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quinta-feira, 5 de julho de 2018

A historia da revista Senhor



Bendita era a Senhor.

Periódico que mudou a cara de nosso jornalismo impresso, a revista Senhor está de volta em livros que contam sua trajetória e compilam alguns de seus melhores artigos organizados por Ruy Castro.
Por César Alves

Em 1959 o país ainda respirava os ares de modernidade insuflados pelo governo Juscelino Kubitschek. A construção de Brasília e o surgimento de movimentos estéticos como a Bossa Nova e o Cinema Novo, entre outros, davam a impressão de que um outro Brasil começava a nascer. Na esteira dessa nova nação, notava-se também a presença de um novo brasileiro. Maduro e mais sofisticado, ele se interessava por política, livros, cinema, música e viagens. Estava em sintonia com seu tempo e, portanto, carente de uma publicação brasileira que refletisse seus gostos e hábitos. Sócios da editora Delta-Larousse, Simão e Sérgio Waissman identificavam-se com este público e assumiram a missão de atender a essa reivindicação. 
Sua ideia era criar um veículo direcionado a profissionais liberais, com bom poder aquisitivo, que valorizasse o texto e a criatividade na produção gráfica e, ao mesmo tempo, funcionasse como um cartão de visitas de sua marca junto a seus clientes. Para assumir o posto de editor e redator-chefe, convidaram Nahum Sirotsky que trouxe consigo a equipe e o conceito estético editorial que colocariam as revistas brasileiras em pé de igualdade com o que de melhor era produzido na imprensa internacional. Com as águas de março que fecharam o verão daquele ano, chegou também às nossas bancas a primeira edição da revista Senhor – ou Sr. A Revista do Senhor, como era intitulada no início – destinada a atender justamente aos gostos deste novíssimo homem brasileiro e que acabou também por mudar a cara de nosso jornalismo cultural. Quase meio século desde sua derradeira edição, Senhor está de volta, agora em dois livros, com o lançamento de Uma Senhora Revista e O Melhor da Senhor.

Concebidos por Maria Amélia Mello e organizados por Ruy Castro, ambos merecem desde já figurar entre os mais gratificantes lançamentos do ano. Não só por atender a uma antiga reivindicação dos saudosistas do periódico, mas, principalmente, por disponibilizar para as novas gerações, alguns dos momentos mais brilhantes de nossa imprensa escrita e literatura. Em seus cinco anos de existência, passaram pela redação de Senhor, nomes como Paulo Francis, Carlos Scliar, Nahum Sirotsky, Jaguar, Luiz Lobo e Ivan Lessa, que formaram o núcleo criativo responsável pelo conceito estético e editorial que seriam sua marca até o fim. O time de colaboradores forma uma lista de notáveis que aqui ocuparia toda uma página, merecendo destaque Jorge Amado, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, Glauber Rocha, Darcy Ribeiro, Zuenir Ventura, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Luiz Carlos Maciel, Ferreira Gullar, Otto Lara Resende, Otto Maria Carpeaux, entre outros.
O primeiro volume, Uma Senhora Revista, dedica-se a contar a história da Senhor através daqueles que a fizeram. Os artigos são escritos pelos principais protagonistas da aventura editorial, em textos assinados por Naum Sirotsky, Paulo Francis, Luiz Lobo e Ivan Lessa. Como escreve Ruy Castro na introdução do livro, Senhor já nasce pronta. Desde o primeiro número a revista já dizia a que vinha. Assuntos mais sérios como economia e política ficavam a cargo da dupla Naum Sirotsky e Paulo Francis que também era responsável pela crítica cultural e literária e por selecionar os contos e novelas de autores nacionais e internacionais publicados mensalmente na Senhor. O design gráfico revolucionário, que acabou por angariar prêmios internacionais na época, vinha de Carlos Scliar. Os cartuns de Jaguar e o texto de Luiz Lobo imprimiam a dose de humor que se tornaria referencia em publicações futuras e característica evidente já na apresentação de sua primeira edição. 
Apesar de ser um veículo destinado ao público masculino, seu primeiro editorial era destinado às leitoras. Iniciava-se com um respeitoso “Minhas Senhoras” e dizia que, apesar de ser uma revista masculina, a Senhor era direcionada às mulheres, uma vez que eram elas na verdade quem compravam ou condenavam uma revista à morte. Em seu auge, devido ao número de leitores que se ofereciam para escrever na revista, partiu de Jaguar e Lessa o anúncio “O leitor também pode colaborar com a Senhor, comece escrevendo aqui:”. O “aqui” guiava o leitor para um cupom para adquirir uma assinatura da revista.
Bendita também pelo que tinha de maldita, a publicação fez história, valorizando a criatividade, o bom texto, a ousadia gráfica e contando com um time de bambas de nosso jornalismo e literatura. A seleção de reportagens, artigos, contos e reproduções de capas, anúncios e ensaios fotográficos realizada por Ruy Castro para O Melhor da Senhor, faz deste volume a cereja do bolo. Estão no livro as beldades, devidamente vestidas, mas, nem por isso, desprovidas do poder da sedução, que faziam a cabeça dos marmanjos, como Odete Lara linda e deliciosamente esparramada na beira da piscina. Otto Maria Carpeaux narra seus encontros com Franz Kafka. Em seu único diálogo com o autor de O Processo, Carpeux não teria compreendido a pronuncia do nome e a conversa teria transcorrido da seguinte forma: “KAUKA.” “Como é o nome?” “KAUKA!” “Muito prazer”. O leitor vai se deleitar com o brilhante artigo de Armando Nogueira em num clássico da crônica esportiva, intitulado Didi: O Homem Que Passa, e Glauber Rocha discorrendo sobre as ousadias cinematográficas de Luis Buñuel.

