Pauline Reagé, segundo
Crepax
Clássico da literatura
erótica do século 20, A História de “O”, de Pauline Reagé – pseudônimo da
jornalista francesa Anne Célline Desclós –, ganhou uma magistral adaptação para
os quadrinhos sob a condução do maestro dos quadrinhos e criador de Valentina.
Por César Alves
Em meio à atual febre de tramas eróticas nas
livrarias de todo o mundo, fenômeno ressuscitado pela série de livros Cinquenta Tons de Cinza, de E.L. James,
é bom lembrar que sexo e arte sempre se deitaram na mesma cama. Seus segredos,
no entanto, podem ter tido representação gráfica muito antes do aparecimento da
imprensa. Papiro de Turim, documento descoberto em 1822, mostra desenhos feitos
pelos egípcios de suas atividades sexuais, talvez seja a prova de que o gosto
pelo erotismo vem muito antes de Gutenberg criar a primeira impressora no
século 14 e tornar, algum tempo depois, a literatura acessível e os “livros
proibidos” virarem tão populares quanto a Bíblia – muitos estudiosos consideram
o documento egípcio “a primeira revista erótica da história”.
Artista gráfico e autor das mais originais
histórias em quadrinhos, Guido Crepax entendeu o recado. Com as aventuras de
sua personagem Valentina, criada em 1965 para a revista Linus, Crepax se tornou
o mestre do erotismo gráfico e um dos artífices do movimento de emancipação
feminina no universo da Cultura pop. Graças a seu traço inconfundível,
argumentação que, mais que o erotismo, flerta com a filosofia e o diálogo entre
o onírico e o psicológico, sem abrir mão do experimentalismo no formato
narrativo e visual, é também considerado um dos responsáveis por elevar os
quadrinhos ao status de arte.
Agora, sua obra começa a retornar às livrarias
brasileiras, mais uma vez pela L&PM Editores – que lançou vários livros
seus na década de 1980. O primeiro relançamento é o clássico A História de “O”,
uma das poucas obras do autor que, contraditoriamente, não traz Valentina como
protagonista. A editora promete ainda relançar outros títulos, no total de oito
volumes programados.
O fato de não ter Valentina não representa
exatamente uma decepção aos leitores – nem mesmo para quem adora a fotógrafa
que usa botas de couro e espartilho e se tornou ícone da emancipação feminina
na década de 1960. A História de “O”
é baseada na obra publicada em 1953, na França, escrita por Pauline Reagé (um
dos pseudônimos da escritora e jornalista francesa Anne Célline Desclos, que
também assinava Dominic Áury). Na trama, a personagem “O” é uma mulher
independente, levada para um castelo por seu amante, René, onde as mulheres
eram ensinadas a ser submissas sexualmente aos homens. Apesar de aprender a ser
escrava sexual do namorado, “O” é consciente de seu poder sobre os homens e,
assim, coloca prazer e submissão lado a lado para alcançar o prazer. Nada mais
polêmico e escandaloso.
Ainda que o roteiro não seja de Crepax, a
adaptação que ele próprio fez traz todas as características que marcaram a sua
obra: erotismo explícito e sem pudores, como no texto original, paixão por
desenhar espartilhos e bondages – um deleite para voyeuristas, traço
inconfundível e narrativa que exige mais de uma leitura, em que imagem,
composição e distribuição dos quadros vão além dos balões de diálogos. A
apropriação da trama por Crepax, embora fiel à narrativa original, faz da
novela gráfica uma obra diferenciada – é bom ler as duas versões. Essa HQ
revela o gosto de Crepax por adaptações literárias, o que fez desde o início de
sua carreira. Sua primeira história, aliás, foi uma adaptação de O Médico e o
Monstro, de Robert Louis Stevenson, que desenhou aos 12 anos.
Filho do primeiro violoncelista do Teatro
Scala, de Milão, Itália, Crepax nasceu em 1933. Estudou arquitetura pela
Universidade de Milão e, ao mesmo tempo, atuou como ilustrador em trabalhos de
publicidade. Produziu capas de revistas e livros, pôsteres e ilustrações para
capas de LPs – que lhe deu reputação no meio musical. Até decidir-se pelas
histórias em quadrinhos, transitou por assuntos variados, mas seu maior mote
foi o erotismo.
“Valentina sou eu!”
Valentina, sua mais famosa criação, veio a se
tornar um dos ícones culturais do século 20, chegando a ser considerada a
primeira mulher emancipada made in Italy.
Assim como – dentro da Cultura Pop e o universo dos quadrinhos – a Mulher
Maravilha está para os movimentos de sufrágio e liberação feminina da primeira
metade do último século, Valentina está para a mulher moderna que retoma com
força os ideais feministas tanto quanto o foi nos anos da contracultura e da
revolução sexual, época em que foi criada. Protagonista e regente de seu
destino, livre das amarras sociais e comportamentais, pronta a explorar seus
desejos sem culpa e abrir caminho à frente de sua história, sem se preocupar
com a opinião de uma sociedade falocêntrica ou pedir licença a um homem, surgiu
como personagem secundária no terceiro episódio das aventuras do herói Neutron
e tomou o lugar do protagonista logo nas primeiras aparições.
Morto em 2003, além de Valentina, Crepax criou
outras heroínas, com destaque para Bianca e Anita, publicadas no Brasil pela
L&PM, além de adaptar obras de Edgar Allan Poe e Marquês de Sade, entre
outros. Sobre sua obra, o cineasta francês Alain Resnais disse: “Seguidamente,
é necessário tomar uma página de Crepax e ler várias vezes para captar certos
detalhes”. Para novos leitores, A História de “O” é um excelente ponto de
partida.
(Originalmente
publicado na extinta Revista Brasileiros)
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