quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A Lenda do Santo Beberrão - Joseph Roth



A Redenção da Boemia

Um dos melhores escritores europeus do período entre guerras, Joseph Roth, volta à nossas livrarias com as traduções de A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy.
Por César Alves

Você está numa biblioteca ou livraria e, como que por mágica, um estranho aparece e se identifica como sendo a Morte, avisando-lhe de que seu tempo está prestes a chegar ao fim. Mas, como é do comportamento do Ceifador – a Morte odeia se atrasar e por conta disso, sai cedo de casa para cumprir com seus afazeres –, ele se adiantou demais e informa que você ainda tem entre vinte minutos e meia hora de vantagem, antes de seguirem viagem. Sabendo que é muito pouco tempo para qualquer outra coisa, ele sugere que escolha um livro e faça sua última leitura, já que gosta de ler.
A pegadinha é: Que obra você escolheria?
A brincadeira era feita entre amigos que gostavam de literatura, normalmente ao redor de uma mesa de bar e com muita cerveja. Depois de ouvir da maioria que escolheriam seus poemas prediletos de As Flores do Mal de Baudelaire, Uma Temporada no Inferno de Rimbaud, algo do Bandeira ou um conto de Tolstói e etc, eu dizia que convidaria a Indesejada para ir comigo até um bar para tomarmos a saideira definitiva e, dando uma de Compadre da Morte, como no mito folclórico, tentaria ludibriá-la, embriagando-a e convencendo a danada a cair na farra em direção ao Baixo Augusta. Não funcionando, escolheria como livro derradeiro o belo A Lenda do Santo Beberrão de Joseph Roth.
A protocrônica cotidiana acima é só para falar do grato lançamento – não tão recente, aliás – da Editora Estação Liberdade. Há alguns meses, a editora lançou por aqui traduções de dois títulos de Joseph Roth; A Lenda do Santo Beberrão – principal tema de nosso papo aqui – e Hotel Savoy.
 Considerada “Obra-testamento”, A Lenda do Santo Beberrão foi o último livro escrito por Joseph Roth, também autor de A Teia da Aranha (1923) e A Marcha de Radetzky (1932) e um dos grandes autores universais pouco lidos no Brasil.
A escolha da pedida literária para meus últimos vinte minutos sobre a terra não é apenas por ser uma das minhas preferidas, é que também é possível ler o livro, do início ao fim e sem pressa, em pouco mais de um terço de hora. Trata-se de uma belíssima e curta novela de 22 páginas, capaz de tocar até mesmo aqueles que trazem um bloco de mármore ao invés de um coração batendo no peito.
Escrita como um misto de fábula e parábola cristã – mas nada carola é bom frisar –, A Lenda do Santo Beberrão começa como uma crônica cotidiana ambientada na Paris das primeiras décadas do século vinte, quando toda a Europa vivia envolta em névoas de incerteza, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.
Seu protagonista é um mendigo e alcoólatra que vaga pelas ruas e cantos menos iluminados da Cidade Luz, como os muitos que assim o faziam na época. Certa noite, quando se abrigava sob uma ponte do Rio Sena, aproxima-se um senhor muito bem vestido que puxa assunto e lhe oferece uma grande soma em dinheiro (200 Francos). Segundo o estranho benfeitor, o sem teto teria sido posto em seu caminho por designação divina, tendo em vista que ele, sendo um homem de fé, estava a cata de uma ação benevolente a um desconhecido como que para pagar uma promessa em agradecimento à bondade de Deus que nunca lhe faltara.