A literatura era um dos principais focos de Senhor que trouxe em suas páginas autores como Clarice Lispector, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, entre outros, em contos e novelas, alguns inéditos, como A Morte e A Morte de Quincas Berro D´Água, do criador de Gabriela, Tiêta e dos Capitães da Areia. Também foram traduzidos, exclusivamente para a revista, textos de Kafka, Truman Capote, Dorothy Parker e muitos outros, alguns destes autores sendo apresentados pela primeira vez ao leitor brasileiro.
No auge, a revista contava com 45 mil assinantes e média de 20 a 30 páginas de anúncios para cerca de 100 de editorial, chegando a ser difícil entender como um projeto editorial como este chegou ao fim. A derrocada da revista, no entanto, está mais ligada às incertezas políticas e econômicas que assolaram o país a partir da década de sessenta do que à má administração. A Senhor não sobreviveu para ver o período sombrio representado pelo golpe militar, ocorrido dois meses depois de seu último suspiro. Porém, não é errado dizer que a revista está na raiz de todo o jornalismo de resistência – em maior ou menor grau – representado pela imprensa alternativa surgida nos meses e anos subsequentes. Muitos de seus colaboradores estiveram por traz de títulos como O Pasquim, A Flor do Mal e outros. É possível detectar sua influência no melhor que nossa imprensa escrita produziu depois. O lançamento da Imprensa Oficial é, sem sombra de dúvida, certeza de leitura prazerosa e deleite visual, graças ao belo acabamento gráfico, reprodução de capas, fotos e anúncios publicitários da época. Aos colegas de profissão e estudantes da área, a obra representa aquisição obrigatória, tanto como fonte de pesquisa, como de inspiração. Nós, que tanto amamos este ofício – por vezes ingrato, mas sempre prazeroso –, oremos: Senhor, olhai por nós!


Serviço: O Melhor da Senhor – 412 páginas; Uma Senhora Revista – 108 páginas. Lançamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

(texto publicado originalmente na revista Brasileiros)

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Com a Palavra Luiz Gama - Imprensa Oficial






Orfeu negro

Nascido livre e levado à escravidão aos dez anos de idade, o lendário Luiz Gama encarna como poucos os ideais libertários do Brasil de fins do século XIX. Pouco citado em nossos livros, o “Vate Negro” retoma seu lugar na história em lançamentos que resgatam sua trajetória ímpar e obra que funde literatura, política e jornalismo.
Por César Alves


