Além de Shakespeare
Organizado por Bárbara
Heliodora, Dramaturgia Elizabetana
reúne peças escritas por dois dos mais importantes contemporâneos do bardo.
Por César Alves
Em 15 de maio de 1593, Thomas Kyd foi preso,
sob a acusação de alta Traição. Após passar por uma série de torturas, teria
acusado Christopher Marlowe de ser o verdadeiro dono de documentos heréticos
que estariam em seu poder. Preso, logo em seguida, Marlowe teria assumido a
responsabilidade pelos papéis e, até onde se cogita, a passagem estaria
diretamente ligada ao seu misterioso assassinato, no dia 30 de maio do mesmo
ano, dez dias após ser liberado da prisão.
A história, que poderia estar entre os atos de
uma tragédia de William Shakespeare, é apenas um dos poucos e desencontrados
dados biográficos de dois dos mais importantes contemporâneos do Bardo, cujas
peças A Tragédia Espanhola, de Kyd; e
Tamerlão e A Trágica História do Doutor
Faustus, de Marlowe, chegam às livrarias brasileiras nas páginas de Dramaturgia
Elizabetana (Editora Perspectiva), organizado pela crítica teatral,
Bárbara Heliodora.
A Dramaturgia Elisabetana está diretamente
ligada ao Renascimento. Revolução de idéias que viria a alterar de forma
profunda e irreversível o pensamento e a própria civilização ocidental,
iluminando as trevas que marcaram a Idade Média e encerrando uma das noites
mais longas da história, a Renascença tem como epicentro a Itália e principais
protagonistas famílias poderosas dispostas a promover um retorno ao belo
estético clássico, vislumbrando, principalmente, a arquitetura e as artes,
incentivando financeiramente ou adotando como protegidos, os mais promissores
artistas disponíveis.
Da Itália o Renascimento se espalhou para o
resto da Europa e, na Inglaterra, é no universo das letras que seu reflexo se
mostrou mais impactante, principalmente na dramaturgia de William Shakespeare
que viria a se tornar um dos pilares da cultura ocidental, exercendo influencia
sobre tudo o que foi feito na literatura e dramaturgia até os dias de hoje.
O bardo, no entanto, não é astro solitário na
constelação conhecida como Dramaturgia Elisabetana. De Ben Johnson a John
Webster, passando inclusive por um ancestral distante do poeta americano T.S.
Eliot, Sir Thomas Elyot, a era de ouro da dramaturgia, que vai do reinado da
rainha Elizabeth I (1558-1603) e James (1603-1625), foi marcada por uma
efervescência de obras e autores que vão muito além das tragédias de
Shakespeare e é aqui que reencontramos os dois protagonistas do primeiro
parágrafo, Thomas Kyd e Christopher Marlowe.
Thomas Kyd é tido como um dos dramaturgos da
Era Elisabetana que teriam influenciado a obra de William Shakespeare. Pai do
gênero que se tornou conhecido como “Tragédia de Vingança”, é aqui representado
pelo texto que lhe valeu o título. Trama de sangue e vingança, A Tragédia Espanhola revela semelhanças
incontestáveis com diversos dos textos do bardo, principalmente, Hamlet. Como o leitor poderá conferir na
tradução, até então inédita, realizada por Bárbara Heliodora para a presente
edição.
Sympathy for the Devil
Alguém já disse que Shakespeare está para a
dramaturgia e poesia da Era Elisabetana como os Beatles para a musica do século
vinte. Sendo assim, com o perdão da analogia pop previsível, a ninguém menos do
que Christopher Marlowe cabe o título de Rolling Stones. Mente perigosa, tanto
para momento político e social em que viveu quanto para sua própria segurança –
como seu trágico destino acabou por comprovar –, Marlowe produziu uma série
textos fundamentais para a poesia e dramaturgia elisabetana durante sua
existência fugaz, dentre os quais se destacam Tamerlão e A Trágica História
do Doutor Faustus da presente edição. Se o primeiro comprova de maneiro
inquestionável o lugar de seu autor entre os maiores dentre os precursores do
Bardo – se não o maior –, o segundo o coloca de forma definitiva entre os
grandes nomes da dramaturgia ocidental.
Livre pensador, poeta, dramaturgo e adepto dos
excessos do tabaco, do álcool e da carne – fáustico por natureza, dizem alguns,
não sem razão – é praticamente inevitável fugir do clichê “artista que encarna
a própria obra”, quando se trata de Marlowe e sua peça mais conhecida. Afinal,
é em A Trágica História do Doutor Fausto
que as idéias de Christopher Marlowe se manifestam de forma aberta, além de
traçar as premissas que possibilitariam uma nova forma de teatro a partir da
herança medieval.
Inspirado em um personagem real, o mito do homem
de ciências que aceita barganhar com o Diabo em troca de conhecimento ilimitado
já era encenado como peça moral, durante a Idade Média, mas é na adaptação de
Marlowe – e, depois, Goethe – que ganha as características que dão forma à
maneira como o conhecemos hoje, em suas diversas manifestações através dos anos
– indo da releitura de Thomas Mann ao cinema de Murnau. Aqui, a tradição de
peça moralizante cristã é mantida em sua estrutura básica, com direito aos
personagens do Anjo Bom e o Anjo Mau, representação da consciência e tentação
nas profundezas da alma pecadora. Mas Marlowe subverte a tradição,
principalmente nas falas do Demônio, antigamente representado como ser caricato
e cômico, na interpretação da igreja. O Diabo de Marlowe, mais que um mercador
de alma trapaceiro, está para um advogado que nutre simpatia pela humanidade e
é em suas falas que mais se identificam a voz do próprio autor.
Filho de um sapateiro que demonstrou muito cedo
talento para as artes e vocação para a transgressão, Marlowe também manteve uma
atuação política secreta, atuando como espião a serviço de sua majestade.
Espírito contestador numa época em que a contestação poderia resultar em sérios
riscos, seu assassinato, aos 29 anos de idade, motivado por uma conta de bar,
segundo a versão oficial, é carregado de mistérios, dignos de uma trama
policial – como o episódio que abre este texto, por exemplo – e, ainda hoje,
gera diversas teorias conspiratórias.
Caminhos do Teatro
Ocidental
Bárbara Heliodora faleceu em abril do ano
passado e, além deste Dramaturgia Elizabetana, publicou,
poucos meses antes de sua partida, pela mesma editora, o excelente Caminhos
do Teatro Ocidental. Como o próprio título já diz, a obra traça um
histórico do fazer teatral no Ocidente, partindo do teatro clássico grego,
passando pela Idade Média, Renascimento, até chegar aos nossos dias. Obra de
referência, é apenas parte de um colossal legado que a escritora nos deixa para
história da crítica e estudos das artes dramáticas que deverá ficar para
sempre.
Serviço:
Título: Dramaturgia
Elizabetana
Autor: Bárbara
Heliodora
Editora Perspectiva
352 páginas
Título: Caminhos do
Teatro Ocidental
Autor: Bárbara
Heliodora
Editora Perspectiva
424 páginas
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