quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Vejo a Terra Prometida - Arthur Flowers e Manu Chitrakar



A odisséia de Martin Luther King

Tradição e modernidade se encontram em Vejo a Terra Prometida, belíssima e original graphic novel que acaba de chegar às livrarias brasileiras.

Por César Alves

Aliar formas narrativas ancestrais à moderna linguagem dos quadrinhos para contar uma das mais fascinantes trajetórias de nossa história recente foi o ponto de partida para Vejo a Terra Prometida, premiada graphic novel da editora indiana Tara Books que acaba de sair no Brasil via Martins Fontes. A idéia era ousada: narrar a vida do pastor, ativista e um dos maiores símbolos da luta pela igualdade de direitos, Doutor Martin Luther King, utilizando a antiga arte patua de difundir mitos, lendas e fatos cotidianos através de pinturas em pergaminhos.

A missão foi dada ao bengalês Manu Chitrakar que, na ocasião, pouco sabia a respeito do Doutor King e a luta pelos direitos civis. Uma vez familiarizado com a história, o artista conseguiu captar de forma impressionante a essência do projeto, identificando nela traços que marcam a clássica jornada do herói desde os mitos fundadores das civilizações. Aqui, o ativista nos é apresentado como o escolhido pelos deuses para empreender uma odisséia de feitos sobrehumanos, com direito às tradicionais descidas ao inferno e ao desfecho heróico em sacrifício ritual. Como nas sagas ancestrais, em seu martírio, o herói oferece o próprio sangue em nome da liberdade de seu povo. É em seu flagelo que ele encontra a vitória. O resultado é uma série de painéis cuja beleza acabou por superar as expectativas dos editores.

Tendo em mãos as pinturas e sabendo estar em posse de um material especial, o próximo passo seria encontrar um autor cujo texto estivesse à altura do tratamento visual dado pelo artista. Escritor e bluesman, Arthur Flowers se encantou com a idéia logo de cara. Admirador e estudioso da vida e obra de Martin Luther King, o poeta é herdeiro da arte de contar histórias dos antigos mestres griots, responsável por manter viva a cultura ancestral africana via narrativa oral. Fruto daqueles turbulentos anos de 1960, o bardo afro-americano é também ativista e estava presente na noite em que o Doutor King fez o histórico discurso Estive no Alto da Montanha, o que o torna ainda mais íntimo do projeto. Seu texto retrata de forma brilhante um personagem cuja trajetória simboliza toda a luta dos afro-americanos por liberdade.

A narrativa começa com os primeiros africanos trazidos como escravos para as Américas, no que se classifica mais como o seqüestro de um povo do que como o êxodo negro descrito por muitos autores, até chegar às primeiras ações que levaram à conquista de seus direitos já na segunda metade do século XX. De maneira clara e fluida, o autor sintetiza a luta pelos direitos civis desde o simbólico e corajoso ato solitário de Rosa Parks em se recusar a ceder seu lugar no ônibus a um passageiro branco – o que resultou em sua prisão, tendo em vista as leis segregacionistas vigentes no período –, passando pelas manifestações pacíficas repreendidas com violência policial, o histórico protesto das crianças e o recrudescimento dos confrontos, com o surgimento dos movimentos mais radicais. No centro da arena, Martin Luther King, guerreiro movido pela roda do destino, armado apenas com suas idéias e seguro de seu conceito de ação direta pela não-violência.

Fascinado com os trabalhos do artista bengalês, Arthur Flowers optou por conduzir o texto de forma a respeitar as pinturas de Chitrakar, compondo versos baseados na tradição dos griots, que dialogam perfeitamente com as ilustrações. Ao invés dos balões que marcam os quadrinhos tradicionais, a narrativa segue livremente em comunhão com as imagens sem invadi-las, fazendo uso apenas de caixas para dar destaque aos fatos mais marcantes, às vezes lembrando o cordel brasileiro.

Tão antigas quanto o cinema, as histórias em quadrinhos percorreram um longo caminho até fugir da definição simplista de mero entretenimento de massa. Se hoje finalmente alcançaram o status de arte, as narrativas gráficas de Will Eisner e o advento das Graphic Novels, caso da obra em questão, merecem muito do crédito. Se o leitor ainda tem dificuldade em aceitar tal fato, Vejo a terra prometida oferece boa oportunidade para rever sua opinião. Em sua beleza e originalidade, tanto narrativa quanto visual, a obra é exemplo do potencial dos quadrinhos como autentica expressão artística e dona de um vasto território ainda por ser explorado.

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