Apesar de suas condições, o miserável recusa a oferta, não por orgulho, mas por nutrir um profundo senso de retidão e idoneidade. Jamais aceitaria uma soma monetária por caridade, a ser que pudesse compensá-la com seu trabalho ou ter como devolvê-la, como um empréstimo, assim que se encontrasse em melhor situação.
Sendo ambos devotos de Santa Terezinha de Lisieux, o impasse é resolvido com o mendigo se comprometendo a devolver o valor que lhe é entregue à caixa de donativos da igreja da santa, no prazo de uma semana.
Com mais dinheiro do que jamais possuíra, o pobre coitado aproveita para alugar um quarto num albergue, tomar um banho e dormir numa cama, como não fazia há anos. Boêmio e incapaz de resistir ao chamado da boemia, ele torra todo o dinheiro com bebidas e mulheres.
A partir daí, a trama gira em torno do protagonista, personagens que ele encontra e as situações inusitadas por que passa durante sua obstinada busca para cumprir com sua promessa. Ele consegue o dinheiro, às vezes quase que por milagre, mas de uma vez. Mas, sempre que está prestes a pagar a dívida para com a santa, algo acontece.
Além de ser sua obra derradeira, o motivo de A Lenda do Santo Beberrão ser considerada a “obra testamento” de Joseph Roth também diz respeito ao conteúdo autobiográfico da novela. O protagonista da trama, nada mais é que um alter ego do autor, tendo com seu criador diversos pontos em comum. Assim como o mendigo, Roth também mantinha uma vida de andarilho. Embora sua trajetória e carreira tenham obtido reconhecimento na época, entre a Alemanha e a França, o autor nunca adotou um endereço fixo ou duradouro, viajando e passando por diversos países europeus até seus derradeiros dias. Além de religioso, como seu personagem, Roth também era alcoólatra, entre outras coisas em comum.
Adaptado para o cinema pelo diretor italiano Ermano Olmi, A Lenda do Santo Beberrão ganhou o Leão de Ouro de Veneza de 1988. O filme merece ser visto. Além de ser uma feliz adaptação, também e traz a boa interpretação do holandês Hutger Hauer como o mendigo.
Filho de uma família judaica de Brody, hoje parte da Ucrânia, Joseph Roth nasceu em 1894, nos dias finais do Império Austro-Húngaro. Além de brilhante jornalista, sua obra ficcional foi marcada por personagens à margem de uma Europa angustiada pelo pesadelo diário que marcaram os dias do período entre guerras, que o autor conseguiu retratar como poucos.
Deprimido com os acontecimentos que assolavam o continente europeu, precedendo a inevitável guerra, principalmente a ascensão do nazismo na Alemanha, e cada vez mais mergulhado no alcoolismo, Joseph Roth faleceu em Paris, em 27 de Maio de 1939.

Joseph Roth nas livrarias:
Como dito acima, apesar de sua importância e qualidades indiscutíveis, Joseph Roth parece pouco lido ou, no mínimo, menos comentado e difundido do que sua obra merece. Mas existem bons títulos do autor em nossas livrarias e, além dos dois títulos lançados pela Estação Liberdade – A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy –, sugiro outros dois ótimos livros da Companhia das Letras abaixo:

Berlim Ótimo título da não menos ótima coleção Jornalismo Literário da editora, o livro compila artigos que revelam o brilhantismo do trabalho de Joseph Roth como homem de imprensa. Aqui, o autor faz uma crônica da Berlim da década de 1920. Em suas andanças, o autor destrincha o cotidiano da antiga capital prussiana, quando coração da recém-inaugurada República de Weimar. Passeia por bosques e praças e edifícios e bondes, refletindo sobre o significado da natureza, diante da paisagem artificial da modernidade. Caminha entre bairros de imigrantes, decifra a vida noturna berlinense e visita campos de refugiados e faz um tour pela cidade ao lado de um criminoso que acaba de sair da prisão para, através da ótica de seu companheiro, compreender a medida das transformações ocorridas na metrópole.


Aqui, reencontramos o grande escritor de ficção e fascinante tradutor de seus dias. Usando como pano de fundo os dias que marcaram o início da primeira guerra, Joseph Roth narra a trajetória do judeu e muito religioso, Mendel Singer, para criar uma releitura do livro de Jó. Homem modesto e temente a Deus, Singer vive com sua família numa cidadezinha russa. Apesar de humildes, são felizes e gratos pela vida que levam. A tranqüilidade e os bons dias que Singer atribui à benevolência da Providência Divina acabam com o estouro do conflito e, assim como o personagem bíblico, o personagem descobre-se face a um teste para comprovar sua fé.


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O Novo Jornalismo (Gonzo?) nos Dias da Peste



O Novo Jornalismo (Gonzo?) nos Dias da Peste
por César Alves

“O New Journalism é como o Punk: Tem tantos pais que,se a concepção não ocorreu durante uma orgia, as mães, certamente, não acreditam na monogamia”, já disse a colegas de profissão, em diversas ocasiões, quando o assunto é o Jornalismo Literário e a geração americana que ganhou notoriedade como Novo Jornalismo.
A brincadeira tem mais a intenção de fazer rir do que provocar e, muito menos, ofender a(s) progenitora (s) - longe de mim, isso de colocar a mãe no meio (risos) - um gênero ligado a gente que me influenciou muito, como Gay Talese, Truman Capote, Tom Wolfe, Norman Mailer, Hunter Thompson – na sua própria versão, o Jornalismo Gonzo – e outros.
Por outro lado, não é de toda desprovida de sentido. Afinal, como jornalismo literário, técnica de reportagem que une formas narrativas e estilo vindos da literatura ao texto jornalístico não é exatamente uma criação da América do pós-guerra. John Reed e outros já o faziam no início do mesmo século. Aqui no Brasil, Joel Silveira, A Víbora, já dava às suas reportagens o ritmo e o tratamento que os grandes escritores dão à ficção na década de 40 – para ficar apenas no meu predileto, entre muitos outros brasileiros que souberam unir muito bem o jornalismo e a literatura.
Mas é possível afirmar que, muito antes disso, jornalismo e literatura deitavam-se na mesma cama. O que dizer, por exemplo, dos textos escritos pelo poeta alemão, ícone do romantismo germânico, Heinrich Heine, durante o período em que se exilou na França e decidiu aproveitar sua boa relação com a efervescente agitação cultural parisiense para cobrir espetáculos teatrais e grandes eventos sociais para editores de seu país de origem? São do início do século dezoito.

