hey That´s no Way to Say Goodbye





Hey That´s no Way to Say Goodbye
Por César Alves

 “Bird on a wire”, filme de Tony Palmer, registra a turnê de mesmo nome realizada por Leonard Cohen em 1972. Como é de conhecimento geral, Cohen já vinha de uma carreira internacional bem sucedida, como poeta e escritor.
Embora tenha participado de uma banda country ainda na adolescência, sua incursão na música aconteceu quase que por acidente, após Judy Collins gravar duas de suas composições. Sua participação no Newport Folk Festival de 1966, abriu os olhos do produtor John Hammond, que já tinha no currículo Aretha Franklin, Billie Holliday e Bob Dylan entre outros, e convidou o canadense para gravar um álbum. O resultado foi a obra – de lirismo e importância incontestáveis – “Songs of Leonard Cohen” de 1968. Com os discos, vêm também as apresentações ao vivo e turnês. É ai que a coisa se complica. Como muitos de seus pares, Cohen também sofre da timidez característica da maioria dos gênios. O artista nunca escondeu seu desconforto diante de uma grande audiência.
É notório que Cohen sofre de depressão desde os nove anos. Idade que tinha na época do falecimento de seu pai. E isto, em parte, explica os grandes períodos de reclusão por que sua trajetória vez ou outra passou. É justamente esta faceta do artista que fica clara em um dos momentos mais tensos e também belos da turnê de 72. Cohen tenta em vão introduzir os primeiros acordes de uma de suas mais lindas canções “Bird on a wire”, mas é sempre interrompido pelos aplausos e gritos de reverência da platéia. Ele chega a pedir que as pessoas não aplaudam, mas levantem as mãos para demonstrar que reconhecem e gostam da música, mas é em vão.
Extremamente constrangido e irritado, ele se levanta e abandona o palco quase lembrando momentos de nosso João Gilberto. Nos bastidores, os organizadores e parte de seu entourage tenta convencê-lo a voltar e obtêm do artista respostas como: “...eu não posso”, “...não consigo mais fazer isto”. Fica claro que não se trata de “frescura” de artista, mas sim do estranhamento natural de quem não se sente parte daquilo. A platéia, então, começa a entoar o cântico “hevenu shalom alechem”.
É ai que a poesia se manifesta como que arquitetada pelo acaso. Está no sorriso constrangido e na timidez quase infantil de Cohen – na época um garoto de quase quarenta anos –, está naqueles quatro ou cinco integrantes da platéia que se esquecem do motivo da confusão e arriscam aplausos também tímidos e também no silêncio do público quando o artista volta ao palco para tocar “Hey, that´s no way to say goodbye”, quase como um pedido de desculpas. Mas está, principalmente, no olhar da garota que olha hipnotizada para o palco. Estaria ela pensando num jeito de dizer adeus a alguém? Acho que não existe uma maneira correta para se dizer adeus. Principalmente, quando ainda não queremos partir...


(César Alves, 24 de Maio de 2010)

terça-feira, 3 de abril de 2018

Bob Dylan e Greil Marcus




Bob Dylan e Greil Marcus

Menos disponível nas prateleiras brasileiras do que sua prosa merece, Greil Marcus se inscreve entre os cronistas do universo musical predileto deste que vos escreve.
Por César Alves

