sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Laranja Mecânica - A Distopia Horrorshow de Burgess

 
 
A Distopia Horrorshow de Burgess
 
Famosa pela adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick, a obra de Anthony Burgess gerou polêmica, foi envolta em mitos e ainda hoje é objeto de culto.
por César Alves
 
Ó, meus irmãos! Goolyava eu como Office-boy na época. Vasculhava Oddy-knocky as estantes de uma bibblio do centro de São Paulo, quando coloquei meus glazzes em um exemplar surrado da tradução de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. Eu era apenas um malchik , um tanto quanto nadmenny, como é próprio da idade, e me interessava por musica e literatura. Ó, irmãos! Eu devia ter uns 15 anos de idade, mas sabia que era a raskazz que inspirara aquele sinny de Stanley Kubricky, que eu nunca havia viddiado e, mesmo assim, era meu sinny preferido. Eram dias de rebeldia e dar um crast até que não seria difícil. Mas acabei kupeteando o livro e não me arrependi de deixar um pouco de meu tão suado deng com o vendedor da loja. Assim fui loveted e me tornei um plenny de Burgess e sua narrativa, um tanto quanto spoogy, carregada de strack, mas ainda hoje um dos momentos mais horrorshow de minha aventura pelo universo da literatura.
Para alguns leitores, o parágrafo que abre o texto pode parecer estranho e até incompreensível. Não para os que assistiram à clássica adaptação cinematográfica feita por Stanley Kubrick em 1971 e muito menos para os que leram Laranja Mecânica como foi concebida e ainda guardam na memória as gírias utilizadas pelos protagonistas do mais famoso romance de Anthony Burgess. Reconhecido como um dos marcos da literatura popular do século vinte, o livro está completando cinco décadas desde que, pela primeira vez, chegou às livrarias britânicas, atingindo os súditos da rainha como uma bomba. O impacto da explosão ecoou mundo afora e ainda hoje reverbera.
A data tem sido comemorada com homenagens em todo o globo, como a exposição programada pela Universidade de Manchester, em parceria com a Fundação Internacional Anthony Burgess e o Arquivo de Stanley Kubrick, que faz um apanhado do legado e o impacto da obra através dos anos. No Brasil o livro é publicado desde os anos 1970, não sendo difícil conseguir um exemplar das antigas edições em sebos. A mais recente tradução, de Fábio Fernandes, foi publicada pela Editora Aleph de São Paulo, a mesma responsável pela melhor surpresa envolvendo o cinquentenário da obra por aqui. 
Com lançamento programado para a última semana de novembro, exclusivamente para o mercado brasileiro, Laranja Mecânica ganha versão luxuosa, com capa dura, ilustrações inéditas de artistas consagrados, reprodução do manuscrito original, além de uma entrevista e textos inéditos do próprio Anthony Burgess sobre a obra. Laranja Mecânica – 50 anos tem capa e projeto gráfico de Pedro Inoue, designer gráfico brasileiro de renome internacional que trabalhou com nomes como Demien Hirst, Ryuchi Sakamoto e David Bowie – para quem criou as capas dos álbuns Heathen (2002) e Reality (2003) –, entre outros. Os capítulos foram ilustrados por artistas de renome internacional, como o brasileiro Angeli, que dispensa comentários; o inglês David McKean, idolatrado por seus trabalhos com o personagem Sandman de Neil Gaiman e pelo antológico e sombrio Batman Asilo Arkham, considerado um marco dos quadrinhos modernos; e o premiado animador, ilustrador e artista plástico argentino, Oscar Grillo. Convidados a recriar visualmente sua impressão pessoal do imaginário de Anthony Burgess, o resultado é aqui reproduzido pela primeira vez, o que torna a nova edição histórica. Desde já item de colecionador, o lançamento classifica-se como uma das mais completas edições do livro até o momento, não havendo nada parecido nas diversas traduções ao redor do mundo.