Sendo possível construir uma árvore genealógica do New Journalism e mesmo do estilo Gonzo de Hunter Thompson – como o leitor irá descobrir mais adiante –, a partir dos exemplos citados acima, o autor de Robinson Crusoé e Moll Flanders, Daniel Defoe, talvez tenha lugar privilegiado, como um dos primeiros a praticá-lo. Seu Um Diário do Ano da Peste (A Journal of The Plague Year – 1722) foi defendido por muita gente – Gabriel Garcia Marquez, entre os mais notórios – como um dos primeiros livros reportagens da história.
E não é pra menos. Inquietante e surpreendente, a obra narra os dias sombrios da epidemia que assolou Londres entre os anos de 1665 e 1666, resultando em um número de vítimas calculado entre 75 e 100 mil mortos – um quinto da população da cidade.
Conta-se que Defoe teria se recusado a aceitar o conselho de familiares e amigos para que buscasse refúgio fora de Londres, até que o contágio fosse controlado, como fizeram todas as pessoas de posses e membros da elite londrina. Acreditando que fugir seria inútil e, conforme a praga fosse se espalhando, cedo ou tarde ela o pegaria, não importando sua localização. Decidido a não se trancar em casa, o autor passou a registrar os acontecimentos durante a epidemia, como registro histórico para a posteridade ou forma de passar o tempo, até que a doença fosse controlada ou o vitimasse.
Trata-se uma reportagem completa, com direito a dados estatísticos sobre número de contagiosos e vítimas fatais, entrevistas com famílias e descrição dos fatos, trazendo já em sua essência uma das características mais marcantes do Novo Jornalismo: O repórter, narrador, também como agente participante da história.
Bom, o amigo leitor pode achar meus argumentos convincentes, quanto ao livro ter características de jornalismo literário e até do New Journalism, mas estar se perguntando: Onde o Gonzo entra na história?
Já explico.
Além de autor de ficção, Defoe era também jornalista – editou seu próprio periódico, The Review, por conta própria –, e escreveu sua obra como depoimentos de uma testemunha ocular da história e, durante muito tempo, muita gente a enxergou assim. O relato fidedigno, os dados numéricos comprovados com exatidão, o fato histórico e a seriedade narrativa apóiam a tese e assim a obra continuou sendo divulgada mesmo muitos anos após a morte de Defoe.

Décadas depois, no entanto, biógrafos de Daniel Defoe se depararam com uma questão surpreendente em relação ao Diário do Ano da Peste: os números não batiam! Comparando as datas de nascimento do autor com o ano em que ocorreu a epidemia de peste bubônica em Londres, os relatos não poderiam ter sido registrados por ele que, na época, estaria com idade entre cinco e seis anos!
Ora, mister Defoe não só abusou do estilo jornalismo literário, como também deve ter feito o primeiro livro reportagem Gonzo conhecido. No mínimo, uma pegadinha digna de Hunter Thompson!
As experiências jornalístico-literárias de Daniel Defoe, no entanto, não terminam ai. Em 1723, durante uma visita à Escócia, o autor tomou conhecimento da história de um fora-da-lei local, Rob Roy. Pesquisando a respeito de sua história, tomou conhecimento de que o bandido era na verdade Robert Roy McGregor, do clã McGregor, que, após aderir à Rebelião Jacobita e ser derrotado na batalha de Glen Shiel, teria tido suas terras expropriadas e partido para a clandestinidade, realizando roubos e assaltos que eram contados como lendas pela população local.
Vendo ai uma grande história, Defoe escreveu um relato romanceado, dando seus toques pessoais a trama, contando as aventuras de Rob Roy, como o rebelde libertário que “roubava dos ricos para dar aos pobres”, Highland Rougue. O texto fez sucesso, tanto na Escócia como em toda a Europa, e elevou a lenda de Robin dos Bosques para a de herói nacional. Graças ao texto, em 1723, o Rei George I acabou vendo-se obrigado a dar a seu desafeto político o perdão real.



quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Vladímir Sorókin - Dostoiévski-trip