Nascido em 1945, Greil Marcus presenciou – às vezes in loco – momentos que redefiniram a musica contemporânea, trabalhando para veículos como Rolling Stone, Creem e Village Voice. Alguns de seus livros, como “Mystery train” (1975) são considerados revolucionários na forma de se fazer crítica de rock. Marcus não acredita no hype e, quando segue uma pauta, vai além do objeto estudado considerando fenômenos sociais e seu contexto histórico.
Daí que seus textos podem citar heréticos medievais, o Dada (é sempre bom lembrar que não existe dadaísmo e, se você não concorda, você é Dada!) e os Situacionistas para chegar ao punk. Infelizmente no Brasil seus livros não são publicados com frequência. Que eu saiba, saiu por aqui apenas a coletânea “A última transmissão”, parte da ótima coleção iêiêiê da Conrad Books (que saudades dessa editora!), cuja reportagem sobre o novo punk (Pós-punk, se preferir), representado por bandas como o Gang of Four e o, ainda iniciante, selo Rough Trade é exemplo do que escrevi acima.
Agora chega às nossas livrarias “Like a Rolling Stone: Bob Dylan na Encruzilhada”, lançamento da Companhia das Letras. Aqui, Marcus debruça-se sobre a histórica gravação de mister Robert Zimmermann de “Like a Rolling Stone”, canção que abre o álbum histórico “Highway 61 Revisited”. O jornalista teve acesso às sessões de gravações do clássico, ocorridas em 15 de junho de 1965, período conturbado na carreira do artista. Dylan vinha de sua estréia com instrumentos elétricos, ocorrida no álbum anterior “Bringing it all back home”, e suas apresentações normalmente culminavam com gritos de “Judas!” vindo da platéia mais purista, que o havia alçado a posto de seu porta-voz – só não perguntaram antes se ele aceitava o cargo.
A verdade é que “Like a Rolling Stone” representa uma virada no conceito criativo do rock. A partir dali, o rock, que também havia influenciado Dylan para sua guinada elétrica, começa a abandonar os temas leves e pode-se dizer que só a partir dai ganha status de arte. Marcus, no entanto, não se fecha numa biografia da música, fazendo uma análise da importância de Dylan através dos artistas que influenciou e o fato de sua obra ainda ser relevante nos dias de hoje.
Curiosidade: Os teclados, que são uma das marcas da canção são tocados pelo lendário guitarrista Al Kooper. A verdade é que Kooper nunca havia tocado um instrumento de teclas antes – pelo menos é o que reza a lenda – e o que está ali é o guitarrista “tentando” fazê-lo.




sábado, 3 de março de 2018

Guido Crepax e A História de "O"





Pauline Reagé, segundo Crepax

Clássico da literatura erótica do século 20, A História de “O”, de Pauline Reagé – pseudônimo da jornalista francesa Anne Célline Desclós –, ganhou uma magistral adaptação para os quadrinhos sob a condução do maestro dos quadrinhos e criador de Valentina.
Por César Alves


Em meio à atual febre de tramas eróticas nas livrarias de todo o mundo, fenômeno ressuscitado pela série de livros Cinquenta Tons de Cinza, de E.L. James, é bom lembrar que sexo e arte sempre se deitaram na mesma cama. Seus segredos, no entanto, podem ter tido representação gráfica muito antes do aparecimento da imprensa. Papiro de Turim, documento descoberto em 1822, mostra desenhos feitos pelos egípcios de suas atividades sexuais, talvez seja a prova de que o gosto pelo erotismo vem muito antes de Gutenberg criar a primeira impressora no século 14 e tornar, algum tempo depois, a literatura acessível e os “livros proibidos” virarem tão populares quanto a Bíblia – muitos estudiosos consideram o documento egípcio “a primeira revista erótica da história”.
Artista gráfico e autor das mais originais histórias em quadrinhos, Guido Crepax entendeu o recado. Com as aventuras de sua personagem Valentina, criada em 1965 para a revista Linus, Crepax se tornou o mestre do erotismo gráfico e um dos artífices do movimento de emancipação feminina no universo da Cultura pop. Graças a seu traço inconfundível, argumentação que, mais que o erotismo, flerta com a filosofia e o diálogo entre o onírico e o psicológico, sem abrir mão do experimentalismo no formato narrativo e visual, é também considerado um dos responsáveis por elevar os quadrinhos ao status de arte.
Agora, sua obra começa a retornar às livrarias brasileiras, mais uma vez pela L&PM Editores – que lançou vários livros seus na década de 1980. O primeiro relançamento é o clássico A História de “O”, uma das poucas obras do autor que, contraditoriamente, não traz Valentina como protagonista. A editora promete ainda relançar outros títulos, no total de oito volumes programados.
O fato de não ter Valentina não representa exatamente uma decepção aos leitores – nem mesmo para quem adora a fotógrafa que usa botas de couro e espartilho e se tornou ícone da emancipação feminina na década de 1960. A História de “O” é baseada na obra publicada em 1953, na França, escrita por Pauline Reagé (um dos pseudônimos da escritora e jornalista francesa Anne Célline Desclos, que também assinava Dominic Áury). Na trama, a personagem “O” é uma mulher independente, levada para um castelo por seu amante, René, onde as mulheres eram ensinadas a ser submissas sexualmente aos homens. Apesar de aprender a ser escrava sexual do namorado, “O” é consciente de seu poder sobre os homens e, assim, coloca prazer e submissão lado a lado para alcançar o prazer. Nada mais polêmico e escandaloso.