Distopia na década das utopias
Escrito em apenas três semanas no início dos anos sessenta, a inspiração teria vindo de artigos de jornais sobre brigas entre Rockers e Mods – dois dos primeiros grupos de jovens do advento estético e comportamental, detectado e muito estudado nas décadas seguintes, das tribos urbanas – e de uma manchete policial envolvendo estupro e assassinato. Um dos muitos mitos sobre a concepção de Laranja Mecânica conta que a obra é fruto de uma falha médica. Apesar de já respeitado no meio intelectual e celebrado como autor de livros e ensaios sobre literatura, na época Burgess passava por situação financeira difícil. Para piorar, o escritor teria sido diagnosticado como portador de uma doença fatal. Os médicos calculavam que lhe restava pouco mais de um ano de vida. Desenganado e preocupado com o futuro de sua esposa e filhos, o escritor se isolou em uma casa do interior decidido a escrever quinze livros no prazo de seis meses. Com o retorno dos direitos autorais, esperava garantir a subsistência de sua família depois de sua morte. Como era de se esperar, não alcançou sua meta. Mas conta-se que, durante o período, teria escrito seis novos títulos. Um deles seria justamente A Laranja Mecânica.
Laranja Mecânica classifica-se como uma distopia futurista, cujo pano de fundo é uma Londres do Século XXI, decadente e assolada por gangs de jovens que se divertem praticando os mais cruéis atos de violência. Narrado em primeira pessoa por Alex, o romance foi escrito quase como uma confissão, na qual o personagem convida o leitor a ouvir sua historia e compartilhar de sua tragédia pessoal. O livro é dividido em três partes, cada uma com sete capítulos e, na nova edição, ilustrada por um dos artistas. Com desenhos de Dave McKean, na primeira parte o delinquente nos apresenta a seu mundo, vangloriando-se dos tempos em que era o líder de seu bando e, junto com os integrantes deste, praticava uma concepção muito particular de liberdade, baseada em drogas, sexo e os mais extremos atos de violência. O calvário de Alex é descrito no trecho intermediário da narrativa, aqui acompanhada pelo traço inconfundível de Angeli. Preso e condenado por suas atrocidades, ele se oferece como cobaia para um programa que visa recuperar delinquentes juvenis através de lavagem cerebral, o Tratamento Ludovic. O que a princípio parece uma estratégia para escapar da prisão, acaba por se tornar uma tortura. A impressionante descrição do procedimento – bem como a forma como Kubrick a representou nas telas – tornou-se inesquecível. A tragédia da readaptação à vida cotidiana e os efeitos do tratamento – que destrói seu livre arbítrio, tirando inclusive seu amor pela Nona Sinfonia de Beethoven, único traço sensível ou humano de sua personalidade – completam a terceira parte que conclui a narrativa com um final surpreendente. A concepção visual ficou a cargo do argentino Oscar Grillo.
Burgess gosta de sutilezas textuais e simbólicas, o que dá a seu texto carga extra ao conteúdo dramático. Nas entrelinhas, deixa pistas de suas verdadeiras intenções, quase como um
prêmio para o leitor mais atento. Por exemplo; o nome do personagem, Alex, faz uso da palavra “lei” em latim (lex), sugerindo a-lex (algo como fora da lei, sem lei ou além da lei). Além de ser uma clara referência ao jovem e violento conquistador macedônio Alexandre, o Grande. O fato de os personagens beberem leite, símbolo de pureza, misturado com aditivos químicos, também não é mero capricho, além de a soma das três partes, com sete capítulos cada, resultar em 21. Assim, o livro termina justamente no capítulo de número correspondente à idade que marca o fim da tolerância legal aos erros cometidos pelos mais jovens e, na maioria das culturas, a entrada definitiva na maioridade, quando o individuo passa a responder perante a lei por seus atos.
Estudioso e amante da obra de James Joyce – escreveu um respeitado trabalho sobre o irlandês, publicado no Brasil como Homem Comum Enfim (Cia das Letras) –, foi do autor de Ulisses que Anthony Burgess tirou a inspiração para o vocabulário nadsat, que aparece na fala dos personagens como gírias. A “língua”, mais compreensível através do glossário publicado no livro, foi desenvolvida pelo autor misturando palavras do inglês, do russo e, principalmente, expressões idiomáticas dos cockney, ingleses da classe operária, que nasceram ou vivem em determinada área de Londres, cujo sotaque possui sonoridade e vocabulário quase incompreensíveis para não familiarizados, além de características e expressões idiomáticas muito próprias. O título, aliás, teria vindo de uma expressão cockney que certa vez o autor ouvira em um pub: as queer as a clockwork Orange – algo como: desorientado feito uma laranja mecânica.
Publicado em 1962, desde então a obra vem fascinando gerações de leitores. Quase dez anos depois, o texto chegou às telas do cinema, pelas mãos de Stanley Kubrick, resultando na película que figura hoje na maioria das listas de “Cem Maiores Filmes da História”. O sucesso do filme elevou o livro à categoria de Best seller, alçando o nome de Anthony Burgess ao de escritor pop. Além do cinema, A Laranja Mecânica ganhou adaptações teatrais e influenciou de astros de rock à moda, da arte dos museus à praticada nas ruas. Seus personagens se tornaram parte da iconografia do século vinte. A estética visual dada por Kubrick à gang de Alex, na interpretação inesquecível de Malcolm McDowell, chapéu coco, macacões brancos, cílios postiços e suspensórios, foi utilizada em inúmeros videoclipes, ganhou citação em episódios d´Os Simpsons e é comum em estampas de camisetas e tatuagens. Ainda hoje a obra é tema de artigos e teses, não só de literatura como também de estudos que vão da Filosofia ao Direito Penal.
 
