segunda-feira, 30 de julho de 2018

Um enigma chamado Edward Burra



Um enigma chamado Edward Burra

Pouco conhecido e catalogável, pintor e viajante inglês retratou como poucos o século 20. Da Paris boemia do período entre guerras as ruas do Harlem na década de trinta, testemunhou a explosão da guerra civil espanhola e a segunda guerra mundial, fazendo de sua arte uma crônica da historia e da humanidade em seu lado mais sombrio.
Por Cesar Alves


Conta-se que certa vez, na casa localizada em Rye, East-Sussex (Inglaterra), onde o pintor britânico, Edward Burra, nascera e costumava refugiar-se para manter contato com suas raízes e pintar, seu secretario atendeu a uma ligação telefônica. Ao ser informado do que se tratava, Burra teria gritado, para que quem estivesse do outro lado da linha pudesse ouvir:
“Tell them to fuck off! I’m busy!”
A chamada vinha da Real Academia Britânica. Ligavam para informar que, em reconhecimento ao conjunto de sua obra, seu nome teria sido indicado para fazer parte do seleto grupo de notáveis da instituição.
Fato ou apenas mais um dos mitos que cercam o nome de um dos mais enigmáticos artistas britânicos do século passado, a historia ao menos serve como exemplo da postura pessoal de Edward Burra em relação ao universo das artes e seu pouco interesse em ver-se inserido naquele contexto.
Preso em um corpo desfigurado, provocado por uma doença crônica que lhe causou dores intensas ao longo de sua vida, foi na arte e nas viagens que Edward Burra deu sentido a sua existência.
Apaixonado pelo som das big bands, pela vida noturna e pelas, ainda jovens, culturas do cinema e do jazz, Edward Burra é normalmente lembrado por seus registros de pubs londrinos e cenas dos cabarés e da vida boemia parisiense, o que costuma levar muita gente a cair no erro de reduzi-lo a um simples cronista da vida noturna e das elites culturais do inicio do século passado, o que não vale nem como uma introdução ao seu trabalho. Burra possui facetas que vão muito além do que suas obras mais conhecidas revelam.
O artista teve contato e flertou com as principais linguagens e expressões criativas das vanguardas artísticas européias, principalmente com o Cubismo e Surrealismo, sem abraçar nenhuma delas. Dotado de memória fotográfica, ao contrario de muitos de seus colegas de oficio, nunca levou consigo um caderno para registrar as cenas que pretendia explorar. Tão devotado a vida noturna e cultural das grandes metrópoles era devotado ao contato com a natureza e a tranqüilidade do campo, buscando refugio na propriedade de sua família, onde nascera e pintava seus quadros que também não partiam de um rascunho ou esboço, mas na própria tela.
Durante a ressaca da primeira grande guerra, viajou a Paris para ver in loco a efervescência cultural propagandeada sobre a capital francesa, que se transformara na nova Meca da vida artística e intelectual européia e endereço oficial do modernismo. Sempre com um olhar irônico e satírico em relação a burguesia boemia que festejava como se não houvesse amanhã – feito quem busca na embriagues se esquecer que, de acordo com o caminhar da carruagem e o futuro incerto que se descortinava a olhos vistos, talvez não houvesse mesmo – transformou o que vivenciou em algumas de suas obras mais conhecidas.
Burra, no entanto, não limitou sua temporada na cidade luz aos pontos turísticos, restaurantes e salões luxuosos. Também fez questão de caminhar pelo lado selvagem, percorrendo ruas escuras, convivendo com marinheiros, prostitutas, drag-queens, batedores de carteira, traficantes e toda a fauna low-life que a selva dos bares e zonas proibidas de uma grande metrópole tem a oferecer, revelando uma das principais características sobre o artista e sua obra: o olhar atento ao que se esconde por trás da mascara da sociedade, feita de desejos sombrios e obscuros, cheios de violência e sexo. O que talvez explique o quanto há de melancólico mesmo em seus quadros estrelados por ícones sexuais como Josephine Baker e Mae West e bon vivants anônimos de sorrisos ébrios, sempre carregados de simbologia erótica escondida em formatos fálicos e triangulares ou poses e situações que remetem ao sexo oral ou autodeleite masturbatório; ou objetos pontiagudos, afiados como o olhar sinistro impresso em alguns dos personagens retratados, que chegam a sugerir assassinos e psicopatas em busca de suas próximas vitimas.
