São Paulo na ótica do Flaneur
Reunindo artigos
inéditos e outros publicados em jornais, O Coração da Paulicéia ainda bate
revela o olhar apaixonado de José de Souza Martins sobre a história,
personagens, gentes e ruas da cidade de São Paulo.
Por César Alves
Ocupante da cadeira de número 22 na Academia
Paulista de Letras, doutor em Sociologia pela USP e professor aposentado da
mesma universidade, o escritor José de Souza Martins é também um mestre na arte
do flâneur.
Palavra de origem francesa, derivada de flâner que pode ser traduzida para o
português como “passear”, embora o verbo passear seja incapaz de resumir todas
as particularidades e características do termo francês, objeto de estudo de
Walter Benjamin e, antes dele, Charles Baudelaire. Correndo o risco de ser
simplista demais em minha tentativa de explicação, o passeio do flâneur vai
muito além do vagar pela cidade, aproximando-se do ato de se deixar perder por
suas ruas com o olhar atento, entre o deslumbre, o encantamento e o desejo de
decifrar seus mistérios. É este o olhar que se percebe durante a leitura de O coração da paulicéia ainda bate, obra
que reúne crônicas inéditas e outras publicadas ao longo de nove anos na coluna
assinada pelo autor no caderno Metrópole do jornal O Estado de São Paulo.
Atento aos detalhes e nuances da maior cidade
da América do Sul, o professor José de Souza Martins traduz na sua prosa de
excelente cronista, instantâneos captados pela ótica do poeta que busca
inspiração na arquitetura, nas ruas, nas personagens, nas questões sociológicas
e, principalmente, na história. “Na praça
em frente, o largo da Liberdade, existia o pelourinho, símbolo da autonomia
municipal e da justiça, destinado ao suplício de escravos condenados ao castigo
público. Por isso o bairro foi conhecido como o bairro do quebra-bunda,
referência aos cativos que dali saiam descadeirados(...). Dizia-se que São
Paulo era uma cidade esquisita. A rua Direita era torta, o cemitério ficava na
Consolação e a forca na Liberdade”.
Leitor das ruas e fotógrafo do espírito urbano
e sociológico, o autor deixa-se perder pelas ruas da metrópole em busca de seus
infinitos mistérios, estampados nos contornos de casarões e prédios antigos e
arranha-céus modernos; na arte que se espalha feito museu a céu aberto, muitas
vezes, sem ser notada pelos que por ali apressadamente passam; nos olhos dos atores
que juntos protagonizam o drama da São Paulo de nossos dias e também nos
fantasmas daqueles que o protagonizaram no passado e, de alguma forma, por ali
ainda vagam. Assim como o é a alma de sua musa, os textos de Martins passeiam por
histórias que se confundem entre o cômico e do trágico, passando pelo primeiro
carnaval, o de 1856; a triste história de Dona Yayá, rica órfã, declarada louca
em 1919, aprisionada na própria casa por mais de 40 anos “até receber o habeas corpus tardio da morte”; e o assassinato, em
1906, de uma filha pelo pai, ex-governador, que se suicidou em seguida, para
impedir-lhe o casamento incestuoso com o poeta Batista Cepelos também seu filho
com uma ex-escrava, fato que beira a mais trágica das tragédias gregas.
Com prefácio do poeta Paulo Bonfim, a quem a
obra é dedica, e ilustrado com mapas, propagandas e fotografias, O coração da Pauliceia ainda bate chega
como uma das mais belas e interessantes obras dedicadas à cidade de São Paulo
produzida nos últimos anos. Altamente recomendável.
Serviço:
O Coração da Pauliceia Ainda Bate
Autor: José de Souza
Martins
Editora: Unesp e
Imprensa Oficial
427 páginas
Nenhum comentário:
Postar um comentário