“Não é um hino à violência, mas à liberdade”.
Comprovando o gosto que a Historia nutre pela ironia, a década que abriu com o lançamento de Laranja Mecânica tem como um dos atos que a encerraram Charles Manson e seus seguidores trazendo a Ultraviolence dos personagens do livro para a realidade, no assustador ataque à mansão do casal Roman Polanski e Sharon Tate, em 1969. Mas, quando foi escrito, eventos como o Massacre de Columbine sequer poderiam ser imaginados. Muito menos, um garoto fuzilando pessoas em um cinema, acreditando ser um supervilão de quadrinhos. Nem por isso – ou talvez por isso –, a obra deixou de ser considerada uma apologia à violência juvenil. Principalmente depois do filme de Stanley Kubrick alavancar sua popularidade, muitas vezes Anthony Burgess foi obrigado a esclarecer que o livro é um libelo em favor do livre
arbítrio e não uma celebração da delinquência juvenil. “Não é um hino à violência, mas à liberdade. É melhor ser malvado por escolha do que bom por lavagem cerebral”, teria dito. Ainda assim, nos Estados Unidos, até meados da década de 1980 a obra foi publicada com a supressão do último capitulo.
Triste, porém verdadeiro, é que, quando lemos notícias sobre jovens bem nascidos que incendeiam índios e sem tetos por pura diversão, um garoto que descarrega suas frustrações na forma de artilharia pesada contra crianças em uma escola e detalhes do caso de Suzanne Von Richthofen e irmãos Cravinhos, a violência de Alex e seus amigos, embora ainda impactante, talvez não cause tanto espanto – ou ganha proporções premonitórias, pensaria o mais alarmista dos leitores.  A tragédia histórica, no entanto, oferece oportunidade para uma releitura da obra de Anthony Burgess, sem a carga polêmica relacionada ao seu conteúdo violento. A verdade é que, cinquenta anos depois, Laranja Mecânica ainda provoca e chama a atenção por sua ousadia e criatividade.
 
 
A Ultravilence pela ótica de Stanley Kubrick volta em Blue-Ray
O clássico dirigido por Stanley Kubrick, que levou o imaginário de Anthony Burgess às salas de cinema, comemorou 40 anos em 2011. Para marcar a data foi lançada no mercado norte-americano uma caixa especial comemorativa do filme. Contendo dois discos, A Clockwork Orange 40th Anniversary Edition traz material inédito sobre a produção e uma série de extras. Indispensável para os fãs, além do filme, a caixa traz um making off, dois documentários; Turning Like a Clockwork  e Still Tickin´ The Returno of A Clockwork Orange, além de um longo depoimento de Malcolm McDowell que, de forma brilhante, encarnou o perturbado anti-herói criado por Burgess. O ator ficou marcado pelo papel, sendo quase impossível separá-lo do assustador e ao mesmo tempo fascinante Alex DeSage de A Laranja Mecânica.
 
Curiosidades: 
O underground norte-americano já havia sido contaminado pela ultraviolence de Burgess desde os anos sessenta.  Antes de Stanley Kubrick, o artista pop Andy Warhol já teria utilizado Laranja Mecânica como base para o roteiro de um de seus filmes experimentais. Vinyl foi dirigido por ele em 1965. E, ainda no submundo de Nova Iorque, Clockwork Orange foi o nome escolhido por uma banda de lá que lançou um punhado de singles entre 1966 e 67, antes de desaparecer. Suas canções são cultuadas hoje em dia em coletâneas de one-hit-wonders (artistas musicais de um só sucesso) dos anos sessenta, como a série Nuggets, que fazem a cabeça dos fãs de bandas obscuras da época.
O rock, aliás, tem uma relação antiga, tanto com o livro, quanto com o filme. David Bowie coloca o livro de Burgess entre suas leituras prediletas, citando e se deixando influenciar pela obra em vários momentos de sua carreira. Usar a palavra droogie , amigo em nadsat, na letra de Suffagette City, por exemplo, é uma de suas homenagens.
Ainda no rock, a mais internacional das bandas brasileiras, Sepultura, se inspirou em Laranja Mecânica para compor sua Ópera Metal, A-Lex, último álbum da banda lançado em 2008. E, já que estamos no Brasil, o país passou perto de ter um laço ainda mais estreito com a obra,
desta vez em sua versão cinematográfica. Exilados na Inglaterra no fim dos anos sessenta, Antonio Bivar (escritor, dramaturgo e jornalista) e Zé Vicente (dramaturgo, autor de Hoje é Dia de Rock) curtiam os momentos finais da Swinging London. Trajando roupas extravagantes e em estado de euforia típico de quem prefere outros remédios àqueles da mamãe, como diz a canção do Jefferson Airplane, foram convidados – com contrato e tudo, dizem – a fazer parte do elenco do filme de Stanley Kubrick, ainda na fase embrionária. Ambos acabaram deixando Londres pouco depois a trabalho, só para mais tarde descobrirem que foram aprovados para compor o elenco e perderam a chance, já que não foram encontrados. Nada horrorshow isso.

Pequeno glossário Nadsat
(para melhor compreender o primeiro parágrafo)
 
Bibblio: biblioteca, livraria
Crast: roubar
Deng: dinheiro
Glazz: olho
Gooly: Trabalhar
Kupet: comprar
Loveted: capturado
Malchick: garoto
Nadmenny: arrogante
Oddy-Knocky: Solitário
Plenny: prisioneiro
Raskazz: historia
Sinny: filme, cinema
Spoogy: aterrorizar, assustar
Strack: horror
Viddy: ver, assistir

Observação: O texto foi escrito às vésperas do lançamento da edição comemorativo de 50 anos da Editora Aleph, mas, por um daqueles acidentes inexplicáveis de fechamento, acabou caindo na última hora e só agora é publicado.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O Soldado Dave Brubeck e a Grande Lição de um Pai



O Soldado Dave Brubeck e a Grande Lição de um Pai

por César Alves

Antes de se tornar legenda no capítulo piano da história do Jazz, Dave Brubeck alistou-se como voluntário na expectativa de ir para o campo de batalha e fazer a diferença durante a 2ª. Guerra. O ano era 1942 e, apesar de não da maneira como esperava, ele fez. Amante das teclas desde criança, filho de uma pianista de formação clássica, responsável por suas primeiras aulas no instrumento e por despertar seu interesse pela música, muito novo Dave dava sinais de uma carreira promissora.

