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terça-feira, 24 de junho de 2014

Boca do Inferno - Otto Lara Resende



Os Infantes Terríveis de Otto Lara Resende

Contundentes e ainda provocadores, os contos de Boca do Inferno estão de volta às livrarias, em nova edição.

por César Alves

“Em São João Del Rei, onde nasci e me criei, cemitério se debruça na rua, está junto das igrejas. Os mortos ficam espiando os vivos, com o olho irônico do Undiscovered Country”, disse, certa vez, Otto Lara Resende a um entrevistador. Embora pulsando vida e contemporaneidade, talvez seja este olhar, carregado de ironia e provocação inteligente, que dá o tom nos sete contos – todos protagonizados por crianças e pré-adolescentes – que compõem Boca do Inferno, obra seminal do autor mineiro, que acaba de ganhar nova edição, através da editora Companhia das Letras.
Lançado originalmente em 1957, Boca do Inferno teve efeito explosivo no imaginário intelectual brasileiro de sua época. Alvo de debates acalorados no meio literário, o livro foi praticamente boicotado pelas editorias de cultura e literatura da época, que, arbitrariamente, decidiram ignorar ou divulgá-lo em algumas curtas e poucas críticas – negativas, em sua esmagadora maioria. O impacto do lançamento e a maneira inesperada como foi recebido chegou a atingir emocionalmente o já respeitado escritor e jornalista, ao ponto de ele mesmo condená-lo ao limbo, recusando-se veementemente a reeditar a obra até sua morte, em 1992.
Com a autorização da família, o livro só voltou às livrarias em 1998, desta vez, ganhando o merecido reconhecimento que lhe foi negado em sua primeira vinda. Ainda assim, embora celebrado por sua ousadia e por manter-se contemporâneo tantas décadas depois, os elogios vinham com certo constrangimento diante das tramas assustadoras e das ações dos personagens imaginados por Otto Lara Resende. 