Em 1933, sua paixão pelo jazz e a cultura afro-americana do outro lado do atlântico, viajou pela primeira vez aos Estados Unidos, onde freqüentou as noites de bailes do Savoy Dance e percorreu as ruas e bairros do Harlem, registrando em primeira mão o surgimento de um estilo de vida totalmente original no modo de vestir, no gestual e na ginga características dos jovens negros norte-americanos. Suas pinturas do período, povoadas por seres da noite, trajados de sobretudos e casacos de pele multicoloridos, ostentando jóias e penteados afros, feitos na época poderiam muito bem ilustrar o universo musicado por Curtis Mayfield no álbum Superfly (1972).
 Fruto de uma família abastada do interior de Londres, Edward Burra nunca precisou trabalhar para ganhar seu sustento. Recusando-se a passar o resto da vida recluso, conforme o destino que sua saúde frágil parecia lhe reservar, ainda jovem, o artista decidiu tirar proveito de sua boa condição financeira para conhecer o mundo. Sua disposição para atender ao chamado da estrada era tanta que, certa vez, sua mãe teria declarado a pessoas próximas que nunca sabia se o filho teria saído para ver o jardim, comprar cigarros ou visitar a Espanha ou o México.
É justamente durante uma de suas jornadas que seu trabalho sofre uma das mais profundas transformações e entra na fase predileta do amigo que vos escreve. Inspirado pelas touradas e dançarinas de flamenco, Burra estava na Espanha quando estourou a Guerra Civil. Em uma de suas cartas aos amigos, teria declarado:
“Estávamos num restaurante, quando senti um forte cheiro de fumaça. Perguntei a alguém o que era e responderam:
_ Não é nada. Apenas uma igreja queimando.
Aquilo me deu nojo”.
 Guernica ou Goya a se debruçar  sobre seus Desastres da Guerra, mas como que tocado por um soco direto na alma, dando-se conta da realidade aterrorizante que rondava a fantasia do ambiente burguês do qual fazia parte, o artista parece ter enxergado no fascismo mais do que uma ameaça aos valores humanos e democraticos conquistados pela civilização e sim como o reflexo do monstro que se encontrava escondido nas profundezas do coração humano em sua totalidade.
Talvez movido pelo mesmo asco que levou Picasso a conceber
A partir daí, seus quadros passam a retratar cenas apocalípticas, protagonizadas por soldados com mascaras de médicos da peste, crianças e adultos com faces desfiguradas pelo horror estampado em seus olhares, montes de cadáveres e refugiados em fuga, sob o olhar de demônios, medusas e Belzebu em pessoa. Um espetáculo de fogo e sangue do verdadeiro inferno na terra.
Se ainda existe dança, é protagonizada por esqueletos. Como que tocado por uma revelação, Edward Burra parece ter aberto um terceiro olho que revelava o que de mais sombrio e horripilante se escondia nas profundezas do espírito humano.
Este olhar pessimista sobre o homem e quanto ao futuro da espécie o acompanharia até sua morte, em 1976, quando passara a imprimir o mesmo cenário de destruição e morte que enxergava nos conflitos políticos e bélicos aos avanços do progresso, pintando paisagens sendo devoradas por tratores com mandíbulas de dragões e bestas mitológicas.
Apesar de seu comprometimento com a pintura, procurando entender e dialogar com a arte e os artistas de seu tempo – por um curto período, chegou a fazer parte do Unit One, coletivo de artistas de vanguarda, ligado ao Surrealismo, reunido por Paul Nash –, Burra sempre teve aversão a explicar e contextualizar sua própria obra. Odiava dar nomes a seus quadros, concedeu poucas entrevistas durante a vida e, quando perguntado sobre um trabalho especifico, costumava dar respostas evasivas e dizer que não se lembrava de quando e porque o tinha feito. Numa de suas raras entrevistas, percebendo a insatisfação da entrevistadora com a falta de objetividade de suas respostas, Burra sintetiza “I never tell anybody anything”.


O pintor, no que diz respeito a sua vida pessoal, cultivou muitas amizades e era descrito pelos que o conheceram como uma pessoa bastante sociável. É justamente a partir de sua vasta correspondência – Burra tinha o habito de escrever cartas diariamente, nas quais fazia relatos pessoais, falava sobre suas viagens, mas muito pouco sobre arte –, que Jane Stevenson empreendeu a pesquisa que deu origem a seu livro Edward Burra, The Twentieth-Century Eye (Editora Jonathan Cape-UK, sem tradução no Brasil), biografia do artista que serviu de base para este texto.


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