Os nomes dos que tem na luta pela liberdade a marca de sua existência deveriam figurar com destaque na história de qualquer nação soberana. Sendo assim é de estranhar que Luiz Gama seja tão pouco citado em nossos livros. Dono de uma biografia intensa e trajetória dedicada à defesa da igualdade de direitos e ao livre pensamento, o poeta, jornalista e advogado – autodidata em todas as áreas – merece figurar entre os principais artífices na construção de um novo Brasil. Multifacetado e tendo no abolicionismo e na derrubada da monarquia suas principais bandeiras, sua atuação no combate às arbitrariedades dos que detinham o poder político e financeiro no século XIX foi marcante nos mais diversos palcos. Vai da literatura, com a publicação de seu único livro, Primeiras trovas burlescas de Getulino; passa pela luta por uma imprensa livre, através de artigos corajosos nas redações de jornais oficiais e também de periódicos independentes; chegando à ação direta nos tribunais, como o advogado de argumentos imbatíveis pelos direitos dos humildes e injustiçados. Antes tarde do que nunca, o resgate de sua importância histórica tem ganhado forma nos últimos anos através de lançamentos como a reedição de Primeiras Trovas Burlescas pela Martins Fontes, uma série de ensaios e novas biografias. Passados 180 anos de seu nascimento, a Imprensa Oficial presta justa homenagem neste Com a palavra, Luiz Gama – poemas, artigos, cartas e máximas.
Filho de Luiza Mahin, uma quitandeira africana livre de Costa Mina, com um fidalgo de nome nunca revelado – sabe-se que fazia parte de uma tradicional família baiana de origem portuguesa –, o Vate Negro, como ficaria conhecido no futuro, nasceu em Salvador no ano de 1830. Embora tenha vindo ao mundo como homem livre, Luiz Gonzaga Pinto da Gama conheceu a escravidão aos dez anos de idade quando foi vendido pelo próprio pai a um mercador de escravos. Da Bahia o garoto é levado ao Rio de Janeiro e depois Santos, de onde segue a pé até Campinas para ser vendido. Na época, escravos de origem baiana tinham fama de rebeldes e, por este motivo, Luiz Gama não foi comprado, ficando o mercador como seu senhor. É como cativo que chega à capital de São Paulo, principal cenário de sua trajetória sem precedentes.
Provando a máxima de que educação confere liberdade, é graças a um estudante de direito que aluga um dos quartos na casa de seu senhor que Luiz Gama é alfabetizado aos dezessete anos. Ato corajoso, tendo em vista que na época ensinar um negro tinha conotação de crime, o jovem torna-se amigo do garoto escravo e também lhe fornece as primeiras noções de direito. De forma impressionante, pouco tempo depois, Gama reúne documentos que provam seu nascimento como homem livre e consegue alforria defendendo-se por conta própria e antecipando seu futuro como grande advogado. Aqui é preciso tomar cuidado. Foi justamente sua atuação marcante no universo do direito e sua fama como “o advogado dos escravos”, que acabaram por soterrar a imagem do homem de múltiplos talentos que realmente foi.
Já livre, aos dezoito anos ingressa na guarda municipal, onde trava contato com uma das maiores autoridades da São Paulo de então: Conselheiro Furtado de quem se torna protegido e com quem anos mais tarde romperia suas relações publicamente, com direito a troca de rusgas na imprensa. Sua carreira militar termina seis anos depois, após cumprir pena de 39 dias por insubordinação. Mais tarde escreveria: “desde que me fiz soldado, comecei a ser homem; porque até os dez anos fui criança; dos dez aos dezoito anos fui soldado”.
Nomeado amanuense da Secretaria de Polícia de São Paulo, Gama começa a ter contato com os problemas dos mais humildes que por lá apareciam ávidos por justiça, quase um privilégio das elites. É onde também passa a aperfeiçoar seus conhecimentos na área jurídica. A época marca sua aproximação de personalidades republicanas e a formação de alianças com nomes emblemáticos que teriam importância para seu futuro e também do país, como o poeta e professor de direito José Bonifácio, o Moço. Membro da maçonaria, associado à Loja América, um dos núcleos do antimonarquismo paulistano, em pouco tempo Luiz Gama escreveu seu nome entre os principais intelectuais do período. Personagem símbolo da luta abolicionista, como rábula – profissional autorizado a exercer advocacia sem curso superior, desde que comprovado profundo conhecimento na área – passou a defender de forma gratuita casos de escravos e parte da população menos assistida pelo Estado, também fornecendo aconselhamentos e participando pessoalmente da libertação – sempre através de meios legais – de trabalhadores escravizados. Suas conquistas representam feito jamais igualado na luta contra escravidão em todo o mundo. Há registros de que teria sido o responsável direto pela libertação de mais de quinhentos escravos. Extra-oficialmente, há quem diga que o número se aproxime de mil.
Contrariando os que defendiam idéias pseudo-científicas, muito em voga na época, de que o conhecimento e a capacidade intelectual para desenvolvê-lo e produzir coisas belas eram uma questão de raça, privilégio dos escolhidos e de pele alva, pouco mais de dez anos separam a alfabetização do menino escravo de sua ascensão como o brilhante intelectual que se tornou. Apenas doze anos se passaram até que Luiz Gama publicasse seu primeiro e único livro de poesia, ganhasse o respeito como autor de artigos invejáveis na imprensa e o orador, autor de discursos históricos na defesa de suas idéias. É ai que se encontra um dos principais méritos deste lançamento. Dividido em capítulos como Poemas, Artigos, Cartas e Máximas, o livro apresenta ao leitor as diversas faces de um pensador cuja obra singular une literatura, jornalismo e política.