A descoberta de sua paixão e veículo através da qual expressaria seu talento chegou pelo rádio. Aparelho revolucionário e peça das mais importantes para um século que chegara para escancarar as portas do futuro, o rádio era a maravilha moderna capaz de captar as ondas sonoras que traziam ao jovem Brubeck as batidas fortes de uma música nova e selvagem. Embora desse a impressão de ter sido enviado como presente por civilizações mais avançadas de planetas muito distantes, o ritmo que o conquistara tinha suas origens nas comunidades negras de New Orleans e de lá se espalhado pelo país, assumindo o Harlem como residência oficial. Se o século vinte seria o século do futuro, o jazz era a trilha sonora dos homens do amanhã. Sua popularidade havia rompido as barreiras raciais que poucos anos antes pareciam intransponíveis e, se ainda faltava muito para que a luta pelos direitos civis ganhasse força e se tornasse uma realidade, pode-se dizer que os primeiros passos foram dados ai.

Graças à onda do swing e o sucesso das Big Bands nas primeiras décadas do século, brancos e negros se divertiam juntos em casas históricas como o Savoy. Dave queria fazer parte dessa história, mas no caminho surgira o conflito que definiria a política do século e a ameaça fascista parecia motivo o suficiente para adiar qualquer sonho.

É ai que reencontramos o soldado Brubeck do início do texto. Parte da minoria branca que não aceitava o segregacionismo racial dominante em seu país, Dave ficou chocado ao saber que, mesmo em tempos de guerra, tal pensamento vingava dentro do exército. Até o sangue para transfusão era separado entre, sangue branco, para soldados brancos; e negro, para soldados negros.

Logo após aportar na Europa, já acampado com seu regimento num posto aliado, aguardava às ordens para sua primeira missão. Foi durante a visita de um grupo de artistas, num dos eventos promovidos para distrair as tropas, que perguntaram entre os soldados se havia alguém capaz de tirar algumas notas no piano. A trupe tinha o instrumento, mas não o instrumentista. Já sentindo falta das teclas, Brubeck não perdeu a oportunidade e se ofereceu.

Sua performance agradou tanto que recebeu ordens de seus superiores para formar uma banda do exército. Acatou as ordens, porém fez questão de incluir negros entre seus músicos. Brigou principalmente por dois nomes, Gil White, mestre de cerimônias, e Richard Flowers, trombone. Em suas palavras, “se havia segregacionismo no exército, na Dave Brubeck Wolf Pack Band (nome que dera ao projeto) não haveria!”

A história está bem documentada na série “A história do jazz” de Ken Burns. Brubeck conta que, ao final da guerra, logo após desembarcar com seus músicos num porto Norte-Americano, decidiram todos almoçar e beber para comemorar. O dono do estabelecimento recusou-se a servi-los, alegando que, se eles insistissem em comer ali, os negros do grupo teriam que se alimentar na cozinha. Brubeck recusou e, ao saírem, ouviu de Richard Flowers: “Acabo de voltar de uma guerra que não era minha, disposto a dar meu sangue pelo meu país. Vi coisas que vão ficar comigo para sempre, como uma marca em minha alma. E, agora, nem posso me sentar para beber na mesma mesa que vocês, meus amigos. Qual o motivo daquilo tudo porque passamos?”

No mesmo episódio, o pianista conta que aprendeu a respeitar as diferenças com seu pai. Lembra-se do primeiro homem negro que viu. Segundo Brubeck, ainda era criança quando, certo dia, seu pai o chamou. “Quero que conheça meu amigo, filho.” Ao chegarem na casa desse amigo, que era negro, seu pai pediu: “Tire a camisa e mostre as suas costas para ele.” Havia marcas de açoites cicatrizadas deformando todo o corpo do homem. De forma severa, seu pai lhe disse: “Trouxe você aqui para que entenda, filho. Agora você tem idade para compreender e é bom guardar bem essa imagem. Esse tipo de coisa não pode acontecer nunca mais!”

Bons pais fazem grandes homens!

sábado, 30 de novembro de 2013

US 69 - Yesterday´s Folks (1969) - Disco




US 69 – Yesterday´s Folks (1969)
por César Alves


A primeira vez que ouvi esse disco foi na Galeria do Rock, na loja do Alberto, amigo e fornecedor de velharias sixties durante os anos 90. Uma daquelas pérolas obscuras do período que pouca gente conhece e deveria de tão bom. É o único disco que conheço desses caras e, correndo o risco de estar errado, também o único que gravaram.

Adoro a palavra, mas odeio usar o termo “psicodélico” quando o assunto é musica. Afinal, pode se referir a muita coisa e, algumas sem a menor relação, englobando dos 13th Floor Elevators aos Beatles, passando por Spacemen 3 e Mercury Ver e também Steppenwolf e Iron Butterfly – até o Serguei afirma ser psicodélico. Mas, no caso do US 69 e suas viagens musicais lisérgicas, não consegui encontrar outra definição. Sendo assim, dentre as diversas formas do universo rock psicodélico, eles estão no meio termo entre o que chamavam Psychedelic Folk e Psychedelic Jazz e se enquadram na categoria de bandas como The Insect Trust, que uniam pesquisa de efeitos sonoros eletrônicos que buscavam reproduzir no ouvinte as sensações de uma viagem de ácido, conduzidas por um amálgama de gêneros como o rock, o folk e o jazz.

