quarta-feira, 5 de agosto de 2015

A Barbárie dos Homens e a Paixão do Menino, Segundo Dostoiévski




A Barbárie dos Homens e a Paixão do Menino, Segundo Dostoiévski

Distintas na forma e conteúdo, Recordações da Casa dos Mortos e O Pequeno Herói estão diretamente ligadas à jornada do autor russo aos Infernos do Cárcere.
Por César Alves

1849 foi um ano ruim para Fiodór Dostoiévski.
Encarcerado, sob a acusação de conspirar contra o czar Nicolau I, e a espera de um julgamento, cujo veredicto, conforme o autor talvez já esperasse, seria culpado. O que pode ter causado surpresa foi a sentença e condenação, pena de morte, já que, na época, Dostoiévski gozava de certa notoriedade, como um dos mais promissores jovens talentos da literatura de seu país, graças a boa recepção de Gente Pobre (Editora 34), seu livro de estréia, publicado três anos antes.
Acompanhado de seus supostos cúmplices de conspiração, Dostoiévski chegou a ficar de frente com o pelotão de fuzilamento e vislumbrar o olhar frio e sentir o odor de necrose e o bafo da Morte em seu cangote. No último instante, no entanto, quando os atiradores já estavam a postos e prestes a efetuar os disparos, um emissário do governo aparece com um documento que substituía a pena máxima por quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, seguida de mais cinco anos servindo como soldado voluntário do exército russo. Mais para encenação cruel e sádica, com o intento de quebrar de vez o espíritos dos inimigos do Estado, do que demonstração de benevolência política, certo é que o episódio seria o primeiro dos muitos, durante o martírio penal, que marcaria de forma indelével sua obra e biografia.
O drama prisional do mestre russo está diretamente ligado a dois excelentes títulos recém chegados às livrarias brasileiras, Recordações da Casa dos Mortos (Nova Alexandria) e O Pequeno Herói (Editora 34).
O primeiro, também conhecido por Notas da Casa dos Mortos, é uma edição revista, de capa dura, da tradução de Nicolau Peticov, que andava sumida das prateleiras. Inspirado em suas anotações clandestinas – o autor foi proibido de escrever, durante o cumprimento de sua pena –, sobre sua experiência nos campos de trabalhos siberianos e suas conversas com outros condenados, realizadas entre 1850 e 1854.
Originalmente, a obra foi publicada em capítulos, de 1860 à 1862, no periódico Mundo Russo. Escrito como romance, Recordações da Casa dos Mortos conta história de Aleiksandr Pietrovitch, assassino confesso de sua esposa seus dias de tormento como condenado a trabalhar na franquia siberiana do Inferno, pelas quais também passou seu criador. E é justamente esse tempero autobiográfico que faz do livro mais do que um romance.
Embora construída como ficção, a obra é dotada de inegável conteúdo documental. Trata-se de um rico, minucioso e brilhante estudo sobre a miséria humana, análise social e psicológica e depoimento quase pessoal sobre o cotidiano brutal de condenados e carcereiros, oprimidos e opressores; o inconsciente conflituoso entre sentimentos de fúria, resignação, apatia e revolta, num caldeirão de violência e miséria.

O Menino e o Sexo
Talvez por ser parte da produção de seus dias de cárcere – escrito na prisão, entre julho e dezembro de 1849 –, O Pequeno Herói pode surpreender alguns leitores de Fiodor Dostoiévski, por parecer tão distante do contexto sombrio em que o autor se encontrava ao concebê-lo e que se fez presente em grande parte de sua obra.
Uma leitura das cartas que o autor escreveu para seu irmão do cativeiro, no entanto, pode apontar a narrativa como fruto direto do impacto sobre o autor da percepção do verdadeiro valor do convívio social e grandeza encontrada num raio de sol sobre seu rosto. Algo que, não só os dotados da sensibilidade artística, mas todo o gênero humano só venha a se dar conta quando uma vez tendo sido privado.
Análises pretensiosas à parte, aqui, o ambiente descrito é composto de belas paisagens, passeios e manhãs ensolaradas de dias de verão, clima pouco explorado por Dostoiévski na maioria de suas criações. Assim como pode parecer também a trama, que gira em torno da descoberta do amor por um garoto de dez anos de idade.
Narrado em primeira pessoa por um menino, o texto nos é apresentado como relatos de suas memórias em relação a acontecimentos que marcaram o fim de sua primeira infância. Em seu relato ele descreve os dias daquele verão em que se apaixonou pela primeira vez. Amor impossível, como é sempre nessa fase, por uma mulher mais velha e casada.
Dotado de uma poesia singela, O Pequeno Herói explora o começo do fim das inocências infantis, o despertar do amadurecimento – há uma bela simbologia na passagem em que o protagonista decide montar um cavalo selvagem e quase morre, na tentativa de impressionar sua musa – de forma quase inocente. E, quando digo quase inocente, é porque Dostoiévski nunca é inocente.
Uma leitura mais atenta deixa claro, logo nas primeiras páginas, que mais que o despertar do amor, o autor também fala sobre a descoberta dos desejos sensuais na infância, bem antes daquele famoso médico de Viena.
Nosso herói, a principio, também volta sua atenção à uma moça mais jovem, a mais bela e jovem, por quem o menino se sente atraído, mas de uma forma diferente da atração que sente por sua musa. O que o atrai aqui, está mais ligado às suas belas formas. Percebendo isso, a garota acaba se aproveitando disso para atraí-lo e pregar-lhe peças, como, por exemplo, quando ela pede a ele para se sentar em seu colo e, entre um cafuné e outro, desfere-lhe pequenas torturas com beliscões dolorosos. Com sua primeira Famme Fatale, acaba descobrindo que a beleza do objeto de desejo, quase sempre, vem acompanhada de uma crueldade que beira o sadismo.
A tradução é de Fatima Biancchi e ilustrada com gravuras de Marcelo Grassman

Serviço:
Título: Recordações da Casa dos Mortos
Autor: Fiodór Dostoiévski
Editora: Nova Alexandria

Título: O Pequeno Herói
Autor: Fiodór Dostoiévski
Editora: 34




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