Ainda que o roteiro não seja de Crepax, a adaptação que ele próprio fez traz todas as características que marcaram a sua obra: erotismo explícito e sem pudores, como no texto original, paixão por desenhar espartilhos e bondages – um deleite para voyeuristas, traço inconfundível e narrativa que exige mais de uma leitura, em que imagem, composição e distribuição dos quadros vão além dos balões de diálogos. A apropriação da trama por Crepax, embora fiel à narrativa original, faz da novela gráfica uma obra diferenciada – é bom ler as duas versões. Essa HQ revela o gosto de Crepax por adaptações literárias, o que fez desde o início de sua carreira. Sua primeira história, aliás, foi uma adaptação de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, que desenhou aos 12 anos.
Filho do primeiro violoncelista do Teatro Scala, de Milão, Itália, Crepax nasceu em 1933. Estudou arquitetura pela Universidade de Milão e, ao mesmo tempo, atuou como ilustrador em trabalhos de publicidade. Produziu capas de revistas e livros, pôsteres e ilustrações para capas de LPs – que lhe deu reputação no meio musical. Até decidir-se pelas histórias em quadrinhos, transitou por assuntos variados, mas seu maior mote foi o erotismo.

“Valentina sou eu!”
Valentina, sua mais famosa criação, veio a se tornar um dos ícones culturais do século 20, chegando a ser considerada a primeira mulher emancipada made in Italy. Assim como – dentro da Cultura Pop e o universo dos quadrinhos – a Mulher Maravilha está para os movimentos de sufrágio e liberação feminina da primeira metade do último século, Valentina está para a mulher moderna que retoma com força os ideais feministas tanto quanto o foi nos anos da contracultura e da revolução sexual, época em que foi criada. Protagonista e regente de seu destino, livre das amarras sociais e comportamentais, pronta a explorar seus desejos sem culpa e abrir caminho à frente de sua história, sem se preocupar com a opinião de uma sociedade falocêntrica ou pedir licença a um homem, surgiu como personagem secundária no terceiro episódio das aventuras do herói Neutron e tomou o lugar do protagonista logo nas primeiras aparições.
Morto em 2003, além de Valentina, Crepax criou outras heroínas, com destaque para Bianca e Anita, publicadas no Brasil pela L&PM, além de adaptar obras de Edgar Allan Poe e Marquês de Sade, entre outros. Sobre sua obra, o cineasta francês Alain Resnais disse: “Seguidamente, é necessário tomar uma página de Crepax e ler várias vezes para captar certos detalhes”. Para novos leitores, A História de “O” é um excelente ponto de partida.

(Originalmente publicado na extinta Revista Brasileiros)


segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Outros Carnavais



Outros Carnavais

Aproveitando as festividades de Momo, a Fundação Unesp lança três grandes obras sobre o tema em promoção imperdível.
Por César Alves

Antecipando-se às festividades carnavalescas, a Editora Unesp começa 2018 tendo como abre-alas colocando em promoção títulos de seu imenso catálogo que abordam diferentes aspectos de um tema inesgotável e muito caro à maioria dos brasileiros: o Carnaval.
Assim como o futebol, a celebração anual que vai da sexta-feira gorda à quarta-feira de cinzas não nasceu no Brasil, mas acabou por ser incorporada ao imaginário de todos os povos e nações do mundo como um de nossos mais famosos cartões de visitas.

Os carnavais de rua e dos clubes na cidade de São Paulo: metamorfoses de uma festa (1923-1938) –
O primeiro deles, Os carnavais de rua e dos clubes na cidade de São Paulo: metamorfoses de uma festa (1923-1938), escrito pela professora de História do Brasil, nos cursos de graduação e pós-graduação da Fundação Unesp, Zélia Lopes da Silva, debruça-se sobre a história do Carnaval de Rua na cidade de São Paulo, bem como os Blocos e Clubes, que marcaram os carnavais das décadas de 1920 e 1930. Fruto de uma pesquisa aprofundada em torno dos bailes, cordões e blocos de rua que puxavam as festividades pelas ruas do Centro de São Paulo e arredores, a autora teve como ponto de partida descobrir o que motivava os foliões do período, quando a metrópole ainda era conhecida como a capital do trabalho, a cidade que não para e quetais, a desatar a gravata, dar uma pausa no trabalho e trocar a carranca séria por uma máscara ou pintura de Arlequim, Pierrot ou Colombina. Aqui, a professora Zélia disseca as origens e significados das brincadeiras, festejos e cânticos mais populares durante as duas décadas, fornecendo um rico registro de um carnaval muito diferente de como hoje o conhecemos.