Eram liderados pelo guitarrista e compositor Bill Durso. O time também contava com o baterista Bill Cartier e o baixista e flautista, Gil Nelson.

Sempre tive uma curiosidade a respeito dos outros dois integrantes que completam a cozinha; os irmãos Bob e Don DePalma, ambos multi instrumentistas, ambos de formação clássica e ambos oriundos da escola do jazz. Os irmãos DePalma possuem alguma relação com o cineasta Brian? Nunca encontrei nada a respeito. Não é só por causa do sobrenome, mas também porque descobri que, depois do US 69, durante os anos 70, a dupla passou a trabalhar para a indústria cinematográfica, conduzindo sonoplastia e compondo trilhas sonoras. Se algum de meus queridos amigos e amigas sabe se são parentes ou não, gostaria de saber.

Curiosidades à parte, trata-se uma excelente banda e ótimo disco e recomendo. É o tipo de álbum que se deixa rolar de cabo a rabo numa tarde de sábado ou dia de folga com os amigos ou sozinho, como trilha sonora da preguiça.
 
Difícil escolher uma parte de um disco cuja experiência real, só é completa no todo, mas destaco “African Sunshine” e a faixa de dez minutos que encerra a obra, “2069 – A Spaced Oddity”, certamente inspirada no filme de Kubrick e na obra de Arthur C. Clark, mas seria também uma referência a David Bowie?

sábado, 23 de novembro de 2013

Kurosawa e Honda - Stray Dog



Stray Dog – Da amizade de Korosawa e Honda
por César Alves

É lendária a amizade que existia entre Akira Kurosawa e Ishiro Honda. Ícones de sua geração, os realizadores tornaram-se referência de duas vertentes – para muitos, antagônicas – do cinema japonês.
Se Kurosawa é citado entre os monstros sagrados da cinematografia de seu país, Honda criou o monstro sagrado definitivo das matinês: Godzilla. Uma anedota contada entre cinéfilos japoneses brinca com o relacionamento dos cineastas.
Amigos de juventude, mesmo quando o trabalho os mantinha afastados, encontravam-se sempre no mesmo restaurante, pelo menos uma vez por ano. Na confraternização de 1954 a conversa teria sido a seguinte:

Honda: Akira, meu amigo! Há quanto tempo! Como é bom te ver!


Kurosawa: Muito bom te ver também, Ishiro! E o momento pede comemoração, pois acabo de finalizar “Os Sete samurais”!

Honda: Que ótima notícia, Akira!

Kurosawa: E você, Ishiro? Quero saber das novidades! O que você tem feito meu amigo?



Honda: Eu também estou muito feliz, Akira! Acabo de terminar “Godzilla”.

Kurosawa (disfarçadamente olhando para os lados): Você acha que chove hoje, Ishiro?


Embora divertida, a piada reflete mais o preconceito dos fãs do cinema dito “de arte” do que a realidade. Ambos nutriam respeito um pelo outro e admiravam-se mutuamente.


Conta-se que Kurosawa teria sugerido a Honda uma visita a Hiroshima para encontrar idéias para seu projeto ainda embrionário e que, anos depois, se tornaria “The H-man(1958)”, ficção científica inspirada no clássico B “A Bolha”, escondendo nas entrelinhas uma crítica aos bombardeios a Hiroshima e Nagasaki, assunto ainda tabu e engasgado na garganta do povo japonês. O pesadelo atômico como uma das marcas do “pai dos piores temores de Tóquio” teria surgido ai.

Honda, por sua vez, teria indicado ao colega certo jovem ator, um pouco indisciplinado, mas muito talentoso. Seu nome? Toshiro Mifune.
 
Lendas a parte, a parceria entre os dois mestres durou até a morte de Kurosawa. Clássicos como Ran, Sonhos e Rapsódia em Agosto, entre outros, tem Honda como produtor e até sua colaboração técnica.


Realizado pela dupla, Nora Inu/Stray Dog (1949), no Brasil “Cão Danado”, inaugura o cinema NipoNoir. O roteiro teria sido escrito pelo jovem Kurosawa como uma novela inspirada em George Simenon.


A trama gira em torno de uma pistola 45 roubada e depois utilizada em uma série de assassinatos misteriosos. Seu dono é o detetive Murakami, interpretado pelo jovem Toshiro Mifune. No Japão do pós-guerra, decidido a criar uma cultura pacifista depois da derrota frente aos aliados e a tragédia nuclear, poucos eram os oficiais da lei com direito a portar armas de fogo.
Como o samurai que perde sua espada, o policial que tem seu armamento extraviado é atingido em seu orgulho. Recuperá-lo é questão de honra.
É a deixa para que Murakami dê início a uma caçada implacável pelo submundo de Tóquio. A jornada sombria tem como mote: “O cão danado (prefiro vira-latas) só enxerga o que ele caça.”
Grande filme lançado por aqui com distribuição da Europa Filmes e também parte daquele Box do Kurosawa que saiu há coisa de uns dois anos. Vale a pena conferir.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Vejo a Terra Prometida - Arthur Flowers e Manu Chitrakar



A odisséia de Martin Luther King

Tradição e modernidade se encontram em Vejo a Terra Prometida, belíssima e original graphic novel que acaba de chegar às livrarias brasileiras.