Barato da Literatura Quando Vício
por César Alves

Os amantes da literatura já devem ter experimentado a sensação de que o hábito de ler e pesquisar certos autores e obras, muitas vezes, se aproxima do vício. Descobrir um autor e sentir a necessidade de ler e reler toda a obra mais de uma vez é quase como encontrar aquela fórmula perfeita, lícita ou não, para os males da existência – com o perdão da filosofia barata. Para os que sofrem de tal dependência, a livraria, biblioteca ou estante de livros pessoal é feito farmácia, o sebo, uma boca de fumo, onde encontra obras não-ilícitas, mas tão raras que são como se proibidas, depois de anos fora das prateleiras. O atendente da livraria, seu farmacêutico; o alfarrabista, seu traficante ou dealer. Existem, inclusive, aqueles que despertam a curiosidade e, quando finalmente experimentamos, não bate ou dá barato! Livros feito placebos; autores que são feito cocaína batizada ou “fumo palha”.
Assim como o viciado em drogas, o dependente do verso e da prosa, mesmo percebendo o mal que o mergulho no universo de certos autores lhe causa, sente o desejo irresistível de ir além. Não havendo clínica de reabilitação, nem um programa dos sete passos para retroceder ao Paraíso da Ignorância, o leitor segue em busca de novas doses de psicotrópicos filosóficos, estimulantes existenciais, misturando doses de tramas, personagens, ficção, realismo, fantasia e fantástico, com formas narrativas, verbais, experimentos estético-textuais, num Breaking Bad químico-literário que só acaba com a inevitável overdose das letras, num quarto solitário ou laboratório clandestino de meta-anfetaletras.
Pedindo perdão pelo enorme nariz de cera acima – entenda como exemplo de como bate o barato das letras no leitor que também escreve, antes que eu fuja do tema, vamos logo ao que interessa.
Se toda aquela minha conversa fiada que abre o texto tem algum sentido, não é exagero dizer que, para alguns leitores, obras e autores, títulos e nomes escritos nas bordas dos livros, dispostos nas estantes, são como uma variedade de fármacos e substâncias, nas prateleiras de uma drogaria ou nas mãos de um traficante dos lados selvagens da paisagem urbana.
Tal analogia pode ser o que baliza a trama de Dostoiévski-Trip, peça de um único ato, escrita por um dos mais celebrados nomes da literatura contemporânea russa, Vladímir Sorókin, e publicado recentemente no Brasil pela Editora 34.
Com tradução e posfácio de Arlete Cavaliere, a obra é ótima introdução ao universo de Sorókin.
Protagonizado por sete personagens – cujos nomes não sabemos, assim como o lugar onde a historia se passa – que aguardam a chegada de um misterioso fornecedor, o texto abre com os diálogos inevitáveis que a impaciência costuma impor aos desconhecidos. Não demora e o leitor vai sacar que todos ali são como o personagem de uma velha canção do Velvet Underground, e estão waiting for their man. Sim, todos junkies! Viciados na droga da literatura. O traficante que eles esperam, negocia uma variedade de substâncias ilícitas que costuma trazer em uma maleta. São cápsulas com doses de William Faulkner, Franz Kafka, Tolstoi, Gogól, Celiné, Sartre e o que mais o cliente precisar.
Sim, a citação é intencional, os personagens estão a procura de um autor ou Sete Viciados à Procura de um Autor – novamente, pedindo perdão pelo trocadilho infame.
Mas essa é apenas a primeira das muitas sacadas interessantes e cômicas do livro. Como viciados que esperam o fornecedor que está atrasado e tentam evitar pensar na síndrome de abstinência, eles conversam para passar o tempo e evitar pensar no pior cenário: o de que ele não apareça. Como todo viciado, sem a substância de seu vício, o assunto não é outro senão as drogas, suas experiências com ela e seus efeitos.
São justamente os diálogos entre os cinco homens e as duas mulheres e suas histórias e experiências com substâncias de muitos dos nomes mais celebrados da literatura universal que compõem a primeira parte da narrativa, que empolga, envolve e surpreende o leitor, principalmente com a chegada do negociante que os personagens aguardam. Como sempre, em sua valise o homem tem tudo, mas sugere aos clientes uma novidade: um novo produto de nome Dostoiévski!
Vou parar por aqui para não estragar o barato da viagem, mas a experiência lisérgica, em que os personagens são transportados para uma passagem conhecida de O Idiota, que culmina em uma terrível bad-trip é fantástica.
Carregada de humor, sarcasmo, violência, pornografia e escatologia, a obra de Sorókin não é o tipo de narcótico para estômagos fracos, é sempre bom avisar. Opositor assumido de Putin, Vladímir Sorókin surgiu na cena underground moscovita dos anos oitenta. Mas, embora reconhecido mundialmente desde 1985, quando seu romance A Fila foi publicado na França, o autor foi censurado em seu país e seu primeiro livro na terra pátria só saiu em 1992, uma coletânea de Contos Escolhidos.
Entre seus diversos romances e peças, merecem destaque O Dia do Opríchnik (2006), a trilogia Gelo (2002), O Caminho de Bro (2004) e 23000 (2005).

