A Sagrada Família do Fim da Tradição
e da Propriedade
por César Alves
O Século Dezoito tem como principal marca o
fortalecimento das idéias iluministas e seus efeitos políticos, sociais e
culturais. Lembrar as revoluções e o declínio das monarquias e a aurora das
grandes democracias que seguiram as trilhas dos novos pensamentos filosóficos
da época é chover no molhado. Além do mais, não é bem o tema do texto aqui. É
que, falando com um amigo sobre o conceito de família dentro dos ideais
libertários e que a palavra “família” nem sempre combina com “tradição” e “propriedade”,
como muita gente gostaria, lembrei-me de uma família constituída em meio a
emergência daquele século, cujos principais membros colaboraram com a
construção de muitas das idéias propagadas e ainda hoje debatidas e puseram em
prática algumas de suas teorias. A família do jornalista, filósofo e novelista,
William Goldwin.
Tido como um dos primeiros intelectuais do
pensamento utilitarista de John Stuart Mills, Goldwin, no entanto, merece lugar
mesmo é entre os mais importantes pensadores anarquistas. Ainda hoje
importantes, seus livros Inquérito Acerca
da Justiça Política, As Coisas Como Elas
São ou As Aventuras de Caleb Williams; o primeiro um ataque corajoso contra
as instituições políticas da época; o segundo é considerado o primeiro romance
de mistério e, além de inaugurar o gênero ainda hoje popular, faz uso da fina
ironia para ridicularizar e criticar os privilégios da aristocracia.
Os livros causaram grande rebuliço nos meios
acadêmicos, quando lançados – ambos escritos no intervalo de um ano e
publicados praticamente juntos –, e se tornaram verdadeiros sucessos editoriais
para aqueles dias, alçando o nome de seu autor ao de celebridade intelectual do
momento, que acabou conquistando a admiração e o respeito da elite culta
britânica, principalmente dos mais radicais entre eles.
Se Goldwin estava na vanguarda do pensamento
libertário da época, não é de estranhar seu interesse por uma mulher, tão
inteligente e disposta a repensar a sociedade e as relações humanas quanto ele,
embora não tão bem vista nos meios que o glorificavam com os louros do
reconhecimento, senhorita Mary Wollstonecraft.
Apesar de os dias serem de discursos
entusiasmados em favor da igualdade, liberdade e fraternidade entre os homens,
Mary Wollstonecraft era figura não grata nos meios intelectuais da época
justamente por defender tais ideais, mas de forma ainda mais radical. Como se
não bastasse ser mulher e escritora, numa época em que poucas pessoas do sexo
feminino chegavam além da educação básica, a moça pregava aos quatro ventos que
os Direitos dos Homens não deveriam ser restringidos aos proprietários de um
órgão genital fálico, mas estendidos também às mulheres, o que, para muitos,
representava um absurdo. Ela criticava instituições intocáveis como o casamento
e pregava a emancipação feminina, muito antes de alguém sequer pensar na
palavra Feminismo.
Comprovando que aqueles que amam o fogo, quando
encontram um incêndio querem mesmo é se queimar, Goldwin ficou de joelhos pela
rapariga que, na época, era mãe solteira de uma menina – fruto de um breve
romance com o diplomata americano Gilbert Imlay – e com ela iniciou um
relacionamento, amoroso e intelectual. Contrariando a opinião de ambos sobre o
casamento, firmaram matrimônio, pouco depois.
Embora feliz e produtivo – colaboravam entre si
em seus projetos intelectuais e literários –, o casamento não durou muito e
teve um triste fim quando Mary faleceu, aos trinta e oito anos de idade, quando
dava à luz à única filha do casal, Mary.
Criada sob a influencia dos pensamentos dos
pais e rodeada por livros, Mary é hoje o mais conhecido membro da família de
notórios.
Seu livro de horror gótico, influenciado pelas
revoluções científicas e as questões éticas que as mesmas levantavam, O Moderno Prometeu, foi sucesso de
vendas, crítica e hoje se inscreve entre os cânones da ficção universal. A
tragédia do Doutor Victor Frankenstein e sua criação, o monstro feito de partes
de cadáveres e atormentado pela solidão, o questionamento filosófico sobre a
alma e o anseio por respeito e aceitação, acabaram por ir além da literatura,
tornando-se alguns dos mais duradouros e cultuados ícones da cultura popular
universal. No texto, é possível identificar referências à vida da própria
autora, como parágrafos inteiros sobre a solidão tiradas da nota de suicídio de
sua meia Irma, Fanny Imlay, e o tormento que lhe causava pensar que a mãe, que
admirava, mas só conhecia por relatos do pai e por seus escritos, perdera a
vida ao trazê-la ao mundo.
Mas Mary Shelley está além de sua obra clássica
e também merece ser lembrada por sua trajetória ousada e, assim como sua mãe, dona
de um comportamento além de seu tempo. Aos dezessete anos de idade, Mary fugiu
com seu amante, o poeta Percy B. Shelley, para dar início a um relacionamento
baseado nos conceitos defendidos por seus pais, como o Amor Livre. A relação
apaixonada dos dois, que durou até a morte de Shelley, incluía convidados de
alcova como o poeta e superstar Lord
Byron e suas muitas amantes.
A tríade Mary-Percy-Byron e sua comunhão
poliamorosa, artística e etílica, é praticamente pioneira no que, décadas
depois, seria a Contracultura. Beatniks
avant La lettre. Hippies com cérebro. Hipsters
que não se contentavam com colecionar livros, mas que os liam e também
escreviam os seus (provocação desnecessária, eu sei – mas a necessidade nunca
foi motor da minha provocação, ehehe).
Curiosidade (Epílogo): Provando que o pensador nem sempre
é o pensamento, o filosofo William Goldwin, que pregava contra o casamento
tradicional, “instituição decadente”, e defendia o amor livre, parou de falar
com Mary, depois de ela fugir para viver com seu pupilo, Shelley, devido ao
poeta ser casado na época e não querer que a filha vivesse um relacionamento
clandestino. Só perdoou os jovens e voltou a falar com ela, anos depois, quando
o casal oficializou o casamento, após o suicídio e a viuvez do poeta tornar
possível o casamento.
*_*
Ada Byron a.k.a. Lady Lovelace
Por César Alves
Aliás, já que falei do casal Mary e Percy
Shelley, Byron e toda essa gente visionária hoje cedo, vai bem encerrar com a
filha do poeta Lord Byron, Ada Byron, mais conhecida como Lady Lovelace, que,
de tão a frente de seu tempo, quase antecipou a revolução dos computadores em
mais de um século. De olhos voltados para o futuro, ainda adolescente, a dama
ouviu sobre a Máquina Diferencial do matemático Charles Babbage e, quando
adulta, juntou forças com ele para financiar a construção da máquina em meados
de 1840. A elite da época, no entanto, não enxergou o potencial do projeto de
Babbage e o entusiasmo da moça, recusando financiá-lo. Ada brigou pelo projeto
até o fim de seus dias e a Máquina Diferencial de Charles Babbage só foi
construída no final dos anos 1930, como protótipo de um projeto de outro
matemático, Alan Turing para a construção de uma máquina mais sofisticada que
poderia decodificar as mensagens criptografadas dos países do Eixo, durante a
segunda guerra. Foi a inspiração para o supercomputador Colossus e para que
Turing desse início à ciência da computação.
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