A Literatura Infecta
de Boris Vian
por César Alves
Em 1946 as livrarias francesas receberam um
lançamento que caia feito bomba em suas prateleiras já a partir de seu título. Vou cuspir no seu túmulo era assinado
pelo escritor norte-americano Vernon Sullivan cujos manuscritos, após serem
recusados por todas as editoras estadunidenses, finalmente eram publicados em
tradução para o francês do escritor, musico, agitador cultural e patafísico,
Boris Vian.
Narrado em primeira pessoa por Lee Anderson,
trata-se de uma história de vingança baseada em sexo, bebedeiras e extrema
violência, com estética narrativa próxima da melhor prosa policial noir de Hammet, Chandler, Cain e
Cheyney. Gênero que fazia muito sucesso na França do pós-guerra.
A obra de Sullivan, no entanto, extrapolava
a fórmula das tramas policiais tradicionais e unia à ficção um contundente protesto social e ousando falar de um tema tratado como verdadeiro vespeiro: o racismo e os crimes raciais.
O próprio Sullivan, conforme descrito na
introdução por Vian, apesar de branco, identificava-se com a luta dos negros e
mostrava-se disposto a expor as mazelas e hipocrisias da América “o novo Eldorado que é também a terra da
eleição dos puritanos, dos alcoólatras e do enfie-bem-isso-em-sua-cabeça”.
O protagonista da trama, Lee Anderson – de
cabelos louros e pele clara, mas com sangue negro correndo em suas veias –,
arquiteta e põe em prática um plano, baseado na sedução para vingar a morte de
um irmão enforcado por se engraçar com uma moça branca, em um dos conhecidos
casos de justiçamento, promovidos pelos tribunais da inquisição racial dos
grupos supremacistas norte-americanos, muito comuns e um dos combustíveis que
alimentariam as batalhas campais que antecederam as lutas pelos direitos civis,
na década de sessenta. O resultado é uma narrativa recheada de erotismo e violência,
dona de um cinismo delicioso, poucas vezes encontrado na literatura policial e
de mistério, mesmo nos dias de hoje.
Mas, além de suas qualidades estéticas, criatividade
ficcional brilhante e ousadia temática, Vou
Cuspir no Seu Túmulo trazia aos seus leitores uma charada que ia além de
sua trama. A obra em si configura-se como uma das mais interessantes,
imaginativas e bem arquitetadas pegadinhas
do universo da literatura.
Os críticos franceses foram os primeiros
suspeitar da falta de informações e todo o mistério envolvendo o autor de uma
obra tão bem construída. Não demoraram a descobrir que o romance, na verdade,
era uma bomba de dois tempos e a segunda explosão foi ainda maior, quando
revelado que Vernon Sullivan jamais existiu e que, tanto o autor que a assinava
quanto a própria obra eram uma farsa encabeçada pelo próprio Boris Vian, com ou
sem o conhecimento de seus editores.
Segundo algumas das várias versões envolvendo
sua origem, o romance teria surgido após o autor tentar publicar seus manuscritos
e receber negativas de seu editor baseadas na crise por que passava o mercado
editorial europeu no período. Durante a conversa, o editor teria dito que,
antes de lançar um novo livro de Vian, precisava de um desses autores policiais
americanos que vendiam rapidamente grandes tiragens para fazer caixa e levantar
o negócio.
Por coincidência, Vian teria dito que estava
justamente trabalhando no livro de um autor americano, amigo seu, muito bom e também
recluso, mas que talvez possuísse as características citadas pelo editor. Sendo
assim, o autor prontificou-se a trazer a tradução de um bom policial
folhetinesco inédito, escrito por seu amigo em dez dias. Quinze dias depois, teria voltado com a obra
pronta: Vou Cuspir no Seu Túmulo, de
Vernon Sullivan, que foi lançado tão rápido quanto ganhou atenção de crítica e
público.
Se outras pessoas sabiam da farça, ninguém tem
certeza. Vian assumiu a responsabilidade por trás do embuste. O que se sabe é
que o autor não pretendia esconder o mistério e lucrar com a popularidade de
seu autor inventado. Contava com a inteligência de seus leitores para decifrar
a charada e prova disso é que deixou suas pistas. O próprio nome de Vernon
Sullivan, por exemplo, seria uma brincadeira do francês com os nomes de seu
dentista Paul Vernon e do pianista de jazz Joe Sullivan.
A brincadeira, no entanto, não foi recebida com
o mesmo bom humor de Boris Vian que acabou descobrindo que era o único que ria
de sua piada. Além das acusações ao autor e seus editores como farsantes e à
obra como embuste, logo o publico mais conservador começou a protestar contra o
conteúdo sexual do livro. Durante vários anos, Vou Cuspir no seu túmulo acabou sendo banido das livrarias, que só
colaborou para torná-lo ainda mais popular e cultuado, circulando
clandestinamente entre curiosos, agora como “maldito”. Boris Vian foi multado
por ultraje aos bons costumes e condenado a 15 dias de prisão por indecência.
Engenheiro, escritor, poeta, compositor – era
trompetista –, entre outras coisas, o artista multifacetado fazia parte da cena
boêmia que se reunia no Saint-Germain-des-Prés, em discussões com Camus, Sartre
e Simone de Beauvoir. Seu livro A espuma
dos dias às vezes é citado como um dos mais importantes entre os romances
existencialistas, mas sua obra vai além.
Verdadeiro White
nigger, era amigo de muitos dos músicos de jazz norte-americanos que se
mudaram para Paris depois da Segunda Guerra Mundial. Como funcionário da
gravadora Phillips, ajudou a lançar na França a carreira de dois amigos Charlie
Parker e Miles Davis. Muitos o consideram um precursor dos beatniks e, no mínimo,
pode-se dizer que teve influência sobre a contracultura – sua composição anti
militar, “Le Desérteur”, ficou popular na interpretação de Joan Baez. Vian, no
entanto, já havia cunhado um termo para denominar sua obra: “Literatura
infecta”.
Boris Vian morreu em 1953, aos 39 anos –
confirmando uma previsão que teria feito a sua amiga, Simone de Beauvoir em uma
de suas várias conversas nos cafés de Paris: “viverei mais do que os 35 anos,
mas nunca chegarei ao 40”, teria dito. Na ocasião do óbito, o autor estava numa
sala de cinema, assistindo a uma sessão exclusiva da adaptação cinematográfica
de Vou cuspir no seu túmulo. O autor
era contra a realização do filme que não chegou a ver. Teria sofrido uma parada
cardíaca durante os dez primeiros minutos do filme.
Fascinante!
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