Por César Alves

Aliar formas narrativas ancestrais à moderna linguagem dos quadrinhos para contar uma das mais fascinantes trajetórias de nossa história recente foi o ponto de partida para Vejo a Terra Prometida, premiada graphic novel da editora indiana Tara Books que acaba de sair no Brasil via Martins Fontes. A idéia era ousada: narrar a vida do pastor, ativista e um dos maiores símbolos da luta pela igualdade de direitos, Doutor Martin Luther King, utilizando a antiga arte patua de difundir mitos, lendas e fatos cotidianos através de pinturas em pergaminhos.

A missão foi dada ao bengalês Manu Chitrakar que, na ocasião, pouco sabia a respeito do Doutor King e a luta pelos direitos civis. Uma vez familiarizado com a história, o artista conseguiu captar de forma impressionante a essência do projeto, identificando nela traços que marcam a clássica jornada do herói desde os mitos fundadores das civilizações. Aqui, o ativista nos é apresentado como o escolhido pelos deuses para empreender uma odisséia de feitos sobrehumanos, com direito às tradicionais descidas ao inferno e ao desfecho heróico em sacrifício ritual. Como nas sagas ancestrais, em seu martírio, o herói oferece o próprio sangue em nome da liberdade de seu povo. É em seu flagelo que ele encontra a vitória. O resultado é uma série de painéis cuja beleza acabou por superar as expectativas dos editores.

Tendo em mãos as pinturas e sabendo estar em posse de um material especial, o próximo passo seria encontrar um autor cujo texto estivesse à altura do tratamento visual dado pelo artista. Escritor e bluesman, Arthur Flowers se encantou com a idéia logo de cara. Admirador e estudioso da vida e obra de Martin Luther King, o poeta é herdeiro da arte de contar histórias dos antigos mestres griots, responsável por manter viva a cultura ancestral africana via narrativa oral. Fruto daqueles turbulentos anos de 1960, o bardo afro-americano é também ativista e estava presente na noite em que o Doutor King fez o histórico discurso Estive no Alto da Montanha, o que o torna ainda mais íntimo do projeto. Seu texto retrata de forma brilhante um personagem cuja trajetória simboliza toda a luta dos afro-americanos por liberdade.

A narrativa começa com os primeiros africanos trazidos como escravos para as Américas, no que se classifica mais como o seqüestro de um povo do que como o êxodo negro descrito por muitos autores, até chegar às primeiras ações que levaram à conquista de seus direitos já na segunda metade do século XX. De maneira clara e fluida, o autor sintetiza a luta pelos direitos civis desde o simbólico e corajoso ato solitário de Rosa Parks em se recusar a ceder seu lugar no ônibus a um passageiro branco – o que resultou em sua prisão, tendo em vista as leis segregacionistas vigentes no período –, passando pelas manifestações pacíficas repreendidas com violência policial, o histórico protesto das crianças e o recrudescimento dos confrontos, com o surgimento dos movimentos mais radicais. No centro da arena, Martin Luther King, guerreiro movido pela roda do destino, armado apenas com suas idéias e seguro de seu conceito de ação direta pela não-violência.

Fascinado com os trabalhos do artista bengalês, Arthur Flowers optou por conduzir o texto de forma a respeitar as pinturas de Chitrakar, compondo versos baseados na tradição dos griots, que dialogam perfeitamente com as ilustrações. Ao invés dos balões que marcam os quadrinhos tradicionais, a narrativa segue livremente em comunhão com as imagens sem invadi-las, fazendo uso apenas de caixas para dar destaque aos fatos mais marcantes, às vezes lembrando o cordel brasileiro.

Tão antigas quanto o cinema, as histórias em quadrinhos percorreram um longo caminho até fugir da definição simplista de mero entretenimento de massa. Se hoje finalmente alcançaram o status de arte, as narrativas gráficas de Will Eisner e o advento das Graphic Novels, caso da obra em questão, merecem muito do crédito. Se o leitor ainda tem dificuldade em aceitar tal fato, Vejo a terra prometida oferece boa oportunidade para rever sua opinião. Em sua beleza e originalidade, tanto narrativa quanto visual, a obra é exemplo do potencial dos quadrinhos como autentica expressão artística e dona de um vasto território ainda por ser explorado.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

A Fotomontagem como Arma - John Heartfield

 
 
John Heartfield e a fotomontagem como arma política
 
Considerado o “pai da fotomontagem política”, John Heartfield é tema de livro que reúne reproduções de sua obra antifascista, produzida durante o período que vai da ascensão de Adolf Hitler ao poder ao início da Segunda Guerra.
 
por César Alves
 
É comum o erro de interpretar a ascensão do nazismo a uma adesão unânime dos alemães ao populismo de Adolf Hitler e seus seguidores. A existência de uma publicação como a AIZ (Arbeiter Illustrierte Zeitung – Revista ilustrada do trabalhador), editada entre 1930 e 1938 e que chegou a ter tiragens de 500 mil exemplares semanais, põe por terra tal teoria. Idealizado pelos irmãos Helmut e Wieland Herzfeld, o periódico – que, a partir de 1936, passou a se chamar VI (Volks Illustrierte – Revista Ilustrada do Povo) – manteve de forma corajosa durante toda a sua existência uma postura combativa ao nazismo, abordando através da crítica feroz, inteligente e bem humorada a chegada de Hitler ao poder e os perigos que isso representava. Grande parte de seu mérito está nas ilustrações, através da técnica da fotomontagem, de John Heartfield (1891-1968).
 