Lírica de Carapinha
Publicado em 1859, Primeiras Trovas Burlescas de Getulino teve apenas duas edições na época, sendo praticamente empurrado para o esquecimento nas décadas seguintes. O que poucos perceberam é que o surgimento do poeta Luiz Gama representava um marco em nossa literatura. Sem mencionar o valor incontestável de seu lirismo, a obra impressiona por sua ousadia e importância histórica. Não bastando o fato de que pela primeira vez um autor negro tinha sua obra publicada, Gama vai além. Apropria-se das referências dos poetas brasileiros e europeus que o influenciaram, mas assume sua raça e posiciona-se como uma nova voz já desde o título do livro. Embora o autor assine com seu nome de batismo, as trovas são creditadas a Getulino, pseudônimo retirado de uma tribo guerreira nômade oriunda da África, os Getulos. O poeta se apresenta como o Orfeu de Carapinha, tomando de empréstimo a lírica do musicista encantador de deuses e mortais da Grécia mitológica clássica, porém substituindo sua lira por instrumentos de origem africana. Canta pela primeira vez a beleza da mulher negra, declamando que, à alva Vênus dos poetas clássicos prefere “A musa de Guiné, cor de azeviche”.
Embora cante as belezas do espírito como faziam seus contemporâneos, desde os primeiros poemas o Vate Negro mostra sagacidade e domínio da ironia em versos satíricos de forte conteúdo político e social. Esta, aliás, seria uma de suas marcas em poemas publicados mais tarde na imprensa paulistana. Sua pena não dá trégua aos poderosos, mas sobra também para os “mulatos falsários”, como ele definia mestiços que renegavam sua ascendência africana. Os versos de “Quem sou Eu?”, também conhecido como “Bodarrada” – chamavam Bodes os mestiços de pele mais escura – dizem: “Se negro sou, ou sou Bode./Pouco importa./O que isto pode?”. Também ataca o preconceito dominante de parte das elites intelectuais: “Ciências e letras/Não são para ti/pretinho da costa/não é gente aqui”. E, se os versos: “No meu cantinho./Encolhidinho./Mansinho e quedo./Banindo o medo (...)/O que estou vendo./Vou descrevendo” podem dar a falsa impressão de uma humildade cômoda, em outros salta feito leão contra a hipocrisia dos poderosos : Se a justiça, por ter olhos vendados,/É vendida, por certos magistrados,/Que o pudor aferrando na gaveta,/Sustentam – que o Direito é pura peta;/E se os altos poderes sociais,/Toleram estas cenas imorais,/Se não mente o rifão, já mui sabido:/ “Ladrão que muito furta é protegido”/É que o sábio, no Brasil, só quer lambança,/Onde possa empantufar a larga pança!”. O lançamento traz uma coletânea que inclui tanto textos extraídos de Primeiras Trovas Burlescas, como outros publicados apenas em jornais da época.