Festa de negro em devoção de branco: do Carnaval na procissão ao teatro no círio – Em se tratando de nossa fortuna musical folclórica e popular, poucos pesquisadores e autores fizeram tanto pela manutenção de sua memória quanto José Ramos Tinhorão. Historiador, pesquisador, colecionador e apaixonado como poucos ao objeto de sua pesquisa, Tinhorão é autor de dezenas de títulos que abordam os mais diversos aspectos e características de nossas raízes rítmicas, sonoras e líricas e sua construção, dentro do contexto histórico de formação de um patrimônio cultural ao mesmo tempo em que também tomava forma um país.
É exatamente neste contexto que se enquadra Festa de negro em devoção de branco. Resultado de um minucioso e aprofundado trabalho de pesquisa, o autor parte em busca das origens de nossa identidade cultural, a partir do encontro da cultura africana com a Lusitana. O resultado é um belo livro, rico em dados históricos, uma jornada além mar em busca do papel que o encontro e estranhamento entre duas culturas distintas, africanos e portugueses, tiveram na invenção de uma nova e diversificada identidade cultural que viria a ser brasileira.

O dia em que adiaram o Carnaval – Trazendo como subtítulo Política externa e a construção do Brasil, O Dia em que adiaram o Carnaval, do historiador Luís Claudio Gomes Villafane Gomes, usa como gancho uma curiosidade carnavalesca do início do século vinte para falar de relações exteriores e a formação de nossa formação como país.  Poucos sabem, mas, por conta do luto pela morte do Barão do Rio Branco, em 1912, quase cancelaram as folias de fevereiro. Falecido no dia 10 daquele mês, tido como herói nacional e maestro da formatação das fronteiras brasileiras, sua partida foi motivo do decreto de luto oficial, impedindo a realização das festividades. O impasse quanto ao cancelamento ou não do Carnaval daquele ano foi resolvido com uma manobra de agenda: O Carnaval aconteceria, mas no mês de abril e não em fevereiro.
O livro parte daí para destrinchar o mito do Barão de Rio Branco como artífice na criação de nossa nacionalidade e na construção de um conceito de Brasil como jovem nação, pós-independência.

Serviço:
Os carnavais de rua e dos clubes na cidade de São Paulo: metamorfoses de uma festa (1923-1938)
Autora: Zélia Lopes da Silva
268 páginas

Festa de negro em devoção de branco: do Carnaval na procissão ao teatro no círio
Festa de negro
Autor: José Ramos Tinhorão
160 páginas

O dia em que adiaram o Carnaval: política externa e a construção do Brasil
Autor: Luís Cláudio Villafañe G. Santos
280 páginas
Editora Unesp


sábado, 9 de dezembro de 2017

Uma Jornada Pelas Distopias Literárias



Admirável Mundo Hoje

Depois de anos fora de catálogo no Brasil, obra mais conhecida de Zamiatín – que teria influenciado Huxley, Orwell e Ray Bradbury – ganha não uma, mas duas novas edições.
Por César Alves

Reflexo do espanto e admiração da espécie humana diante da velocidade com que os avanços técnicos se apresentavam desde o advento da Revolução Industrial e seu impacto no modo de vida e comportamento das civilizações ocidentais – somados ao uso da tecnologia bélica e propagandística no contexto político, não só por regimes ditatoriais, mas também com grande desenvoltura por governos democráticos, para o controle de corações e mentes e demarcações de territórios –, as Distopias foram vistas durante muito tempo como gênero característico do século vinte e pareciam ter perdido a força com o suposto fim da Guerra Fria.
Não é de se admirar, no entanto, que, quando termos como pós-verdade, pós-democracia e pós-humanidade, entre outros, passam a pautar o debate político e social no que diz respeito à compreensão dos rumos da sociedade contemporânea, com direito a artigos e discussões que vão além do universo acadêmico, fazendo-se parte do vocabulário cotidiano, a chamada literatura distópica volte a despertar interesse. De livros e filmes voltados ao público adolescente, passando por séries de tevê, até novas edições dos grandes clássicos do gênero, as sombras das velhas e novas distopias pairam sobre a cultura – pop, de massa e também acadêmica – do século 21, como elemento simbólico essencial para analisar os dias que correm ou advertência para os dias que estão por vir. Prova disso foi o alto número de vendas e empréstimos nas bibliotecas da obra 1984, de George Orwell, registrado nos Estados Unidos, logo após a confirmação da vitória de Donald Trump.
Ao amigo leitor (a), este pobre escriba pede perdão pela longa introdução, que, no entanto, se faz necessária, tendo em vista que este artigo se dedica a fazer um breve passeio pelas principais Distopias literárias do século 20, aproveitando a volta de Nós – para muitos o texto inaugural do gênero distopico na ficção contemporânea –, escrita pelo russo Zamiátin que, após anos fora de catálogo, acaba de ganhar não uma, mas duas novas edições. Ambas traduzidas diretamente do russo.
Antes de entrarmos no tema, no entanto, este que vos escreve pede licença para mais um aparte para tentar descrever o conceito de Utopia. Já que, para os não familiarizados, pode ser difícil compreender sua contraparte sombria, verdadeiro tema de nosso texto.