O que justificaria tal assombro? Seriam as historias de Boca do Inferno, ainda capazes de impressionar os leitores de hoje?
A leitura desta nova edição pode oferecer as respostas e, certamente, esclarecer o que causou tanta discussão, quando o livro veio à luz pela primeira vez, e o que ainda mantém a obra contundente.
Segundo livro na carreira do autor mineiro, Boca do Inferno vinha na sequência de O Lado Humano (1952). Embora recebido de forma modesta, os contos de seu livro de estréia deram ao autor lugar de destaque entre os novos escritores da época. Já reconhecido por seu brilhantismo como jornalista, cronista e excelente frasista – um dos melhores que este país produziu, diga-se de passagem –, em Boca do Inferno, Otto Lara Resende transferia o ambiente urbano das tramas de seu primeiro livro para as cidades do interior e substituía seus protagonistas adultos por crianças.
É justamente na idade de seus personagens e suas ações que se encontra o estopim do choque causado pela obra na sociedade conservadora do período. Para o moralismo vigente no Brasil dos anos cinqüenta eram inconcebíveis os atos dos envenenadores, psicopatas homicidas, tarados incestuosos e suicidas mirins de Resende. Para seus detratores, a obra representava uma ofensa explicita a tudo o que definia a moral e os bons costumes.
Tendo em vista o conservadorismo vigente nas classes dominantes da época – e talvez ainda hoje, quando novas Marchas da Família são planejadas para pedir a volta da ordem sob tutela de uma ditadura militar –, em sua ousadia, o autor sabia estar se arriscando e que pisava em terreno minado. Não é preciso avançar muito na leitura para sacar seus principais alvos: a Igreja (principalmente, no conto que abre e dá título ao livro), a hipocrisia moral da sociedade e a família.
A maioria dos críticos insistia na mesma tecla: a de que os personagens eram inverossímeis e que suas atitudes eram inconcebíveis para crianças. Os Infantes Terríveis de Lara Resende, no entanto, nem de longe, são inverossímeis, assim como não o são suas monstruosidades. Mas não é preciso uma leitura muito atenta para perceber que, para Otto Lara Resende, nos atos dos adultos é que estão engendrados os monstros da infância. Assim é hoje, como também o era naquela época. Como diz uma velha canção dos anos oitenta, a Barbárie começa em casa.
Isto fica claro nos castigos infligidos pelo padre contra seu afilhado, Trindade, em Boca do Inferno; na mãe e na avó que reprimem e duvidam de Silvia, quando a menina revela o assédio e abuso sofridos, inclusive por um parente, em O Segredo; e na crueldade do tio para com o sobrinho órfão, Chico, em O Moinho.
Principal objeto de repúdio dos críticos, o conto Três Pares de Patins, começa numa tarde de diversão no adro da igreja, transformado em pista improvisada, e culmina com a invasão do cemitério onde, sobre uma sepultura, irmão faz sexo com a própria irmã e depois a oferece ao amigo.
Aliás, a maestria com que Otto Lara Resende conduz suas narrativas, muitas vezes, passando da delicadeza de uma tarde ensolarada numa cidadezinha interiorana para o mais sombrio ato de violência, é um de seus principais atrativos. Um dos melhores e mais surpreendentes contos de Boca do Inferno é exemplo disso.
Em O Porão, a história do pequeno torturador de animais – com direito a menção ao clássico de Edgar Allan Poe, O Gato Preto – nos é apresentada durante uma manhã primaveril, culmina num assustador ato de violência e fecha com a cena familiar da mãe que serve o chá da tarde ao filho.
Conforme sugere Augusto Massi, no ótimo posfácio escrito exclusivamente para esta edição, em Otto Lara Resende, o sol de uma bela manhã interiorana se esbarra com o reflexo solar que se faz cúmplice do assassinato praticado pelo personagem de Albert Camus, durante a situação limite de O Estrangeiro.
Ainda impactante e surpreendente, mesmo para nossos dias, Boca do Inferno merece figurar entre as mais importantes obras de nossa narrativa curta. Quase seis décadas depois de sua primeira edição, o livro ainda transpira frescor, provocação e choque e sua volta às nossas livrarias é mais do que bem vinda.

Serviço: Livro: Boca do Inferno – autor: Otto Lara Resende – editora: Companhia das Letras – 188 páginas.


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Paulo Mendes Campos A Vida Não Vale Um Cronista


 
 
Paulo Mendes Campos e a vida quando não vale um cronista
por César Alves

Em 1962, sob o acompanhamento de um médico, Paulo Mendes Campos experimentou ser invadido pelo “jorro caótico” advindo das comportas abertas pelo LSD. A experiência teria feito o cronista sentir “o peso e a nitidez das palavras”, produzindo um “milagre da voz”. Relatado em artigos da época publicados na revista Manchete – depois reproduzidos nos livros O Colunista do Morro e Trinca de Copas –, o experimento foi para ele como encarnar São Francisco de Assis falando com o Lobo, “na falta de uma comparação que preste”. E concluía: “O lobo também sabe que amor com amor se paga”.

Não se engane o leitor desavisado, pensando tratar-se de um expoente da contracultura brasileira. Paulo Mendes Campos é um dos principais nomes de nossa crônica. Para muitos, tão importante quanto Rubem Braga. Viveu e, em sua escrita, fez viver seu tempo como poucos. Incluindo-se ai as promessas de descoberta interior e autoconhecimento dos paraísos artificiais. Embora apenas uma pequena passagem dentro de uma biografia admirável, o episódio lisérgico, no entanto, talvez sirva para definir a obra atual, multifacetada e não menos admirável, dela advinda. Correndo o risco pretensioso de profanar as palavras do próprio autor, sua crônica é como um jorro caótico em intensidade, diversidade de temas, lirismo e criatividade; nitidez da palavra que se faz texto simples, sem ser banal, e culto – quase erudito –, sem ser boçal; é o milagre da voz da inteligência, sagacidade, humor e sensibilidade. Como o lobo, Paulo Mendes Campos não só sabia que amor com amor se paga, como também sabia de mais algumas (muitas) outras coisas.