O jornalismo de combate de Barrabrás
Naqueles tempos em que jornalismo e literatura se confundiam, não é de se estranhar que alguém com tanto a dizer como Luiz Gama estendesse seu campo de atuação às redações. Como jornalista, Luiz Gama também fez história, podendo ser considerado um dos precursores de nossa imprensa independente ou alternativa. Em 1864, uniu-se ao cartunista Angelo Agostini para fundar o semanário de humor, Diabo Coxo. Embora a publicação tenha durado pouco mais de um ano, o periódico foi o primeiro jornal ilustrado da cidade de São Paulo e marca a descoberta da imprensa como principal canal difusor de suas idéias. Tendo no jornalismo atividade oficial a partir daí, Luiz Gama participaria da criação e edição de outros títulos não menos notórios, como Cabrião, O Polichinelo e O Radical Paulista – o último, ao lado de Rui Barbosa –, entre outros.  
Talvez um dos maiores exemplos da cordialidade hipócrita de nosso racismo, Gama foi acusado por seus detratores de negro com pretensões literárias frustradas e até “agente da Internacional”. Durante muito tempo, a indignação e virulência de seu texto foram rotuladas como um rancor enraizado contra a parcela de pele branca da sociedade. Seu discurso, no entanto, não é pautado pela distinção racial e seus principais alvos eram as instituições dominantes no Brasil da segunda metade do século XIX: a monarquia e a igreja.
Vítima de complicações causadas pelo diabetes, o autor, que gostava de pseudônimos como Barrabrás – em referência ao bairro do Brás, onde morava –, com o qual assinou alguns de seus artigos mais virulentos contra as elites, faleceu jovem, aos 52 anos de idade, no auge de sua popularidade como republicano e fervoroso abolicionista. O impacto de sua morte movimentaria a capital paulistana. Seu velório teria atingindo proporções inéditas até então, sendo acompanhado por mais de três mil pessoas. Conta-se que em meio à cerimônia fúnebre o féretro teria sido “tomado” das mãos de seus companheiros republicanos pelos ex-escravos e demais populares, que o tinham como protetor, e conduzido nos braços do povo até o Cemitério da Consolação onde está enterrado. O evento ainda seria assunto na mídia nos meses que se seguiram em artigos e homenagens assinadas por notáveis como Rangel Pestana e Raul Pompéia, entre outros. Além dos poemas e artigos do autor já citados, Com a palavra, Luiz Gama também traz tais homenagens e se completa com suas máximas, trechos de sua correspondência e ilustrações, apresentando um rico panorama do pensamento de um personagem sem igual em nossa história.
Serviço: Com a palavra, Luiz Gama. Organizadora: Ligia Fonseca Ferreira. Editora: Imprensa Oficial. 306 páginas.