Bem vindo a Lugar Nenhum ou Paraísos Imaginários para preencher o vazio de um suposto Paraíso Perdido – Palavra de origem grega, significando algo como “lugar que não existe” ou “lugar nenhum” – topos = lugar; u-topos = não lugar –, Utopia quase sempre se refere aos lugares imaginários representando sociedades ideais, conduzidas pela razão, direitos e deveres igualitários, tanto para seus cidadãos quanto para aqueles que os governam, conduzindo a um verdadeiro Paraíso terreno, livre da fome, da ganância, da guerra e os demais males que contaminam e apodrecem a civilização como a conhecemos. Clássicos como A República de Platão; A Cidade do Sol de Tomaso Campanella e Nova Atlantis de Francis Bacon são exemplos dos mais famosos, mas o termo remete diretamente à obra de Thomas Morus, Sobre o Melhor Estado de uma República que Existe na Nova Ilha Utopia.
Idealizadas e sonhadas por pensadores humanistas indignados com as desigualdades e injustiças da Idade Média e impulsionadas por racionalistas e humanistas a partir do Renascimento, as narrativas utópicas foram populares até meados do século dezenove e se tornaram as bases para a idealização das comunidades igualitárias propostas por pensadores como Charles Fourier, identificadas como “Socialismo Utópico” por Karl Marx.

Sobre a Necrópole da Liberdade, a Nova Ordem ergue sua Cidade - Se as Utopias representavam o sonho de um futuro dourado para a evolução de nossa espécie como sociedade, o aguardado raiar das luzes sobre o longo domínio das trevas históricas, revelando uma fé quase ingênua na inclinação dos homens para o bem, o Reinado do Terror que se seguiu à Revolução Francesa, as crueldades perpetradas pelas nações esclarecidas, massacrando os povos que prometiam salvar da selvageria, culminando em barbárie colonial e neo-colonialista, mas, principalmente, com a chegada do século vinte, que trouxe consigo duas guerras mundiais, seus genocídios sistemáticos e morte em escala industrial, representaram um choque de realidade e a confirmação de que as sombras que cobriam o coração humano eram ainda mais densas do que o pior dos pessimistas poderia imaginar.
O resultado no imaginário literário ocidental foi o surgimento da contra-utopia ou Utopia negativa, chamada corretamente Distopia. Aqui, o sonho das sociedades fraternas e igualitárias dá lugar ao pesadelo do controle estatal de sociedades formatadas e automatizadas.
Em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, o autor de As Portas da Percepção, Contraponto e A Ilha (que também cabe no gênero distopico) concebe um mundo organizado através de castas, onde as pessoas são concebidas em laboratórios, através da engenharia genética, já programadas para exercer as funções que lhe cabem e o lugar que devem ocupar dentro do sistema organizacional que rege a sociedade. Aqui o controle é exercido através de uma droga, o soma, espécie de fármaco tranqüilizante de efeito social e político que inibe pensamentos e questionamentos contrários ao Estado, bloqueando as idéias perigosas com a falsa sensação de felicidade, o que é reforçado com o incentivo, quase obrigatório, do exercício pleno do hedonismo programado. (Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley – tradução: Lino Vallandro – Globo Livros – 312 páginas)
Talvez a mais famosa das Distopias, 1984 foi escrito por George Orwell e publicado em 1948, pouco depois do término da segunda grande guerra. Fortemente influenciado pelos horrores revelados durante e ao final do conflito, em face às nuvens carregadas que se formavam no horizonte, com a inauguração da era atômica e o início das disputas entre os vitoriosos por espólios de guerra e territórios dos derrotados, que culminariam na pesada tormenta que ganharia o nome de Guerra Fria, a distopia de Orwell ganhou tanta notoriedade que termos como Big Brother e novilíngua, entre outros, passaram ao vocabulário ocidental como expressões de significado reconhecido mesmo por quem nunca leu o livro.