Verdadeiro nome de Helmut Herzfeld, que adotou o anglicismo para assinar sua obra como um protesto contra a xenofobia antibritânica dos fascistas alemães, Heartfield é tema do livro John Heartfiel – Fotomontagem, focado em sua produção na AIZ e VI e que acaba de chegar às livrarias brasileiras pela Imprensa Oficial.
 
Um dos principais expoentes do braço berlinense do movimento de vanguarda artística Dada (ele idealizou e editou a publicação Der DADA e organizou a Primeira Feira Dada Internacional de Berlim em 1920), Heartfield é considerado o pai da fotomontagem política.
 
Em 1917, um ano depois de adotar o novo nome, fundou a editora Malik junto com seu irmão, Wieland Herzfeld, pela qual editaram livros e o jornal Neue Jugend (Nova Juventude) que contava com a colaboração do pintor e desenhista expressionista, George Grosz, com quem Heartfield manteve uma rica parceria. Vem justamente de suas discussões com Grosz a idéia do uso da técnica de colagem e fotomontagem como instrumento de conscientização política, o que já estava claro nas páginas do Neue Jugend, mas que seria explorado com mais intensidade anos depois com o lançamento da AIZ.
 
 
Heartfield ingressou no Partido Comunista Alemão em 1918 e foi próximo da Liga Spartakus, dirigida por Rosa Luxemburgo e Karl Liebnech.  Idealista e dono de um talento artístico compromissado com o engajamento político e social, foi essa a postura que Heartfield e os demais colaboradores da AIZ decidiram imprimir à revista.
 
Durante o período que vai da ascensão eleitoral do partido nazista, passa pela nomeação de Hitler como Chanceler em 1933 e chega até bem pouco antes do conflito mundial, o artista criou 237 obras, produzidas em rotogravura e tipografia, marcadas pela precisão técnica e artística, fortemente influenciada por Goya e Daumier. Heartfield, que dizia “pintar com fotografias”, apostava no choque através de fragmentos de imagens, utilizando conflitos gráficos, ópticos, espaciais e cromáticos para expor as relações de poder e a brutalidade do nazifascismo. Tal estratégia se assemelha à utilizada pelo cineasta russo Serguei Einsentein em seus filmes, conforme nos chama a atenção a especialista Annateresa Fabris em texto escrito para o livro.
 
Tanto quanto sua maestria técnica e artística também impressiona o humor sarcástico e ácido de John Heartfield, muito explorado nas obras que ilustram o livro. O artista não poupava esforços para acusar Hitler, seus seguidores e apoiadores, muitas vezes, mostrando o líder nazista como um fantoche nas mãos da elite industrial alemã.
 
No icônico Adolf, o super-homem: engole ouro e fala fino, de 1935, uma chapa de raios-x revela o ditador como tendo uma espinha dorsal feita de moedas e um estômago recheado de ouro, enquanto, ao invés de um coração, em seu peito bate uma suástica.
 
A paródia encontra relação com outras duas imagens; em uma delas, médicos examinam a chapa de um paciente que faz a saudação nazista e se deparam com a espinha curvada, remetendo aos desvios de conduta do regime e em outra apresenta uma suástica feita de moedas, com o título: Sob este símbolo serás conduzido à guerra e a bancarrota, referência à frase dita por um anjo sobre a visão de uma cruz no céu testemunhada durante o sonho que teria levado o imperador romano Constantino a aceitar o cristianismo.
 
Mas se a sátira dá o tom em trabalhos que mostram Goebbles preparando o Führer para um discurso dirigido aos trabalhadores com uma barba postiça de Karl Marx e o de uma família sentada à mesa de jantar (reproduzindo uma peça publicitária), em que os alimentos são instrumentos de metal, sob o título Hurrah! Acabou a manteiga e que alude à falta de alimentos em meio a imensos incentivos financeiros para a indústria siderúrgica nos preparativos para a guerra, por exemplo, em outras, como a que representa uma pomba branca empalada na adaga de uma baioneta para relembrar o massacre dos operários de Genebra, a mensagem é direta e a intenção é mesmo o choque.
 
Tamanha ousadia e coragem em dias tão sombrios não poderiam passar impunes e, em 1933, Heartfield se viu obrigado a fugir para a então Tchecoslováquia, exilando-se em Praga de onde continuou publicando a AIZ que, em suas últimas edições, circulou de forma clandestina na Alemanha. A revista resistiu até 1938, quando o artista se refugiou na Inglaterra de onde manteve seu ativismo contra os regimes autoritários e viveu até o fim da guerra.
 
Fotógrafo, designer gráfico, cenógrafo e promotor cultural, em 1950 Heartfield voltou a Berlim, onde trabalhou com Bertolt Brecht, criando desenhos gráficos e cenários para a Berliner Ensemble. Morreu em 1968, mantendo até o fim de seus dias seu engajamento artístico e sua postura política.
 