Serviço: Dostoiévski-Trip; Autor: Vladímir Sorókin; editora: Editora 34





quinta-feira, 31 de julho de 2014

Família Sagrada - William Goldwin, Mary Wollstonecraft e Mary Shelley



A Sagrada Família do Fim da Tradição e da Propriedade
por César Alves

O Século Dezoito tem como principal marca o fortalecimento das idéias iluministas e seus efeitos políticos, sociais e culturais. Lembrar as revoluções e o declínio das monarquias e a aurora das grandes democracias que seguiram as trilhas dos novos pensamentos filosóficos da época é chover no molhado. Além do mais, não é bem o tema do texto aqui. É que, falando com um amigo sobre o conceito de família dentro dos ideais libertários e que a palavra “família” nem sempre combina com “tradição” e “propriedade”, como muita gente gostaria, lembrei-me de uma família constituída em meio a emergência daquele século, cujos principais membros colaboraram com a construção de muitas das idéias propagadas e ainda hoje debatidas e puseram em prática algumas de suas teorias. A família do jornalista, filósofo e novelista, William Goldwin.

Tido como um dos primeiros intelectuais do pensamento utilitarista de John Stuart Mills, Goldwin, no entanto, merece lugar mesmo é entre os mais importantes pensadores anarquistas. Ainda hoje importantes, seus livros Inquérito Acerca da Justiça Política, As Coisas Como Elas São ou As Aventuras de Caleb Williams; o primeiro um ataque corajoso contra as instituições políticas da época; o segundo é considerado o primeiro romance de mistério e, além de inaugurar o gênero ainda hoje popular, faz uso da fina ironia para ridicularizar e criticar os privilégios da aristocracia.
Os livros causaram grande rebuliço nos meios acadêmicos, quando lançados – ambos escritos no intervalo de um ano e publicados praticamente juntos –, e se tornaram verdadeiros sucessos editoriais para aqueles dias, alçando o nome de seu autor ao de celebridade intelectual do momento, que acabou conquistando a admiração e o respeito da elite culta britânica, principalmente dos mais radicais entre eles.
Se Goldwin estava na vanguarda do pensamento libertário da época, não é de estranhar seu interesse por uma mulher, tão inteligente e disposta a repensar a sociedade e as relações humanas quanto ele, embora não tão bem vista nos meios que o glorificavam com os louros do reconhecimento, senhorita Mary Wollstonecraft.

Apesar de os dias serem de discursos entusiasmados em favor da igualdade, liberdade e fraternidade entre os homens, Mary Wollstonecraft era figura não grata nos meios intelectuais da época justamente por defender tais ideais, mas de forma ainda mais radical. Como se não bastasse ser mulher e escritora, numa época em que poucas pessoas do sexo feminino chegavam além da educação básica, a moça pregava aos quatro ventos que os Direitos dos Homens não deveriam ser restringidos aos proprietários de um órgão genital fálico, mas estendidos também às mulheres, o que, para muitos, representava um absurdo. Ela criticava instituições intocáveis como o casamento e pregava a emancipação feminina, muito antes de alguém sequer pensar na palavra Feminismo.
Comprovando que aqueles que amam o fogo, quando encontram um incêndio querem mesmo é se queimar, Goldwin ficou de joelhos pela rapariga que, na época, era mãe solteira de uma menina – fruto de um breve romance com o diplomata americano Gilbert Imlay – e com ela iniciou um relacionamento, amoroso e intelectual. Contrariando a opinião de ambos sobre o casamento, firmaram matrimônio, pouco depois.
Embora feliz e produtivo – colaboravam entre si em seus projetos intelectuais e literários –, o casamento não durou muito e teve um triste fim quando Mary faleceu, aos trinta e oito anos de idade, quando dava à luz à única filha do casal, Mary.
Criada sob a influencia dos pensamentos dos pais e rodeada por livros, Mary é hoje o mais conhecido membro da família de notórios.
Seu livro de horror gótico, influenciado pelas revoluções científicas e as questões éticas que as mesmas levantavam, O Moderno Prometeu, foi sucesso de vendas, crítica e hoje se inscreve entre os cânones da ficção universal. A tragédia do Doutor Victor Frankenstein e sua criação, o monstro feito de partes de cadáveres e atormentado pela solidão, o questionamento filosófico sobre a alma e o anseio por respeito e aceitação, acabaram por ir além da literatura, tornando-se alguns dos mais duradouros e cultuados ícones da cultura popular universal. No texto, é possível identificar referências à vida da própria autora, como parágrafos inteiros sobre a solidão tiradas da nota de suicídio de sua meia Irma, Fanny Imlay, e o tormento que lhe causava pensar que a mãe, que admirava, mas só conhecia por relatos do pai e por seus escritos, perdera a vida ao trazê-la ao mundo.
Mas Mary Shelley está além de sua obra clássica e também merece ser lembrada por sua trajetória ousada e, assim como sua mãe, dona de um comportamento além de seu tempo. Aos dezessete anos de idade, Mary fugiu com seu amante, o poeta Percy B. Shelley, para dar início a um relacionamento baseado nos conceitos defendidos por seus pais, como o Amor Livre. A relação apaixonada dos dois, que durou até a morte de Shelley, incluía convidados de alcova como o poeta e superstar Lord Byron e suas muitas amantes.
A tríade Mary-Percy-Byron e sua comunhão poliamorosa, artística e etílica, é praticamente pioneira no que, décadas depois, seria a Contracultura. Beatniks avant La lettre. Hippies com cérebro. Hipsters que não se contentavam com colecionar livros, mas que os liam e também escreviam os seus (provocação desnecessária, eu sei – mas a necessidade nunca foi motor da minha provocação, ehehe).