Descrevendo uma sociedade sob o comando do Grande Irmão – espécie de “Pai da Pátria”, cuja mão pesada educa, pune e controla, e olhos que vigiam, através de telões espalhados nos prédios, repartições, fábricas e até mesmo nos dormitórios dos cidadãos –, que comanda através de técnicas baseadas na ordem e na aniquilação do individuo, tendo como instrumentos a propaganda, o controle da mídia e da própria história, como nos mostra o personagem central, cujo trabalho burocrático consiste em pesquisar e reescrever matérias e trechos de livros para que não contradigam a versão do regime.
O autor costumava dizer que a ideia teria surgido de sua experiência e do trauma histórico causado pela ameaça fascista de Hitler e Mussolini e a maneira como os déspotas conseguiram levar adiante sua loucura e conquistar a adesão de seus compatriotas que abraçaram, com raros focos de resistência, sua insanidade. Orwell, que até o fim de seus dias considerava-se um socialista, no entanto, não limita sua crítica aos regimes de direita e reconhecia o quanto havia em sua distopia (e no próprio Grande Irmão) da União Soviética sob o comando de Stalin. Portanto, sua obra era um alerta contra os perigos dos regimes ditatoriais e sua propaganda doutrinária, independente do viés ideológico.
Ou seja, 1984 é fruto tanto de Auschwitz e do Holocausto fascista quanto o é dos Gulags e campos de trabalhos forçados da Rússia comunista de Stalin. (1984 – George Orwell – Companhia das Letras – 416 páginas)

Entretenha-nos até a morte - Não só por ser a distopia predileta deste que vos escreve, mas, principalmente, por ser aquela que mais se aproxima dos dias que correm, Fahrenheit 451 não poderia ficar de fora. Aqui não estamos falando de uma sociedade em um futuro distante controlada por um regime totalitário, mas sim de um lugar em um tempo e espaço imaginário que pode muito bem ser comparado com o nosso presente. Em Fahreinheit 451 o condicionamento social é feito através do entretenimento barato, da indústria cultural e de medicamentos.
Concebida pelo genial Ray Bradbury, o ponto principal dá obra já nos é dado no excelente título: 451 graus fahrenheit é a temperatura de combustão do papel. Num mundo onde as pessoas são condicionadas a evitar ideias que as conduzam ao questionamento de seu modo de vida e seu papel social como indivíduos, os livros foram banidos como perigoso instrumento desestabilizador social. Todos vivem sob o efeito de uma felicidade anestésica, mantida através de equipamentos audiovisuais, espécie de monitores televisivos que ocupam uma parede inteira, transmitindo novelas e shows de variedades exibidos 24 horas por dia, em tempo real, e com os quais os telespectadores podem interagir – única forma de interatividade aceitável, aliás, já que mesmo os encontros com amigos e familiares são dedicados a falar sobre a grade de programação e seu “conteúdo” –, o que é reforçado com doses diárias de um poderoso fármaco. As casas são à prova de fogo e, não havendo mais a necessidade de um corpo de bombeiros, aos antigos combatentes de incêndios foi dada uma nova missão: incinerar livros e caçar aqueles que cometem o crime de esconder bibliotecas em suas casas.
Ao contrário da maioria das tramas do gênero, em Fahreinheit 451 as bases estruturais da sociedade não foram criadas após uma hecatombe nuclear, uma guerra ou a tomada do poder por um sistema ditatorial. Como o autor deixa claro em algumas das passagens mais marcantes do livro, não se trata de uma sociedade iletrada e analfabeta. As pessoas sabem ler, mas o conhecimento da leitura serve apenas para interpretar os manuais de funcionamento dos equipamentos e gadgets que os mantém distraídos e as bulas dos remédios que garantem sua anestesia comportamental. Logo, a opção pelo conformismo e a recusa aos livros foram tomadas pelas próprias pessoas. O que é mais assustador. (Fahrenheit 451 – Ray Bradbury – Globo Livros – 215 páginas)