Box: Sangue indomável
Pesquisando de forma aprofundada as origens de Luiz Gama é quase impossível não pensar em predestinação. Descrita como uma negra bonita, de corpo frágil e personalidade forte, sua mãe, Luiza Mahin, teria participado de diversos levantes e rebeliões pela emancipação negra no Brasil escravocrata do século XIX. Embora as informações a seu respeito sejam escassas e desencontradas, é certo que teve papel importante em pelo menos uma das insurreições mais significativas do período: a Revolta dos Malês.
Organizado por um grupo de cerca de 600 negros muçulmanos, o movimento pretendia acabar com a imposição dos ritos católicos a que eram submetidos, libertar os escravos muçulmanos e instituir em Salvador um governo teocrático baseado no Islam. Levada a cabo no dia 25 de janeiro de 1835, a revolta teve motivação religiosa, com inspiração nas jihads – guerras santas – e nasceu destinada ao fracasso. Entre os principais motivos, estava o fato de não contar com o apoio de boa parte da população negra, a maioria católica e de outras religiões, que temia ser alvo de perseguição uma vez instaurado o governo muçulmano. Além do mais, seu núcleo fora infiltrado por informantes que, à traição, impediram o elemento surpresa, essencial para o sucesso de qualquer ação revolucionária. Avisado com antecedência, o governo não teve dificuldades em conter a rebelião. Seus líderes foram presos e executados. Outros foram deportados.
Luiza Mahin teria deixado seu filho aos cuidados do pai e fugido para o Rio de Janeiro. Seu destino a partir daí é uma incógnita. Conta-se que teria participado de outras revoltas no Rio. Lá teria sido presa e deportada para Angola, mas, não havendo documentos que comprovem tal informação, é também possível que tenha sido executada. Embora também não existam provas a respeito, certos autores defendem que Mahin teria conseguido fugir e encontrado refúgio no Maranhão. Tal teoria a coloca, inclusive, como uma das peças fundamentais para o desenvolvimento e popularização do Tambor de Crioula, dança típica de origem africana praticada ainda hoje por afro-descendentes maranhenses. Depois de adulto, Luiz Gama lançou-se em diversas campanhas para investigar pistas de seu paradeiro. Todas infrutíferas.
Considerada uma heroína e exemplo de mulher guerreira em diversas comunidades baianas, Luiza Mahin pouco conviveu com o filho. Seu papel sob a biografia de Luiz Gama, no entanto, possui simbologia marcante e impossível de se ignorar. Herdeiro do espírito indomável da mãe, o Vate Negro parece ter trazido nas veias sua inclinação à liberdade e à insubmissão.
Sobre ela, o filho escreveu: "Sou filho natural de negra africana, livre, da nação nagô, de nome Luísa Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa, magra, bonita, a cor de um preto retinto sem lustro, os dentes eram alvíssimos, como a neve. Altiva, generosa, sofrida e vingativa. Era quitandeira e laboriosa."

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

São Paulo na ótica do Flaneur – O Coração da Pauliceia Ainda Bate



São Paulo na ótica do Flaneur

Reunindo artigos inéditos e outros publicados em jornais, O Coração da Paulicéia ainda bate revela o olhar apaixonado de José de Souza Martins sobre a história, personagens, gentes e ruas da cidade de São Paulo.
Por César Alves

Ocupante da cadeira de número 22 na Academia Paulista de Letras, doutor em Sociologia pela USP e professor aposentado da mesma universidade, o escritor José de Souza Martins é também um mestre na arte do flâneur.
Palavra de origem francesa, derivada de flâner que pode ser traduzida para o português como “passear”, embora o verbo passear seja incapaz de resumir todas as particularidades e características do termo francês, objeto de estudo de Walter Benjamin e, antes dele, Charles Baudelaire. Correndo o risco de ser simplista demais em minha tentativa de explicação, o passeio do flâneur vai muito além do vagar pela cidade, aproximando-se do ato de se deixar perder por suas ruas com o olhar atento, entre o deslumbre, o encantamento e o desejo de decifrar seus mistérios. É este o olhar que se percebe durante a leitura de O coração da paulicéia ainda bate, obra que reúne crônicas inéditas e outras publicadas ao longo de nove anos na coluna assinada pelo autor no caderno Metrópole do jornal O Estado de São Paulo.
Atento aos detalhes e nuances da maior cidade da América do Sul, o professor José de Souza Martins traduz na sua prosa de excelente cronista, instantâneos captados pela ótica do poeta que busca inspiração na arquitetura, nas ruas, nas personagens, nas questões sociológicas e, principalmente, na história. “Na praça em frente, o largo da Liberdade, existia o pelourinho, símbolo da autonomia municipal e da justiça, destinado ao suplício de escravos condenados ao castigo público. Por isso o bairro foi conhecido como o bairro do quebra-bunda, referência aos cativos que dali saiam descadeirados(...). Dizia-se que São Paulo era uma cidade esquisita. A rua Direita era torta, o cemitério ficava na Consolação e a forca na Liberdade”.
Leitor das ruas e fotógrafo do espírito urbano e sociológico, o autor deixa-se perder pelas ruas da metrópole em busca de seus infinitos mistérios, estampados nos contornos de casarões e prédios antigos e arranha-céus modernos; na arte que se espalha feito museu a céu aberto, muitas vezes, sem ser notada pelos que por ali apressadamente passam; nos olhos dos atores que juntos protagonizam o drama da São Paulo de nossos dias e também nos fantasmas daqueles que o protagonizaram no passado e, de alguma forma, por ali ainda vagam. Assim como o é a alma de sua musa, os textos de Martins passeiam por histórias que se confundem entre o cômico e do trágico, passando pelo primeiro carnaval, o de 1856; a triste história de Dona Yayá, rica órfã, declarada louca em 1919, aprisionada na própria casa por mais de 40 anos “até receber o habeas corpus tardio da morte”; e o assassinato, em 1906, de uma filha pelo pai, ex-governador, que se suicidou em seguida, para impedir-lhe o casamento incestuoso com o poeta Batista Cepelos também seu filho com uma ex-escrava, fato que beira a mais trágica das tragédias gregas.
Com prefácio do poeta Paulo Bonfim, a quem a obra é dedica, e ilustrado com mapas, propagandas e fotografias, O coração da Pauliceia ainda bate chega como uma das mais belas e interessantes obras dedicadas à cidade de São Paulo produzida nos últimos anos. Altamente recomendável.

