A odisséia de Martin Luther King
Tradição e modernidade se
encontram em Vejo a Terra Prometida, belíssima e original graphic novel que acaba
de chegar às livrarias brasileiras.
Por César Alves
Aliar formas narrativas
ancestrais à moderna linguagem dos quadrinhos para contar uma das mais
fascinantes trajetórias de nossa história recente foi o ponto de partida para Vejo a Terra Prometida, premiada graphic novel da editora indiana Tara
Books que acaba de sair no Brasil via Martins Fontes. A idéia era ousada: narrar
a vida do pastor, ativista e um dos maiores símbolos da luta pela igualdade de
direitos, Doutor Martin Luther King, utilizando a antiga arte patua de difundir
mitos, lendas e fatos cotidianos através de pinturas em pergaminhos.
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Tendo em mãos as pinturas e
sabendo estar em posse de um material especial, o próximo passo seria encontrar
um autor cujo texto estivesse à altura do tratamento visual dado pelo artista. Escritor
e bluesman, Arthur Flowers se encantou
com a idéia logo de cara. Admirador e estudioso da vida e obra de Martin Luther
King, o poeta é herdeiro da arte de contar histórias dos antigos mestres griots, responsável por manter viva a
cultura ancestral africana via narrativa oral. Fruto daqueles turbulentos anos
de 1960, o bardo afro-americano é também ativista e estava presente na noite em
que o Doutor King fez o histórico discurso Estive
no Alto da Montanha, o que o torna ainda mais íntimo do projeto. Seu texto
retrata de forma brilhante um personagem cuja trajetória simboliza toda a luta dos
afro-americanos por liberdade.
A narrativa começa com os
primeiros africanos trazidos como escravos para as Américas, no que se classifica
mais como o seqüestro de um povo do que como o êxodo negro descrito por muitos
autores, até chegar às primeiras ações que levaram à conquista de seus direitos
já na segunda metade do século XX. De maneira clara e fluida, o autor sintetiza
a luta pelos direitos civis desde o simbólico e corajoso ato solitário de Rosa
Parks em se recusar a ceder seu lugar no ônibus a um passageiro branco – o que
resultou em sua prisão, tendo em vista as leis segregacionistas vigentes no
período –, passando pelas manifestações pacíficas repreendidas com violência policial,
o histórico protesto das crianças e o recrudescimento dos confrontos, com o
surgimento dos movimentos mais radicais. No centro da arena, Martin Luther
King, guerreiro movido pela roda do destino, armado apenas com suas idéias e
seguro de seu conceito de ação direta pela não-violência.
Fascinado com os trabalhos do
artista bengalês, Arthur Flowers optou por conduzir o texto de forma a
respeitar as pinturas de Chitrakar, compondo versos baseados na tradição dos griots, que dialogam perfeitamente com
as ilustrações. Ao invés dos balões que marcam os quadrinhos tradicionais, a
narrativa segue livremente em comunhão com as imagens sem invadi-las, fazendo
uso apenas de caixas para dar destaque aos fatos mais marcantes, às vezes
lembrando o cordel brasileiro.
Tão antigas quanto o cinema, as
histórias em quadrinhos percorreram um longo caminho até fugir da definição
simplista de mero entretenimento de massa. Se hoje finalmente alcançaram o status de arte, as narrativas gráficas
de Will Eisner e o advento das Graphic
Novels, caso da obra em questão, merecem muito do crédito. Se o leitor
ainda tem dificuldade em aceitar tal fato, Vejo
a terra prometida oferece boa oportunidade para rever sua opinião. Em sua
beleza e originalidade, tanto narrativa quanto visual, a obra é exemplo do
potencial dos quadrinhos como autentica expressão artística e dona de um vasto
território ainda por ser explorado.
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