O livro que acaba de chegar às livrarias é resultado da exposição de mesmo nome que esteve no Museu Lasar Segall no final do ano passado. Traz, além de reproduções dos mais emblemáticos trabalhos de Heartfield no período de 1930 a 1938 e de capas da revista AIZ, textos de Annateresa Fabris, Jorge Szchwartz, Marcelo Monzani e Jeffrey Hoft.
 
Documento de importância histórica indiscutível e acabamento digno de um artista engajado na realidade social, cuja arte se confundiu com o compromisso e a coragem para acusar as arbitrariedades dos governos autoritários.
 
Serviço: Livro: John Heartfield – Fotomontagem – 196 páginas – Editora: Imprensa Oficial.

sábado, 2 de novembro de 2013

O Ponto Chic e a Boemia Paulistana



Ponto de encontro da Boemia com a História.
Por César Alves

Se a História também aprecia o Happy Hour, em São Paulo escolheu o Ponto Chic como parada obrigatória. Essa é a impressão que temos ao ler Ponto Chic – Um Bar na História de São Paulo, de Angelo Iacocca. Um dos mais antigos e tradicionais bares da cidade, o Ponto Chic faz parte da vida noturna da cidade há mais de nove décadas.
Mais que um estabelecimento comercial, foi incorporado como parte do cotidiano e, principalmente, da vida noturna da metrópole com a qual sua trajetória se confunde. De sua inauguração, ainda nas primeiras décadas do século vinte, aos dias atuais, o Ponto Chic tem sido testemunha ocular e, em alguns casos, cenário  das mudanças políticas, estruturais, culturais e comportamentais ocorridas na cidade.
Muitos dos provocadores e agentes de tais transformações, tinham o estabelecimento como seu local preferido para momentos de lazer e ponto de encontro etílicos, nos quais, além de descontração, buscavam debater acontecimentos e ideias. Sendo assim, não é exagero supor que, entre uma rodada de chope e outra, algumas discussões e conversas que ali aconteceram, tiveram impacto não só sobre a vida dos paulistanos, como também de todos os brasileiros.

Inaugurado no número 27 do Largo do Paissandu por Odilio Cecchini, um italiano boêmio e fanático pelo Palestra Itália, o bar e lanchonete logo se tornou parte importante da vida noturna que se desenvolvia ao longo da Avenida São João. Ali se encontravam a maioria dos cinemas, teatros, confeitarias e casas noturnas. Foi fundado pouco depois da Semana de Arte Moderna de 1922 e, entre os primeiros dos muitos notáveis que fariam parte de sua clientela, estavam os modernistas Oswald de Andrade e Sérgio Milliet. Em seus anos dourados, que vão da década vinte ao final dos anos sessenta, passaram pelo Ponto Chic artistas do circo, celebridades do cinema e da televisão, jornalistas, advogados, políticos, escritores, empresários e socialites, numa lista estelar que traz nomes como Anselmo Duarte, Cacilda Becker, Walmor Chagas, Lygia Fagundes Telles, Jorge Mautner, Antônio Bivar, Inácio de Loyla Brandão, que escreve o prefácio, entre outros. Adoniran Barbosa costumava se encontrar com os parceiros do Demônios da Garoa nas mesas do Ponto Chic e ali teria começado ou finalizado algumas de suas famosas composições como “Viaduto Santa Ifigênia”. Era também ponto de encontro de profissionais do futebol que para lá rumavam depois dos jogos no Pacaembu. As histórias envolvendo partidas marcantes, negociatas entre dirigentes dos times, jogadores boêmios e discussões entre torcedores afoitos representam alguns dos melhores momentos do livro.

O ambiente, no entanto, sempre foi democrático e ali também se encontravam populares como taxistas, bancários, professores e também representantes do submundo como prostitutas, cafténs e malandros. Teriam sido estes frequentadores os responsáveis por chamar o local de “ponto de gente chique” que, depois de abreviado para Ponto Chic, foi adotado pelos proprietários como nome oficial.

Casa oficial do Bauru

Os estudantes de direito da São Francisco são parte importantes dessa história. Jovens ainda anônimos, eles estavam entre os primeiros a adotar o estabelecimento como ponto de encontro e, no futuro, muitos teriam seus nomes incorporados à história do país. Um deles, Casimiro Pinto Neto, ficaria famoso como locutor do noticioso O Repórter Esso de São Paulo, mas seu nome seria eternizado como o criador do mais paulistano dos lanches. Apelidado pelos colegas Bauru, em referencia a sua cidade natal, em um dia de muita fome, Casimiro pediu ao sanduicheiro que abrisse um pão francês, tirasse o miolo e botasse queijo derretido dentro. Notando a falta de albumina, proteína e vitamina, o estudante completou o lanche com umas fatias de rost beef e rodelas de tomate. Os colegas o imitaram pedindo: “Me vê um do Bauru!” Nascia assim, sua Excelência, o Bauru.

Através de depoimentos de funcionários, frequentadores célebres e anônimos e uma profunda pesquisa, Iacocca parte da trajetória do Ponto Chic para traçar um histórico não só de São Paulo como da sociedade brasileira durante o século vinte, colaborando para fazer deste Ponto Chic - Um Bar na História de São Paulo  leitura deliciosa entre a uma ressaca e outra.