Se não a Distopia das Distopias, Nós, do russo Ievgenin Zamiatín, merece lugar de destaque como a Distopia que teria inspirado todas as tramas distópicas que a seguiram. Ou, pelo menos, teria tido forte influência sobre as obras mais relevantes, dentre aquelas que ousaram imaginar o perigo de Utopias negativas, como um alerta para o que pode nos aguardar na esquina de um futuro não muito distante. É inegável sua influência sobre as obras comentadas anteriormente e outras A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, que só não foi descrita aqui por ter sido alvo de outro texto, assinado pelo amigo aqui, que pode ser lido no link: http://orebitedoverbo.blogspot.com.br/2014/01/laranja-mecanica-distopia-horrorshow-de.html
Narrado em primeira pessoa na forma de um diário por D-503, operário que trabalha na construção de uma espaçonave projetada por engenheiros do governo para a missão de espalhar para o resto do universo o evangelho do Estado Único, Nós descreve uma sociedade controlada através da eliminação do conceito de liberdade e da noção de indivíduo, além da criminalização da imaginação.
Como o próprio nome do personagem deixa claro, na realidade imaginada por Zamiatin o conceito de indivíduo foi completamente apagado, em prol de uma existência coletiva. Aqui, as pessoas são identificadas por números e letras, como setores de uma linha de montagem ou engrenagens de um motor. A população mundial foi reduzida para 10 milhões de habitantes que vivem em casas padronizadas, com paredes de vidros transparentes da cor verde, de maneira a coibir desvios comportamentais ou qualquer ato fora do padrão preestabelecido.
Com suas vidas expostas, todos vigiam e são vigiados, tornando-se também responsáveis pela manutenção da existência de paz e felicidade, alcançadas depois da revolução que eliminou e criminalizou a liberdade. Um preço pequeno, segundo eles, a ser pago pela segurança e felicidade perpétuas, já que a liberdade engendra a violência e alimenta pensamentos inadequados, que podem envenenar a sociedade com o mal da solidão, da tristeza e – ainda mais perigoso – da imaginação.
Para compensar, todos tem direito a uma hora de isolamento para momentos de intimidades sexuais, desde que na data, horário e com o parceiro autorizados, conforme consta no cartão rosa, emitido por burocratas do governos e sem o qual qualquer relação íntima ou ato de socialização clandestina constitui crime mortal. D-503 parece satisfeito com sua condição, chegando a exaltar as benesses do Estado Único, mas é justamente depois de um destes encontros que acontece a grande reviravolta e suas certezas são abaladas. O tremor ideológico e emocional é causado por I-330, uma mulher misteriosa, com hábitos e idéias que, a princípio, D-503 condena, embora não consiga se afastar dela. Logo o personagem é apresentado a um mundo de emoções e sentimentos como o sonho, a fantasia e o amor, proibidos e condenáveis com a morte.
Nascido em Moscou, em 1884, Ievguenin Zamiátin formou-se em engenharia naval e trabalhou como supervisor na construção de navios russos. Apoiou Revolução de Outubro de 1917, mesmo ano em que passa a dedicar-se à literatura em tempo integral. Ministra aulas na recém-fundada Casa das Artes de Petrogrado e é eleito presidente da União Pan-Russa de Escritores. Em 1919 é preso por suspeita de associação ao partido dos Socialistas Revolucionários. Nos anos seguintes termina a redação de Nós, sua obra mais conhecida, mas o romance não recebe autorização de publicação no país. O livro acaba sendo publicado numa tradução para o inglês, nos EUA, em 1924 – na Rússia, a obra só seria publicada em 1988.
 O livro já ganhou diversas edições no Brasil – uma delas com o título de O Muro Verde –, mas estava fora de catálogo há anos. O que dá ainda mais motivos para celebrar a chegada de duas novas traduções em português. Ambas feitas diretamente do russo.

A edição da Aleph, traduzida diretamente do russo por Gabriela Soares chama atenção por seu belo acabamento gráfico e por conter extras de respeito, como uma carta do próprio autor a Stalin, na qual solicitava ao ditador autorização para deixar seu país, já que sua permanência ali não fazia sentido, uma vez que seus livros não eram publicados e não podia trabalhar; e também um artigo assinado por George Orwell no qual o autor de A Revolução dos Bichos estabelece conexões entre a obra de Zamiatin e o Admirável Mundo Novo de Huxley – concluindo que o primeiro, certamente, influenciou o segundo, o que também pode ser dito a respeito de 1984, publicado anos depois. A edição da Editora 34 faz parte da coleção Narrativas da Revolução (que será alvo de um próximo artigo aqui). Com tradução de Francisco Araújo, também traz o excelente prefácio de Cássio de Oliveira que ajuda o leitor a entender a importância da obra no contexto em que foi escrita e seu valor ainda para nossos dias. Embora se trate do mesmo texto, ambas as edições possuem qualidades e complementos que as distinguem e – em caso de dúvida e condições financeiras – recomendo aos amigos ficarem com as duas.


