A Barbárie dos Homens
e a Paixão do Menino, Segundo Dostoiévski
Distintas na forma e
conteúdo, Recordações da Casa dos Mortos
e O Pequeno Herói estão diretamente
ligadas à jornada do autor russo aos Infernos do Cárcere.
Por César Alves
1849 foi um ano ruim para Fiodór Dostoiévski.
Encarcerado, sob a acusação de conspirar contra
o czar Nicolau I, e a espera de um julgamento, cujo veredicto, conforme o autor
talvez já esperasse, seria culpado. O que pode ter causado surpresa foi a
sentença e condenação, pena de morte, já que, na época, Dostoiévski gozava de certa notoriedade, como um dos mais
promissores jovens talentos da literatura de seu país, graças a boa recepção de
Gente Pobre (Editora 34), seu livro
de estréia, publicado três anos antes.
Acompanhado de seus supostos cúmplices de
conspiração, Dostoiévski chegou a ficar de frente com o pelotão de fuzilamento
e vislumbrar o olhar frio e sentir o odor de necrose e o bafo da Morte em seu cangote.
No último instante, no entanto, quando os atiradores já estavam a postos e prestes a
efetuar os disparos, um emissário do governo aparece com um documento que substituía
a pena máxima por quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, seguida de mais
cinco anos servindo como soldado voluntário do exército russo. Mais para
encenação cruel e sádica, com o intento de quebrar de vez o espíritos dos inimigos do Estado, do que demonstração de benevolência política, certo é que o episódio seria o
primeiro dos muitos, durante o martírio penal, que marcaria de forma indelével
sua obra e biografia.
O drama prisional do mestre russo está
diretamente ligado a dois excelentes títulos recém chegados às livrarias brasileiras,
Recordações da Casa dos Mortos (Nova
Alexandria) e O Pequeno Herói
(Editora 34).
O primeiro, também conhecido por Notas da Casa
dos Mortos, é uma edição revista, de capa dura, da tradução de Nicolau Peticov,
que andava sumida das prateleiras. Inspirado em suas anotações clandestinas – o
autor foi proibido de escrever, durante o cumprimento de sua pena –, sobre sua
experiência nos campos de trabalhos siberianos e suas conversas com outros
condenados, realizadas entre 1850 e 1854.
Originalmente, a obra foi publicada em capítulos,
de 1860 à 1862, no periódico Mundo Russo. Escrito como romance, Recordações da Casa dos Mortos conta
história de Aleiksandr Pietrovitch, assassino confesso de sua esposa seus dias
de tormento como condenado a trabalhar na franquia siberiana do Inferno, pelas
quais também passou seu criador. E é justamente esse tempero autobiográfico que
faz do livro mais do que um romance.
Embora construída como ficção, a obra é dotada
de inegável conteúdo documental. Trata-se de um rico, minucioso e brilhante estudo
sobre a miséria humana, análise social e psicológica e depoimento quase pessoal
sobre o cotidiano brutal de condenados e carcereiros, oprimidos e opressores; o
inconsciente conflituoso entre sentimentos de fúria, resignação, apatia e
revolta, num caldeirão de violência e miséria.
O Menino e o Sexo
Talvez por ser parte da produção de seus dias
de cárcere – escrito na prisão, entre julho e dezembro de 1849 –, O Pequeno Herói pode surpreender alguns
leitores de Fiodor Dostoiévski, por parecer tão distante do contexto sombrio em
que o autor se encontrava ao concebê-lo e que se fez presente em grande parte de sua obra.
Uma leitura das cartas que o autor escreveu para seu irmão do cativeiro, no entanto, pode apontar a narrativa como fruto direto do impacto sobre o autor da percepção do verdadeiro valor do convívio social
e grandeza encontrada num raio de sol sobre seu rosto. Algo que, não só os dotados da sensibilidade artística, mas todo o gênero humano só venha a se dar conta quando uma vez tendo sido privado.
Análises pretensiosas à parte, aqui, o ambiente
descrito é composto de belas paisagens, passeios e manhãs ensolaradas de dias
de verão, clima pouco explorado por Dostoiévski na maioria de suas criações. Assim
como pode parecer também a trama, que gira em torno da descoberta do amor por
um garoto de dez anos de idade.
Narrado em primeira pessoa por um menino, o texto
nos é apresentado como relatos de suas memórias em relação a acontecimentos que marcaram o fim de
sua primeira infância. Em seu relato ele descreve os dias daquele verão em que
se apaixonou pela primeira vez. Amor impossível, como é sempre nessa fase, por
uma mulher mais velha e casada.
Dotado de uma poesia singela, O Pequeno Herói
explora o começo do fim das inocências infantis, o despertar do amadurecimento –
há uma bela simbologia na passagem em que o protagonista decide montar um
cavalo selvagem e quase morre, na tentativa de impressionar sua musa – de forma
quase inocente. E, quando digo quase inocente, é porque Dostoiévski nunca é
inocente.
Uma leitura mais atenta deixa claro, logo nas
primeiras páginas, que mais que o despertar do amor, o autor também fala sobre
a descoberta dos desejos sensuais na infância, bem antes daquele famoso médico
de Viena.
Nosso herói, a principio, também volta sua
atenção à uma moça mais jovem, a mais bela e jovem, por quem o menino se sente
atraído, mas de uma forma diferente da atração que sente por sua musa. O que o
atrai aqui, está mais ligado às suas belas formas. Percebendo isso, a garota
acaba se aproveitando disso para atraí-lo e pregar-lhe peças, como, por
exemplo, quando ela pede a ele para se sentar em seu colo e, entre um cafuné e
outro, desfere-lhe pequenas torturas com beliscões dolorosos. Com sua primeira Famme Fatale, acaba descobrindo que a
beleza do objeto de desejo, quase sempre, vem acompanhada de uma crueldade que
beira o sadismo.
A tradução é de Fatima Biancchi e ilustrada com
gravuras de Marcelo Grassman
Serviço:
Título: Recordações da
Casa dos Mortos
Autor: Fiodór
Dostoiévski
Editora: Nova
Alexandria
Título: O Pequeno
Herói
Autor: Fiodór
Dostoiévski
Editora: 34
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