quinta-feira, 5 de julho de 2018

A historia da revista Senhor



Bendita era a Senhor.

Periódico que mudou a cara de nosso jornalismo impresso, a revista Senhor está de volta em livros que contam sua trajetória e compilam alguns de seus melhores artigos organizados por Ruy Castro.
Por César Alves

Em 1959 o país ainda respirava os ares de modernidade insuflados pelo governo Juscelino Kubitschek. A construção de Brasília e o surgimento de movimentos estéticos como a Bossa Nova e o Cinema Novo, entre outros, davam a impressão de que um outro Brasil começava a nascer. Na esteira dessa nova nação, notava-se também a presença de um novo brasileiro. Maduro e mais sofisticado, ele se interessava por política, livros, cinema, música e viagens. Estava em sintonia com seu tempo e, portanto, carente de uma publicação brasileira que refletisse seus gostos e hábitos. Sócios da editora Delta-Larousse, Simão e Sérgio Waissman identificavam-se com este público e assumiram a missão de atender a essa reivindicação. 
Sua ideia era criar um veículo direcionado a profissionais liberais, com bom poder aquisitivo, que valorizasse o texto e a criatividade na produção gráfica e, ao mesmo tempo, funcionasse como um cartão de visitas de sua marca junto a seus clientes. Para assumir o posto de editor e redator-chefe, convidaram Nahum Sirotsky que trouxe consigo a equipe e o conceito estético editorial que colocariam as revistas brasileiras em pé de igualdade com o que de melhor era produzido na imprensa internacional. Com as águas de março que fecharam o verão daquele ano, chegou também às nossas bancas a primeira edição da revista Senhor – ou Sr. A Revista do Senhor, como era intitulada no início – destinada a atender justamente aos gostos deste novíssimo homem brasileiro e que acabou também por mudar a cara de nosso jornalismo cultural. Quase meio século desde sua derradeira edição, Senhor está de volta, agora em dois livros, com o lançamento de Uma Senhora Revista e O Melhor da Senhor.