Curiosidade (Epílogo): Provando que o pensador nem sempre é o pensamento, o filosofo William Goldwin, que pregava contra o casamento tradicional, “instituição decadente”, e defendia o amor livre, parou de falar com Mary, depois de ela fugir para viver com seu pupilo, Shelley, devido ao poeta ser casado na época e não querer que a filha vivesse um relacionamento clandestino. Só perdoou os jovens e voltou a falar com ela, anos depois, quando o casal oficializou o casamento, após o suicídio e a viuvez do poeta tornar possível o casamento.


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Ada Byron a.k.a. Lady Lovelace
Por César Alves

Aliás, já que falei do casal Mary e Percy Shelley, Byron e toda essa gente visionária hoje cedo, vai bem encerrar com a filha do poeta Lord Byron, Ada Byron, mais conhecida como Lady Lovelace, que, de tão a frente de seu tempo, quase antecipou a revolução dos computadores em mais de um século. De olhos voltados para o futuro, ainda adolescente, a dama ouviu sobre a Máquina Diferencial do matemático Charles Babbage e, quando adulta, juntou forças com ele para financiar a construção da máquina em meados de 1840. A elite da época, no entanto, não enxergou o potencial do projeto de Babbage e o entusiasmo da moça, recusando financiá-lo. Ada brigou pelo projeto até o fim de seus dias e a Máquina Diferencial de Charles Babbage só foi construída no final dos anos 1930, como protótipo de um projeto de outro matemático, Alan Turing para a construção de uma máquina mais sofisticada que poderia decodificar as mensagens criptografadas dos países do Eixo, durante a segunda guerra. Foi a inspiração para o supercomputador Colossus e para que Turing desse início à ciência da computação.






sábado, 19 de julho de 2014

Hunter S. Thompson e a Última Batalha Gonzo



Querido Doutor Thompson (Dear Dr. Thompson - Matthew Moseley) – Livro


Hunter Thompson e a Última Batalha Gonzo
por César Alves

Há momentos em que uma simples carta pode mudar uma vida.
No início dos anos 2000, o jornalista-fora-da-lei Hunter S. Thompson recebeu uma carta de Lisl Alman, que cumpria pena no presídio feminino de Cañon City, no Colorado. Alman reclamava que os livros do Dr. Thompson não eram permitidos por lá e, portanto, não podiam ser adquiridos na biblioteca do presídio. Farejando uma boa matéria, o gonzofather passou a se corresponder com a presidiária e acabou por descobrir um assustador caso de erro judicial.
A história de Alman remonta ao ano de 1997, quando se separava de um ex-namorado, com quem morava, e pediu ajuda a um amigo, Matthaus Jahenig, skinhead, viciado e traficante de drogas, para ajudá-la no transporte de seus pertences para sua nova residência. No caminho, ambos foram parados pelo patrulheiro Bruce Vanderjagt. O policial e Jahenig entraram em uma discussão que terminou com Vanderjagt sendo alvejado por Jahenig que, em seguida, cometeu suicídio.

Na ocasião o crime ganhou notoriedade na mídia e, não tendo ninguém para culpar pelo assassinato – afinal, não ha nada mais odiado que um cop killer –, Lisl Alman acabou sendo condenada à prisão perpétua, sem direito a apelação. O problema é que, no momento do assassinato, Alman já estava algemada no banco de trás da viatura e não poderia, de forma alguma, ter qualquer participação direta no evento.
Inimigo número um das arbitrariedades do sistema, Hunter Thompson encabeçou uma campanha pela libertação de Alman, com artigos freqüentes em sua coluna no site da ESPN e demais veículos, ganhando apoio de velhos “chapas” como Benicio Del Toro e Sean Pean, entre outros.
A campanha conseguiu que o caso fosse reaberto e, em 2006, com que a sentença fosse revista e, hoje, Lisl cumpre pena de 20 anos, prestando serviços comunitários, e direito à liberdade assistida. Verdadeira vitória, no encerramento desta que ficou conhecida como A Última Batalha Gonzo.
Infelizmente, Hunter Thompson não pode ver sua conquista, já que deu cabo da própria vida em fevereiro de 2005. A história toda é tema do livro Dear Dr. Thompson, do jornalista Matthew L. Moseley, lançado nos Estados Unidos em 2011.
Uma tradução por aqui?
Hummmm... Sei não.



