terça-feira, 15 de julho de 2014

Vou Cuspir no Seu Túmulo - Boris Vian



A Literatura Infecta de Boris Vian
por César Alves

Em 1946 as livrarias francesas receberam um lançamento que caia feito bomba em suas prateleiras já a partir de seu título. Vou cuspir no seu túmulo era assinado pelo escritor norte-americano Vernon Sullivan cujos manuscritos, após serem recusados por todas as editoras estadunidenses, finalmente eram publicados em tradução para o francês do escritor, musico, agitador cultural e patafísico, Boris Vian.
Narrado em primeira pessoa por Lee Anderson, trata-se de uma história de vingança baseada em sexo, bebedeiras e extrema violência, com estética narrativa próxima da melhor prosa policial noir de Hammet, Chandler, Cain e Cheyney. Gênero que fazia muito sucesso na França do pós-guerra.
A obra de Sullivan, no entanto, extrapolava a fórmula das tramas policiais tradicionais e unia à ficção um contundente protesto social e ousando falar de um tema tratado como verdadeiro vespeiro: o racismo e os crimes raciais.
O próprio Sullivan, conforme descrito na introdução por Vian, apesar de branco, identificava-se com a luta dos negros e mostrava-se disposto a expor as mazelas e hipocrisias da América “o novo Eldorado que é também a terra da eleição dos puritanos, dos alcoólatras e do enfie-bem-isso-em-sua-cabeça”.
O protagonista da trama, Lee Anderson – de cabelos louros e pele clara, mas com sangue negro correndo em suas veias –, arquiteta e põe em prática um plano, baseado na sedução para vingar a morte de um irmão enforcado por se engraçar com uma moça branca, em um dos conhecidos casos de justiçamento, promovidos pelos tribunais da inquisição racial dos grupos supremacistas norte-americanos, muito comuns e um dos combustíveis que alimentariam as batalhas campais que antecederam as lutas pelos direitos civis, na década de sessenta. O resultado é uma narrativa recheada de erotismo e violência, dona de um cinismo delicioso, poucas vezes encontrado na literatura policial e de mistério, mesmo nos dias de hoje.
Mas, além de suas qualidades estéticas, criatividade ficcional brilhante e ousadia temática, Vou Cuspir no Seu Túmulo trazia aos seus leitores uma charada que ia além de sua trama. A obra em si configura-se como uma das mais interessantes, imaginativas e bem arquitetadas pegadinhas do universo da literatura.

Os críticos franceses foram os primeiros suspeitar da falta de informações e todo o mistério envolvendo o autor de uma obra tão bem construída. Não demoraram a descobrir que o romance, na verdade, era uma bomba de dois tempos e a segunda explosão foi ainda maior, quando revelado que Vernon Sullivan jamais existiu e que, tanto o autor que a assinava quanto a própria obra eram uma farsa encabeçada pelo próprio Boris Vian, com ou sem o conhecimento de seus editores.
Segundo algumas das várias versões envolvendo sua origem, o romance teria surgido após o autor tentar publicar seus manuscritos e receber negativas de seu editor baseadas na crise por que passava o mercado editorial europeu no período. Durante a conversa, o editor teria dito que, antes de lançar um novo livro de Vian, precisava de um desses autores policiais americanos que vendiam rapidamente grandes tiragens para fazer caixa e levantar o negócio.
Por coincidência, Vian teria dito que estava justamente trabalhando no livro de um autor americano, amigo seu, muito bom e também recluso, mas que talvez possuísse as características citadas pelo editor. Sendo assim, o autor prontificou-se a trazer a tradução de um bom policial folhetinesco inédito, escrito por seu amigo em dez dias.  Quinze dias depois, teria voltado com a obra pronta: Vou Cuspir no Seu Túmulo, de Vernon Sullivan, que foi lançado tão rápido quanto ganhou atenção de crítica e público.
Se outras pessoas sabiam da farça, ninguém tem certeza. Vian assumiu a responsabilidade por trás do embuste. O que se sabe é que o autor não pretendia esconder o mistério e lucrar com a popularidade de seu autor inventado. Contava com a inteligência de seus leitores para decifrar a charada e prova disso é que deixou suas pistas. O próprio nome de Vernon Sullivan, por exemplo, seria uma brincadeira do francês com os nomes de seu dentista Paul Vernon e do pianista de jazz Joe Sullivan.
A brincadeira, no entanto, não foi recebida com o mesmo bom humor de Boris Vian que acabou descobrindo que era o único que ria de sua piada. Além das acusações ao autor e seus editores como farsantes e à obra como embuste, logo o publico mais conservador começou a protestar contra o conteúdo sexual do livro. Durante vários anos, Vou Cuspir no seu túmulo acabou sendo banido das livrarias, que só colaborou para torná-lo ainda mais popular e cultuado, circulando clandestinamente entre curiosos, agora como “maldito”. Boris Vian foi multado por ultraje aos bons costumes e condenado a 15 dias de prisão por indecência.
Engenheiro, escritor, poeta, compositor – era trompetista –, entre outras coisas, o artista multifacetado fazia parte da cena boêmia que se reunia no Saint-Germain-des-Prés, em discussões com Camus, Sartre e Simone de Beauvoir. Seu livro A espuma dos dias às vezes é citado como um dos mais importantes entre os romances existencialistas, mas sua obra vai além.
Verdadeiro White nigger, era amigo de muitos dos músicos de jazz norte-americanos que se mudaram para Paris depois da Segunda Guerra Mundial. Como funcionário da gravadora Phillips, ajudou a lançar na França a carreira de dois amigos Charlie Parker e Miles Davis. Muitos o consideram um precursor dos beatniks e, no mínimo, pode-se dizer que teve influência sobre a contracultura – sua composição anti militar, “Le Desérteur”, ficou popular na interpretação de Joan Baez. Vian, no entanto, já havia cunhado um termo para denominar sua obra: “Literatura infecta”.
Boris Vian morreu em 1953, aos 39 anos – confirmando uma previsão que teria feito a sua amiga, Simone de Beauvoir em uma de suas várias conversas nos cafés de Paris: “viverei mais do que os 35 anos, mas nunca chegarei ao 40”, teria dito. Na ocasião do óbito, o autor estava numa sala de cinema, assistindo a uma sessão exclusiva da adaptação cinematográfica de Vou cuspir no seu túmulo. O autor era contra a realização do filme que não chegou a ver. Teria sofrido uma parada cardíaca durante os dez primeiros minutos do filme.


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