O Evangelho, segundo o
Estranho Misterioso Mark Twain
Por César Alves
Era com admiração e entusiasmo que Samuel
Langhorn Clemens assistia o surgimento das maravilhas científicas e
tecnológicas que, em meados do século dezenove, imprimiam às previsões sobre o
futuro da humanidade a marca da grandeza. Signatário do manifesto contra as
atrocidades praticadas pelo soberano da Áustria, Leopoldo, e o domínio de seu
país no território do Congo, durante o neocolonialismo europeu no continente
africano, Clemens não se dobrava diante das injustiças praticadas pela mesma
espécie, quando se mostrava indigna do destino grandioso que tais invenções
pareciam descortinar.
Amigo pessoal de Nikola Tesla, Clemens sonhava
com o potencial para o bem da humanidade que os experimentos com a eletricidade
realizados pelo colega e testemunhados por ele, mas não deixava de ver com
desconfiança o verdadeiro uso que seria feito das novas tecnologia, diante da
ganância humana, nas mãos erradas.
Era um humanista, mas um humanista descrente da
vocação do homem para a prática do humanismo e do bem comum. Autor de clássicos
incontestáveis da literatura universal como As
Aventuras de Tom Sawyer e Hunckleberry
Finn, Clemens ficou famoso como Mark Twain, mas é em seus escritos menos
conhecidos – a maioria, datada de seus últimos anos de vida e publicados de
forma póstuma – que tal característica é mais evidente.
Exemplo e também o predileto deste que vos escreve
é O Estranho Misterioso. Foi o livro
que despertou meu interesse pelo autor, quando costumava desprezar autores
indicados por pessoas mais velhas e desconfiar de livros que meus professores
gostavam, por volta dos dezessete anos, li pela primeira vez.
Aqui você não encontrará o satirista notório e
as tramas juvenis que fizeram a fama do autor. Ambientado em uma pacata aldeia
da Idade Média, a trama gira em torno de um garoto e uma estranha criança que
aparece de forma misteriosa e muda completamente a vida dos habitantes do
lugar. Capaz de prever o futuro e operar milagres, como é do feitio dos anjos,
seu nome é Satã e é em suas falas que se encontram alguns dos melhores momentos
da narrativa, como por exemplo: “(...) Deus
não existe, nenhum universo, nenhuma raça humana, não há vida terrena, nem céu,
nem inferno. É tudo um sonho, um sonho grotesco e tolo Nada existe, a não ser
você . E você é mais um pensamento, um pensamento vadio, um pensamento inútil,
um pensamento andarilho, vagando abandonado entre as eternidades vazias!”
Trata-se uma das histórias mais densas e
filosóficas de Twain e revela muito sobre o estado psicológico e emocional do
autor em seus últimos anos. Fora de catálogo, ainda deve ser possível encontrar
exemplares da tradução brasileira que conheço, da editora Axis Mundi, em alguns
sebos e livrarias de usados.
Como
testemunha ocular e protagonista da história do Gênese, o Anjo Caído também
aparece, como orientador dos ingênuos Adão e Eva, em alguns dos melhores
momentos dos textos que compõem este recente lançamento da editora Hedra, Diários de Adão e Eva.
Carregado de humor e menos denso do que o
primeiro título, Diários de Adão e Eva
é apresentado como relatos íntimos e pessoais do Primeiro Casal Bíblico, da
expulsão do Éden aos problemas com os filhos, Caím e Abel.
Apesar da carga polêmica que os personagens que
protagonizam a narrativa possuem, é preciso ler o livro como uma análise do
comportamento humano, principalmente o relacionamento amoroso e conjugal, e não
como uma obra religiosa.
Ambas as obras ainda muito atuais, oferecem-nos
uma faceta menos conhecida de Mark Twain.
Serviço:
Autor: Mark Twain
Título: Diários de
Adão e Eva
Editora: Hedra
140 páginas
Título: O Estranho
Misterioso
Editora: Axis Mundi
214 páginas
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