terça-feira, 15 de julho de 2014

Vou Cuspir no Seu Túmulo - Boris Vian



A Literatura Infecta de Boris Vian
por César Alves

Em 1946 as livrarias francesas receberam um lançamento que caia feito bomba em suas prateleiras já a partir de seu título. Vou cuspir no seu túmulo era assinado pelo escritor norte-americano Vernon Sullivan cujos manuscritos, após serem recusados por todas as editoras estadunidenses, finalmente eram publicados em tradução para o francês do escritor, musico, agitador cultural e patafísico, Boris Vian.
Narrado em primeira pessoa por Lee Anderson, trata-se de uma história de vingança baseada em sexo, bebedeiras e extrema violência, com estética narrativa próxima da melhor prosa policial noir de Hammet, Chandler, Cain e Cheyney. Gênero que fazia muito sucesso na França do pós-guerra.
A obra de Sullivan, no entanto, extrapolava a fórmula das tramas policiais tradicionais e unia à ficção um contundente protesto social e ousando falar de um tema tratado como verdadeiro vespeiro: o racismo e os crimes raciais.
O próprio Sullivan, conforme descrito na introdução por Vian, apesar de branco, identificava-se com a luta dos negros e mostrava-se disposto a expor as mazelas e hipocrisias da América “o novo Eldorado que é também a terra da eleição dos puritanos, dos alcoólatras e do enfie-bem-isso-em-sua-cabeça”.
O protagonista da trama, Lee Anderson – de cabelos louros e pele clara, mas com sangue negro correndo em suas veias –, arquiteta e põe em prática um plano, baseado na sedução para vingar a morte de um irmão enforcado por se engraçar com uma moça branca, em um dos conhecidos casos de justiçamento, promovidos pelos tribunais da inquisição racial dos grupos supremacistas norte-americanos, muito comuns e um dos combustíveis que alimentariam as batalhas campais que antecederam as lutas pelos direitos civis, na década de sessenta. O resultado é uma narrativa recheada de erotismo e violência, dona de um cinismo delicioso, poucas vezes encontrado na literatura policial e de mistério, mesmo nos dias de hoje.
Mas, além de suas qualidades estéticas, criatividade ficcional brilhante e ousadia temática, Vou Cuspir no Seu Túmulo trazia aos seus leitores uma charada que ia além de sua trama. A obra em si configura-se como uma das mais interessantes, imaginativas e bem arquitetadas pegadinhas do universo da literatura.