Serviço:
O Coração da Pauliceia Ainda Bate
Autor: José de Souza Martins
Editora: Unesp e Imprensa Oficial

427 páginas

terça-feira, 5 de novembro de 2013

A Fotomontagem como Arma - John Heartfield

 
 
John Heartfield e a fotomontagem como arma política
 
Considerado o “pai da fotomontagem política”, John Heartfield é tema de livro que reúne reproduções de sua obra antifascista, produzida durante o período que vai da ascensão de Adolf Hitler ao poder ao início da Segunda Guerra.
 
por César Alves
 
É comum o erro de interpretar a ascensão do nazismo a uma adesão unânime dos alemães ao populismo de Adolf Hitler e seus seguidores. A existência de uma publicação como a AIZ (Arbeiter Illustrierte Zeitung – Revista ilustrada do trabalhador), editada entre 1930 e 1938 e que chegou a ter tiragens de 500 mil exemplares semanais, põe por terra tal teoria. Idealizado pelos irmãos Helmut e Wieland Herzfeld, o periódico – que, a partir de 1936, passou a se chamar VI (Volks Illustrierte – Revista Ilustrada do Povo) – manteve de forma corajosa durante toda a sua existência uma postura combativa ao nazismo, abordando através da crítica feroz, inteligente e bem humorada a chegada de Hitler ao poder e os perigos que isso representava. Grande parte de seu mérito está nas ilustrações, através da técnica da fotomontagem, de John Heartfield (1891-1968).
 
Verdadeiro nome de Helmut Herzfeld, que adotou o anglicismo para assinar sua obra como um protesto contra a xenofobia antibritânica dos fascistas alemães, Heartfield é tema do livro John Heartfiel – Fotomontagem, focado em sua produção na AIZ e VI e que acaba de chegar às livrarias brasileiras pela Imprensa Oficial.
 
Um dos principais expoentes do braço berlinense do movimento de vanguarda artística Dada (ele idealizou e editou a publicação Der DADA e organizou a Primeira Feira Dada Internacional de Berlim em 1920), Heartfield é considerado o pai da fotomontagem política.
 
Em 1917, um ano depois de adotar o novo nome, fundou a editora Malik junto com seu irmão, Wieland Herzfeld, pela qual editaram livros e o jornal Neue Jugend (Nova Juventude) que contava com a colaboração do pintor e desenhista expressionista, George Grosz, com quem Heartfield manteve uma rica parceria. Vem justamente de suas discussões com Grosz a idéia do uso da técnica de colagem e fotomontagem como instrumento de conscientização política, o que já estava claro nas páginas do Neue Jugend, mas que seria explorado com mais intensidade anos depois com o lançamento da AIZ.
 
 
Heartfield ingressou no Partido Comunista Alemão em 1918 e foi próximo da Liga Spartakus, dirigida por Rosa Luxemburgo e Karl Liebnech.  Idealista e dono de um talento artístico compromissado com o engajamento político e social, foi essa a postura que Heartfield e os demais colaboradores da AIZ decidiram imprimir à revista.
 
