terça-feira, 5 de novembro de 2013

A Fotomontagem como Arma - John Heartfield

 
 
John Heartfield e a fotomontagem como arma política
 
Considerado o “pai da fotomontagem política”, John Heartfield é tema de livro que reúne reproduções de sua obra antifascista, produzida durante o período que vai da ascensão de Adolf Hitler ao poder ao início da Segunda Guerra.
 
por César Alves
 
É comum o erro de interpretar a ascensão do nazismo a uma adesão unânime dos alemães ao populismo de Adolf Hitler e seus seguidores. A existência de uma publicação como a AIZ (Arbeiter Illustrierte Zeitung – Revista ilustrada do trabalhador), editada entre 1930 e 1938 e que chegou a ter tiragens de 500 mil exemplares semanais, põe por terra tal teoria. Idealizado pelos irmãos Helmut e Wieland Herzfeld, o periódico – que, a partir de 1936, passou a se chamar VI (Volks Illustrierte – Revista Ilustrada do Povo) – manteve de forma corajosa durante toda a sua existência uma postura combativa ao nazismo, abordando através da crítica feroz, inteligente e bem humorada a chegada de Hitler ao poder e os perigos que isso representava. Grande parte de seu mérito está nas ilustrações, através da técnica da fotomontagem, de John Heartfield (1891-1968).
 
Verdadeiro nome de Helmut Herzfeld, que adotou o anglicismo para assinar sua obra como um protesto contra a xenofobia antibritânica dos fascistas alemães, Heartfield é tema do livro John Heartfiel – Fotomontagem, focado em sua produção na AIZ e VI e que acaba de chegar às livrarias brasileiras pela Imprensa Oficial.
 
Um dos principais expoentes do braço berlinense do movimento de vanguarda artística Dada (ele idealizou e editou a publicação Der DADA e organizou a Primeira Feira Dada Internacional de Berlim em 1920), Heartfield é considerado o pai da fotomontagem política.
 
Em 1917, um ano depois de adotar o novo nome, fundou a editora Malik junto com seu irmão, Wieland Herzfeld, pela qual editaram livros e o jornal Neue Jugend (Nova Juventude) que contava com a colaboração do pintor e desenhista expressionista, George Grosz, com quem Heartfield manteve uma rica parceria. Vem justamente de suas discussões com Grosz a idéia do uso da técnica de colagem e fotomontagem como instrumento de conscientização política, o que já estava claro nas páginas do Neue Jugend, mas que seria explorado com mais intensidade anos depois com o lançamento da AIZ.
 
 
Heartfield ingressou no Partido Comunista Alemão em 1918 e foi próximo da Liga Spartakus, dirigida por Rosa Luxemburgo e Karl Liebnech.  Idealista e dono de um talento artístico compromissado com o engajamento político e social, foi essa a postura que Heartfield e os demais colaboradores da AIZ decidiram imprimir à revista.
 
Durante o período que vai da ascensão eleitoral do partido nazista, passa pela nomeação de Hitler como Chanceler em 1933 e chega até bem pouco antes do conflito mundial, o artista criou 237 obras, produzidas em rotogravura e tipografia, marcadas pela precisão técnica e artística, fortemente influenciada por Goya e Daumier. Heartfield, que dizia “pintar com fotografias”, apostava no choque através de fragmentos de imagens, utilizando conflitos gráficos, ópticos, espaciais e cromáticos para expor as relações de poder e a brutalidade do nazifascismo. Tal estratégia se assemelha à utilizada pelo cineasta russo Serguei Einsentein em seus filmes, conforme nos chama a atenção a especialista Annateresa Fabris em texto escrito para o livro.
 
Tanto quanto sua maestria técnica e artística também impressiona o humor sarcástico e ácido de John Heartfield, muito explorado nas obras que ilustram o livro. O artista não poupava esforços para acusar Hitler, seus seguidores e apoiadores, muitas vezes, mostrando o líder nazista como um fantoche nas mãos da elite industrial alemã.
 
No icônico Adolf, o super-homem: engole ouro e fala fino, de 1935, uma chapa de raios-x revela o ditador como tendo uma espinha dorsal feita de moedas e um estômago recheado de ouro, enquanto, ao invés de um coração, em seu peito bate uma suástica.
 
A paródia encontra relação com outras duas imagens; em uma delas, médicos examinam a chapa de um paciente que faz a saudação nazista e se deparam com a espinha curvada, remetendo aos desvios de conduta do regime e em outra apresenta uma suástica feita de moedas, com o título: Sob este símbolo serás conduzido à guerra e a bancarrota, referência à frase dita por um anjo sobre a visão de uma cruz no céu testemunhada durante o sonho que teria levado o imperador romano Constantino a aceitar o cristianismo.
 
Mas se a sátira dá o tom em trabalhos que mostram Goebbles preparando o Führer para um discurso dirigido aos trabalhadores com uma barba postiça de Karl Marx e o de uma família sentada à mesa de jantar (reproduzindo uma peça publicitária), em que os alimentos são instrumentos de metal, sob o título Hurrah! Acabou a manteiga e que alude à falta de alimentos em meio a imensos incentivos financeiros para a indústria siderúrgica nos preparativos para a guerra, por exemplo, em outras, como a que representa uma pomba branca empalada na adaga de uma baioneta para relembrar o massacre dos operários de Genebra, a mensagem é direta e a intenção é mesmo o choque.
 
Tamanha ousadia e coragem em dias tão sombrios não poderiam passar impunes e, em 1933, Heartfield se viu obrigado a fugir para a então Tchecoslováquia, exilando-se em Praga de onde continuou publicando a AIZ que, em suas últimas edições, circulou de forma clandestina na Alemanha. A revista resistiu até 1938, quando o artista se refugiou na Inglaterra de onde manteve seu ativismo contra os regimes autoritários e viveu até o fim da guerra.
 
Fotógrafo, designer gráfico, cenógrafo e promotor cultural, em 1950 Heartfield voltou a Berlim, onde trabalhou com Bertolt Brecht, criando desenhos gráficos e cenários para a Berliner Ensemble. Morreu em 1968, mantendo até o fim de seus dias seu engajamento artístico e sua postura política.
 
O livro que acaba de chegar às livrarias é resultado da exposição de mesmo nome que esteve no Museu Lasar Segall no final do ano passado. Traz, além de reproduções dos mais emblemáticos trabalhos de Heartfield no período de 1930 a 1938 e de capas da revista AIZ, textos de Annateresa Fabris, Jorge Szchwartz, Marcelo Monzani e Jeffrey Hoft.
 
Documento de importância histórica indiscutível e acabamento digno de um artista engajado na realidade social, cuja arte se confundiu com o compromisso e a coragem para acusar as arbitrariedades dos governos autoritários.
 
Serviço: Livro: John Heartfield – Fotomontagem – 196 páginas – Editora: Imprensa Oficial.

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