Os críticos franceses foram os primeiros suspeitar da falta de informações e todo o mistério envolvendo o autor de uma obra tão bem construída. Não demoraram a descobrir que o romance, na verdade, era uma bomba de dois tempos e a segunda explosão foi ainda maior, quando revelado que Vernon Sullivan jamais existiu e que, tanto o autor que a assinava quanto a própria obra eram uma farsa encabeçada pelo próprio Boris Vian, com ou sem o conhecimento de seus editores.
Segundo algumas das várias versões envolvendo sua origem, o romance teria surgido após o autor tentar publicar seus manuscritos e receber negativas de seu editor baseadas na crise por que passava o mercado editorial europeu no período. Durante a conversa, o editor teria dito que, antes de lançar um novo livro de Vian, precisava de um desses autores policiais americanos que vendiam rapidamente grandes tiragens para fazer caixa e levantar o negócio.
Por coincidência, Vian teria dito que estava justamente trabalhando no livro de um autor americano, amigo seu, muito bom e também recluso, mas que talvez possuísse as características citadas pelo editor. Sendo assim, o autor prontificou-se a trazer a tradução de um bom policial folhetinesco inédito, escrito por seu amigo em dez dias.  Quinze dias depois, teria voltado com a obra pronta: Vou Cuspir no Seu Túmulo, de Vernon Sullivan, que foi lançado tão rápido quanto ganhou atenção de crítica e público.
Se outras pessoas sabiam da farça, ninguém tem certeza. Vian assumiu a responsabilidade por trás do embuste. O que se sabe é que o autor não pretendia esconder o mistério e lucrar com a popularidade de seu autor inventado. Contava com a inteligência de seus leitores para decifrar a charada e prova disso é que deixou suas pistas. O próprio nome de Vernon Sullivan, por exemplo, seria uma brincadeira do francês com os nomes de seu dentista Paul Vernon e do pianista de jazz Joe Sullivan.
A brincadeira, no entanto, não foi recebida com o mesmo bom humor de Boris Vian que acabou descobrindo que era o único que ria de sua piada. Além das acusações ao autor e seus editores como farsantes e à obra como embuste, logo o publico mais conservador começou a protestar contra o conteúdo sexual do livro. Durante vários anos, Vou Cuspir no seu túmulo acabou sendo banido das livrarias, que só colaborou para torná-lo ainda mais popular e cultuado, circulando clandestinamente entre curiosos, agora como “maldito”. Boris Vian foi multado por ultraje aos bons costumes e condenado a 15 dias de prisão por indecência.
Engenheiro, escritor, poeta, compositor – era trompetista –, entre outras coisas, o artista multifacetado fazia parte da cena boêmia que se reunia no Saint-Germain-des-Prés, em discussões com Camus, Sartre e Simone de Beauvoir. Seu livro A espuma dos dias às vezes é citado como um dos mais importantes entre os romances existencialistas, mas sua obra vai além.
Verdadeiro White nigger, era amigo de muitos dos músicos de jazz norte-americanos que se mudaram para Paris depois da Segunda Guerra Mundial. Como funcionário da gravadora Phillips, ajudou a lançar na França a carreira de dois amigos Charlie Parker e Miles Davis. Muitos o consideram um precursor dos beatniks e, no mínimo, pode-se dizer que teve influência sobre a contracultura – sua composição anti militar, “Le Desérteur”, ficou popular na interpretação de Joan Baez. Vian, no entanto, já havia cunhado um termo para denominar sua obra: “Literatura infecta”.
Boris Vian morreu em 1953, aos 39 anos – confirmando uma previsão que teria feito a sua amiga, Simone de Beauvoir em uma de suas várias conversas nos cafés de Paris: “viverei mais do que os 35 anos, mas nunca chegarei ao 40”, teria dito. Na ocasião do óbito, o autor estava numa sala de cinema, assistindo a uma sessão exclusiva da adaptação cinematográfica de Vou cuspir no seu túmulo. O autor era contra a realização do filme que não chegou a ver. Teria sofrido uma parada cardíaca durante os dez primeiros minutos do filme.


quinta-feira, 10 de julho de 2014

O Sofrimento de Policarpo Quaresma, o Carnaval do Jovem Werther e o Tremendão de Roterdã



O Sofrimento de Policarpo Quaresma, o Carnaval do Jovem Werther e o Tremendão de Roterdã
por César Alves

Depois do 7 a 1, na derrota vergonhosa sofrida pela seleção brasileira frente a poderosa Alemanha, futebol talvez não seja assunto dos mais agradáveis aos Policarpos Quaresmas ainda pesarosos com o Triste Fim do Sonho do Hexa.
Sei que os que ainda ruminam Sofrimentos, enquanto celebra o Jovem Werther, não querem nem saber, mas sugiro a eles que se alegrem! Afinal, espantamos o fantasma de 1950, criando um Fred (piada pronta!) Krueger de 2014. O espírito do saudoso goleiro Barbosa pode descansar tranqüilo e justiçado.
Acho que é a hora de enxergar que a verdadeira Seleção não fosse aquela de amarelo, mas outra. Aquela que entrou em campo um ano antes, trajada de preto, usando touca ninja, uma Pátria de Coturnos e esquema tático agressivo, na base do ataque, fintando a tropa de choque com dribles de coquetel molotov, cujo hino dizia: “Não Vai Ter Copa!”
Entendo que é feio virar a casaca, mas, assim como o Zagalo numa Copa passada, você vai ter que engolir: Era melhor ter construído hospitais, creches e escolas. Por mais que tenhamos aproveitado da festa, ficamos com a limpeza e as despesas, que, tendo em vista o valor da entrada, melhor nem pensar no valor das prestações, quando recebermos a fatura.
Pagamos a conta e levamos 7 de troco. Uma gorjeta pelo bom serviço, cortesia dos simpáticos alemães.
Como dizia o Tremendão de Roterdã: “A maior das insanidades é querer ser sensato num mundo de insanos”, podem dizer que eu estou falando besteira, sendo negativista e exagerando. Talvez seja.
Mas, como ele (conterrâneo da equipe que pode nos contar a última piada ingrata da Copa no sábado, aliás) dizia também: “Rir de tudo é próprio do parvos, mas rir de nada é próprio dos Estúpidos”. Então, seguirei rindo e sugiro aos amigos o mesmo.

Sigamos a Vida Felina! Mais vale um Gato, que tem 7 vidas, que 200 milhões de Vira-latas, chorando eternamente 7 Gols.