Serviço:

Nós
Autor: Ievguêni Zamiátin

Tradução: Francisco de Araújo
Editora 34
288 páginas

Tradução: Gabriela Soares
Editora Aleph
344 páginas

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

São Paulo na ótica do Flaneur – O Coração da Pauliceia Ainda Bate



São Paulo na ótica do Flaneur

Reunindo artigos inéditos e outros publicados em jornais, O Coração da Paulicéia ainda bate revela o olhar apaixonado de José de Souza Martins sobre a história, personagens, gentes e ruas da cidade de São Paulo.
Por César Alves

Ocupante da cadeira de número 22 na Academia Paulista de Letras, doutor em Sociologia pela USP e professor aposentado da mesma universidade, o escritor José de Souza Martins é também um mestre na arte do flâneur.
Palavra de origem francesa, derivada de flâner que pode ser traduzida para o português como “passear”, embora o verbo passear seja incapaz de resumir todas as particularidades e características do termo francês, objeto de estudo de Walter Benjamin e, antes dele, Charles Baudelaire. Correndo o risco de ser simplista demais em minha tentativa de explicação, o passeio do flâneur vai muito além do vagar pela cidade, aproximando-se do ato de se deixar perder por suas ruas com o olhar atento, entre o deslumbre, o encantamento e o desejo de decifrar seus mistérios. É este o olhar que se percebe durante a leitura de O coração da paulicéia ainda bate, obra que reúne crônicas inéditas e outras publicadas ao longo de nove anos na coluna assinada pelo autor no caderno Metrópole do jornal O Estado de São Paulo.
Atento aos detalhes e nuances da maior cidade da América do Sul, o professor José de Souza Martins traduz na sua prosa de excelente cronista, instantâneos captados pela ótica do poeta que busca inspiração na arquitetura, nas ruas, nas personagens, nas questões sociológicas e, principalmente, na história. “Na praça em frente, o largo da Liberdade, existia o pelourinho, símbolo da autonomia municipal e da justiça, destinado ao suplício de escravos condenados ao castigo público. Por isso o bairro foi conhecido como o bairro do quebra-bunda, referência aos cativos que dali saiam descadeirados(...). Dizia-se que São Paulo era uma cidade esquisita. A rua Direita era torta, o cemitério ficava na Consolação e a forca na Liberdade”.
Leitor das ruas e fotógrafo do espírito urbano e sociológico, o autor deixa-se perder pelas ruas da metrópole em busca de seus infinitos mistérios, estampados nos contornos de casarões e prédios antigos e arranha-céus modernos; na arte que se espalha feito museu a céu aberto, muitas vezes, sem ser notada pelos que por ali apressadamente passam; nos olhos dos atores que juntos protagonizam o drama da São Paulo de nossos dias e também nos fantasmas daqueles que o protagonizaram no passado e, de alguma forma, por ali ainda vagam. Assim como o é a alma de sua musa, os textos de Martins passeiam por histórias que se confundem entre o cômico e do trágico, passando pelo primeiro carnaval, o de 1856; a triste história de Dona Yayá, rica órfã, declarada louca em 1919, aprisionada na própria casa por mais de 40 anos “até receber o habeas corpus tardio da morte”; e o assassinato, em 1906, de uma filha pelo pai, ex-governador, que se suicidou em seguida, para impedir-lhe o casamento incestuoso com o poeta Batista Cepelos também seu filho com uma ex-escrava, fato que beira a mais trágica das tragédias gregas.
Com prefácio do poeta Paulo Bonfim, a quem a obra é dedica, e ilustrado com mapas, propagandas e fotografias, O coração da Pauliceia ainda bate chega como uma das mais belas e interessantes obras dedicadas à cidade de São Paulo produzida nos últimos anos. Altamente recomendável.

Serviço:
O Coração da Pauliceia Ainda Bate
Autor: José de Souza Martins
Editora: Unesp e Imprensa Oficial

427 páginas