Concebidos por Maria Amélia Mello e organizados por Ruy Castro, ambos merecem desde já figurar entre os mais gratificantes lançamentos do ano. Não só por atender a uma antiga reivindicação dos saudosistas do periódico, mas, principalmente, por disponibilizar para as novas gerações, alguns dos momentos mais brilhantes de nossa imprensa escrita e literatura. Em seus cinco anos de existência, passaram pela redação de Senhor, nomes como Paulo Francis, Carlos Scliar, Nahum Sirotsky, Jaguar, Luiz Lobo e Ivan Lessa, que formaram o núcleo criativo responsável pelo conceito estético e editorial que seriam sua marca até o fim. O time de colaboradores forma uma lista de notáveis que aqui ocuparia toda uma página, merecendo destaque Jorge Amado, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, Glauber Rocha, Darcy Ribeiro, Zuenir Ventura, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Luiz Carlos Maciel, Ferreira Gullar, Otto Lara Resende, Otto Maria Carpeaux, entre outros.
O primeiro volume, Uma Senhora Revista, dedica-se a contar a história da Senhor através daqueles que a fizeram. Os artigos são escritos pelos principais protagonistas da aventura editorial, em textos assinados por Naum Sirotsky, Paulo Francis, Luiz Lobo e Ivan Lessa. Como escreve Ruy Castro na introdução do livro, Senhor já nasce pronta. Desde o primeiro número a revista já dizia a que vinha. Assuntos mais sérios como economia e política ficavam a cargo da dupla Naum Sirotsky e Paulo Francis que também era responsável pela crítica cultural e literária e por selecionar os contos e novelas de autores nacionais e internacionais publicados mensalmente na Senhor. O design gráfico revolucionário, que acabou por angariar prêmios internacionais na época, vinha de Carlos Scliar. Os cartuns de Jaguar e o texto de Luiz Lobo imprimiam a dose de humor que se tornaria referencia em publicações futuras e característica evidente já na apresentação de sua primeira edição. 
Apesar de ser um veículo destinado ao público masculino, seu primeiro editorial era destinado às leitoras. Iniciava-se com um respeitoso “Minhas Senhoras” e dizia que, apesar de ser uma revista masculina, a Senhor era direcionada às mulheres, uma vez que eram elas na verdade quem compravam ou condenavam uma revista à morte. Em seu auge, devido ao número de leitores que se ofereciam para escrever na revista, partiu de Jaguar e Lessa o anúncio “O leitor também pode colaborar com a Senhor, comece escrevendo aqui:”. O “aqui” guiava o leitor para um cupom para adquirir uma assinatura da revista.
Bendita também pelo que tinha de maldita, a publicação fez história, valorizando a criatividade, o bom texto, a ousadia gráfica e contando com um time de bambas de nosso jornalismo e literatura. A seleção de reportagens, artigos, contos e reproduções de capas, anúncios e ensaios fotográficos realizada por Ruy Castro para O Melhor da Senhor, faz deste volume a cereja do bolo. Estão no livro as beldades, devidamente vestidas, mas, nem por isso, desprovidas do poder da sedução, que faziam a cabeça dos marmanjos, como Odete Lara linda e deliciosamente esparramada na beira da piscina. Otto Maria Carpeaux narra seus encontros com Franz Kafka. Em seu único diálogo com o autor de O Processo, Carpeux não teria compreendido a pronuncia do nome e a conversa teria transcorrido da seguinte forma: “KAUKA.” “Como é o nome?” “KAUKA!” “Muito prazer”. O leitor vai se deleitar com o brilhante artigo de Armando Nogueira em num clássico da crônica esportiva, intitulado Didi: O Homem Que Passa, e Glauber Rocha discorrendo sobre as ousadias cinematográficas de Luis Buñuel.

A literatura era um dos principais focos de Senhor que trouxe em suas páginas autores como Clarice Lispector, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, entre outros, em contos e novelas, alguns inéditos, como A Morte e A Morte de Quincas Berro D´Água, do criador de Gabriela, Tiêta e dos Capitães da Areia. Também foram traduzidos, exclusivamente para a revista, textos de Kafka, Truman Capote, Dorothy Parker e muitos outros, alguns destes autores sendo apresentados pela primeira vez ao leitor brasileiro.
No auge, a revista contava com 45 mil assinantes e média de 20 a 30 páginas de anúncios para cerca de 100 de editorial, chegando a ser difícil entender como um projeto editorial como este chegou ao fim. A derrocada da revista, no entanto, está mais ligada às incertezas políticas e econômicas que assolaram o país a partir da década de sessenta do que à má administração. A Senhor não sobreviveu para ver o período sombrio representado pelo golpe militar, ocorrido dois meses depois de seu último suspiro. Porém, não é errado dizer que a revista está na raiz de todo o jornalismo de resistência – em maior ou menor grau – representado pela imprensa alternativa surgida nos meses e anos subsequentes. Muitos de seus colaboradores estiveram por traz de títulos como O Pasquim, A Flor do Mal e outros. É possível detectar sua influência no melhor que nossa imprensa escrita produziu depois. O lançamento da Imprensa Oficial é, sem sombra de dúvida, certeza de leitura prazerosa e deleite visual, graças ao belo acabamento gráfico, reprodução de capas, fotos e anúncios publicitários da época. Aos colegas de profissão e estudantes da área, a obra representa aquisição obrigatória, tanto como fonte de pesquisa, como de inspiração. Nós, que tanto amamos este ofício – por vezes ingrato, mas sempre prazeroso –, oremos: Senhor, olhai por nós!


Serviço: O Melhor da Senhor – 412 páginas; Uma Senhora Revista – 108 páginas. Lançamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

(texto publicado originalmente na revista Brasileiros)

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