Estivesse vivo para ler este artigo, talvez Paulo Mendes desse um gole de seu uísque e, com um sorriso maldoso, dissesse que, assim como a tentativa dele descrever a viagem psicodélica, tal comparação também “não preste”. Cabe-nos, então, recolhermo-nos em nossa insignificância e concluir que ao leitor bom mesmo é ir provar direto de seu barato. Sendo assim, mais que uma grata surpresa é saber que sua obra aos poucos volta às nossas livrarias em novas edições publicadas pela Companhia das Letras.

Já estão disponíveis os dois primeiros títulos, O Amor Acaba e O Mais Estranho dos Países, que revelam uma crônica rica na diversidade de temas e ainda extremamente atual, apesar de algumas delas terem sido escritas há mais de meio século. Outra característica marcante é o lirismo poético e filosófico de sua escrita, que, mais que um passeio pelo cotidiano, é um passeio pela alma humana. “As crônicas são servidas por uma erudição fluida que confere a elas a transcendência que é própria dos bons ensaios. Não é só um bom e bem humorado comentarista do cotidiano. Ele enfrenta dúvidas existenciais e filosóficas com doses certas de ceticismo. Sua prosa é decantada em invenção poética e é isso que dá a seu estilo uma marcante peculiaridade”, diz o jornalista Flávio Pinheiro, organizador do projeto.

Segundo Pinheiro, a série pretende resgatar não só sua escrita em prosa, como a poética, faceta pouco conhecida do autor. “Paulo tem claros compromissos com a poesia. Escreveu poesia de primeira qualidade. Leu todos os grandes poetas. Foi esplêndido tradutor de poesia. Eu diria que a poesia o tempo todo fecunda sua prosa. E há mesmo certas crônicas que são pura prosa poética, no melhor sentido do termo, como "O amor acaba". Mas se a prosa está muito contaminada pela poesia, sua poesia tem uma dicção particular”.

Também diretor geral do Instituto Moreira Salles, o jornalista está diretamente ligado ao projeto de catalogação do acervo de Paulo Mendes Campos que o instituto detém desde 2011. “O trabalho de catalogação ainda está em fase inicial. Um item do acervo que nos chama atenção são os diversos cadernos escritos a mão por Paulo Mendes Campos com anotações variadas que prefiguram temas de crônicas e outras observações”. Ano passado, o IMS publicou a bela Carta a Otto – Um Coração de Agosto, missiva escrita por Mendes Campos ao amigo Otto Lara Resende o que abre expectativas sobre futuros lançamentos envolvendo s registros pessoais do cronista, embora ainda não haja projetos em andamento neste sentido.

Um dos lendários “vintanistas” de Mario de Andrade ou os “quatro cavaleiros de um íntimo Apocalipse”, como definiu Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos nasceu em Belo Horizonte no ano de 1922. O grupo de jovens autores mineiros que, além dele e Lara Resende, também contava com Fernando Sabino e Helio Pellegrino, migrou para o Rio de Janeiro, onde ajudaria a renovar as letras e o jornalismo brasileiro na segunda metade do século vinte. Entre nossos cronistas, é comum dizerem que Paulo Mendes Campos foi injustiçado em sua época. “Não há dúvida que a obra de Paulo Mendes Campos mereceria ser mais conhecida porque se trata de um escritor ótimo e singular. Este clamoroso esquecimento está sendo sanado pelas reedições da obra. Mas soa estranho que ele tenha uma fortuna crítica tão escassa, mesmo quando comparada a de outros cronistas”, observa Flávio Pinheiro.

Devolver a um dos maiores nomes de nossa crônica seu lugar de direito e oferecer às novas gerações a oportunidade de ter contato com a obra de Paulo Mendes Campos, desde já, faz do projeto uma das melhores novidades literárias do ano.

Serviço: O Amor Acaba (288 páginas) e O Mais Estranho dos Países (352 páginas), de Paulo Mendes Campos. Editora: Cia. Das Letras.