Sob
o signo do Dragão
Pai
do conto japonês, influência para o cinema de Akira Kurosawa e um dos
arquitetos da literatura moderna de seu país, Ryunosuke Akutagawa volta às
livrarias brasileiras em nova tradução e textos inéditos.
Por César Alves
Descrito como
uma mistura de réptil com marsupial de corpo humanoide e baixa estatura, o
Kappa é quase uma espécie de Chupa-Cabras dotado do mesmo espírito zombeteiro de nosso Saci.
Parte
das lendas da cultura milenar japonesa, conta-se que vive a espreita na beira
dos rios para pregar peças nos viajantes que passam. Permeado por criaturas fantásticas assim, o
rico folclore nipônico deu a ele uma reputação duvidosa. Apesar da aparência
engraçada que muitas das descrições podem sugerir, o hábito de afogar
pescadores e banhistas desatentos faz do Kappa criatura traiçoeira. Tal
característica pode estar entre os motivos que levaram Ryunosuke Akutagawa a
escolher os Kappas como protagonistas do conto alegórico que abre a coletânea Kappa e o Levante imaginário, lançamento
da editora Estação Liberdade.
Publicado em
1927, Kappa é um dos últimos textos conhecidos
de Akutagawa. Narrado por um interno em um hospital psiquiátrico que alega ter
sido levado ao mundo dos kappas e convivido com as criaturas, a trama gira em
torno de seu relato fantástico.
Denominado apenas
como Paciente de número 23, ele descreve uma sociedade não muito diferente da
dos humanos, mas com características muito particulares. Um bebê kappa, por
exemplo, já nasce falando e, no momento do parto, é questionado se está pronto
ou não para vir ao mundo. Sendo a resposta negativa, um tubo é inserido no
ventre da mãe e seu conteúdo sugado, como que esvaziando a um balão. Embora suas
religiões sejam as mesmas que as nossas, a mais influente é a Modernista ou
Vitalista. Conforme o personagem descobre durante visita a um de seus templos, seus
seguidores têm como apóstolos Strindberg, Nietzsche, Tolstói, Doppo Kunikida e
Wagner.
Sob o divertido
e inocente disfarce de fábula infantil, o texto esconde uma contundente crítica
à sociedade moderna. Na época de sua publicação, foi acusado de ser um
manifesto em defesa do socialismo, pelo qual Akutagawa nutria simpatia. Uma das
críticas, no entanto, enxergava em suas linhas uma visão sombria em relação à
humanidade como um todo, ganhando aprovação do autor como a leitura mais
próxima de suas intenções.
Akutagawa e Kurosawa
Celebrado como o
pai do conto japonês e mestre da narrativa curta, sua escrita é marcada pela preocupação
detalhista ao descrever ambientes, épocas e situações. Em sintonia com a nova literatura
praticada na época, fruto da liberdade criativa proposta pelas vanguardas
ocidentais, seu estilo abre espaço para experiências no que diz respeito à
forma e conteúdo. Em No Matagal, por
exemplo, a investigação do assassinato de um samurai nos apresenta o mesmo fato
pela ótica de sete personagens diferentes, em um caso de mistério onde nada é o
que parece ser. Sua maestria na condução da trama prende o leitor e oferece um
final surpreendente. Quase uma transposição da literatura policial do ocidente
para o Japão feudal, o conto forneceu a Akira Kurosawa o enredo para o premiado
Rashomon, filme dirigido por ele em
1950 e que entrelaça em adaptação para o cinema dois contos de Akatagawa – o
outro, do qual o cineasta tirou o título, também está presente aqui.
Os dez contos
que compõem Kappa e o Levante imaginário
revelam a versatilidade e ecletismo de um autor apaixonado por seu ofício.
Desde a infância, Akutagawa encontrou refugio nos livros. De forma compulsiva,
leu todos os títulos da biblioteca da família, composta praticamente de
literatura antiga japonesa e chinesa. Homem de seu tempo sofreu também
influência de autores ocidentais como Ibsen, Strindberg, Baudelaire, Oscar
Wilde e outros. A forma como combinou tais referências para criar uma obra
única e original, faz dele um dos principais arquitetos na construção da
moderna literatura japonesa. Seja na fase feudal de Os Salteadores, ou na nação moderna que despontava no início do
século XX de Rodas dentadas, é sempre
o Japão a fornecer o ambiente pelo qual o autor passeia com desenvoltura. Não é
a toa que seu nome batiza hoje o mais importante prêmio literário de seu país.
Breve e trágica, vida refletiu na obra
Não espere por
fábulas edificantes ao entrar no universo de Ryunosuke Akutagawa. Se existe uma
moral da história aqui, é a amoralidade incrustada nas profundezas do espírito
humano. Na maioria das vezes, seus personagens são criaturas à margem e prontas
a mentir e até realizar atrocidades, alguns por puro deleite pessoal, outros,
em nome da sobrevivência ou em situações limite que os colocam em confronto com
o lado mais sombrio de sua natureza. Como descobre o servo solitário que
protagoniza Rashomon, “não há espaço
para escrúpulos quando se quer remediar uma situação irremediável”.
Reconhecida hoje
como uma das principais colaborações do Japão à literatura universal, a obra de
Ryunosuke Akutagawa possui forte traço autobiográfico. Sua percepção aguçada e negativa
em relação à índole humana é fruto de sua origem e vivência pessoal. Nascido em
1892, o autor veio ao mundo em meio a um país que tentava se afirmar como parte
da comunidade internacional, apenas quarenta anos após a revogação do xogunato,
responsável por trezentos anos de isolamento e estagnação. Na época, o Japão
praticamente se dividia em dois mundos distintos: Um que tentava se recuperar
do atraso e firmar os pés na modernidade, importando tecnologia e sendo invadido
pela cultura ocidental; e outro que rejeitava adaptar-se aos novos tempos, mantendo-se
fiel às tradições e superstições que regiam o período feudal, caso de sua
família.
O autor teria
nascido no ano do dragão, no dia do dragão e na hora do dragão. Para completar,
as idades de seus pais na época, segundo os conceitos numerológicos de suas
crenças, eram representativas de mau agouro, o que o tornava duplamente amaldiçoado.
Pela tradição, a criança deveria ser abandonada a própria sorte. Tentando
enganar os deuses, sua família bolou um estratagema que consistia em deixá-lo
em local conhecido para que um amigo o encontrasse e o levasse para casa, o que
foi feito. Vitimada pela loucura, sua mãe veio a falecer poucos anos após seu
nascimento, sendo seguida pelo pai meses depois. Isso colaborou para que fosse
considerado de sangue ruim e destinado ao fracasso, tornando-se quase um pária em
seu núcleo social.
Criado por um
tio, Akutagawa cresceu sob a marca da rejeição, sentimento que o acompanhou por
toda a vida e que, ao lado do medo de ter herdado da mãe o gene da loucura, contribuiu
para o quadro depressivo que pontuou sua trajetória e refletiu em sua literatura.
Sofrendo de abatimento nervoso, problemas gastrointestinais e ataques de
alucinações, o autor morreu aos 35 anos de overdose de cianeto de potássio. Era
sua terceira tentativa de suicídio. Em nota de despedida, escreveu: “Por mais paradoxal que pareça, agora que
estou pronto, acho a natureza mais bela do que nunca. Vi, amei e compreendi
mais que os outros.”
Serviço: Kappa e
o Levante imaginário, tradução Shintaro Hayashi, Editora Estação Liberdade,
352 páginas.
Publicado originalmente na revista Brasileiros, em 13.10.2011
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