Durante o período que vai da ascensão eleitoral do partido nazista, passa pela nomeação de Hitler como Chanceler em 1933 e chega até bem pouco antes do conflito mundial, o artista criou 237 obras, produzidas em rotogravura e tipografia, marcadas pela precisão técnica e artística, fortemente influenciada por Goya e Daumier. Heartfield, que dizia “pintar com fotografias”, apostava no choque através de fragmentos de imagens, utilizando conflitos gráficos, ópticos, espaciais e cromáticos para expor as relações de poder e a brutalidade do nazifascismo. Tal estratégia se assemelha à utilizada pelo cineasta russo Serguei Einsentein em seus filmes, conforme nos chama a atenção a especialista Annateresa Fabris em texto escrito para o livro.
 
Tanto quanto sua maestria técnica e artística também impressiona o humor sarcástico e ácido de John Heartfield, muito explorado nas obras que ilustram o livro. O artista não poupava esforços para acusar Hitler, seus seguidores e apoiadores, muitas vezes, mostrando o líder nazista como um fantoche nas mãos da elite industrial alemã.
 
No icônico Adolf, o super-homem: engole ouro e fala fino, de 1935, uma chapa de raios-x revela o ditador como tendo uma espinha dorsal feita de moedas e um estômago recheado de ouro, enquanto, ao invés de um coração, em seu peito bate uma suástica.
 
A paródia encontra relação com outras duas imagens; em uma delas, médicos examinam a chapa de um paciente que faz a saudação nazista e se deparam com a espinha curvada, remetendo aos desvios de conduta do regime e em outra apresenta uma suástica feita de moedas, com o título: Sob este símbolo serás conduzido à guerra e a bancarrota, referência à frase dita por um anjo sobre a visão de uma cruz no céu testemunhada durante o sonho que teria levado o imperador romano Constantino a aceitar o cristianismo.
 
Mas se a sátira dá o tom em trabalhos que mostram Goebbles preparando o Führer para um discurso dirigido aos trabalhadores com uma barba postiça de Karl Marx e o de uma família sentada à mesa de jantar (reproduzindo uma peça publicitária), em que os alimentos são instrumentos de metal, sob o título Hurrah! Acabou a manteiga e que alude à falta de alimentos em meio a imensos incentivos financeiros para a indústria siderúrgica nos preparativos para a guerra, por exemplo, em outras, como a que representa uma pomba branca empalada na adaga de uma baioneta para relembrar o massacre dos operários de Genebra, a mensagem é direta e a intenção é mesmo o choque.
 
Tamanha ousadia e coragem em dias tão sombrios não poderiam passar impunes e, em 1933, Heartfield se viu obrigado a fugir para a então Tchecoslováquia, exilando-se em Praga de onde continuou publicando a AIZ que, em suas últimas edições, circulou de forma clandestina na Alemanha. A revista resistiu até 1938, quando o artista se refugiou na Inglaterra de onde manteve seu ativismo contra os regimes autoritários e viveu até o fim da guerra.
 
Fotógrafo, designer gráfico, cenógrafo e promotor cultural, em 1950 Heartfield voltou a Berlim, onde trabalhou com Bertolt Brecht, criando desenhos gráficos e cenários para a Berliner Ensemble. Morreu em 1968, mantendo até o fim de seus dias seu engajamento artístico e sua postura política.
 
O livro que acaba de chegar às livrarias é resultado da exposição de mesmo nome que esteve no Museu Lasar Segall no final do ano passado. Traz, além de reproduções dos mais emblemáticos trabalhos de Heartfield no período de 1930 a 1938 e de capas da revista AIZ, textos de Annateresa Fabris, Jorge Szchwartz, Marcelo Monzani e Jeffrey Hoft.
 
Documento de importância histórica indiscutível e acabamento digno de um artista engajado na realidade social, cuja arte se confundiu com o compromisso e a coragem para acusar as arbitrariedades dos governos autoritários.
 
Serviço: Livro: John Heartfield – Fotomontagem – 196 páginas – Editora: Imprensa Oficial.