Os Infantes Terríveis de Otto Lara Resende
Contundentes e ainda provocadores, os contos de Boca
do Inferno estão de volta às livrarias, em nova edição.
por César Alves
“Em São João Del
Rei, onde nasci e me criei, cemitério se debruça na rua, está junto das
igrejas. Os mortos ficam espiando os vivos, com o olho irônico do Undiscovered Country”, disse, certa vez,
Otto Lara Resende a um entrevistador. Embora pulsando vida e contemporaneidade,
talvez seja este olhar, carregado de ironia e provocação inteligente, que dá o tom nos
sete contos – todos protagonizados por crianças e pré-adolescentes – que compõem Boca do Inferno, obra seminal do autor mineiro, que acaba de ganhar nova edição, através da editora Companhia das
Letras.
Lançado
originalmente em 1957, Boca do Inferno
teve efeito explosivo no imaginário intelectual brasileiro de sua época. Alvo
de debates acalorados no meio literário, o livro foi praticamente boicotado pelas editorias de cultura e literatura da época, que, arbitrariamente, decidiram ignorar ou divulgá-lo em algumas curtas e poucas críticas – negativas, em sua
esmagadora maioria. O impacto do lançamento e a maneira inesperada como foi recebido chegou a atingir emocionalmente o já respeitado escritor e jornalista, ao ponto de ele mesmo condená-lo ao limbo, recusando-se
veementemente a reeditar a obra até sua morte, em 1992.
Com a
autorização da família, o livro só voltou às livrarias em 1998, desta vez,
ganhando o merecido reconhecimento que lhe foi negado em sua primeira vinda.
Ainda assim, embora celebrado por sua ousadia e por manter-se contemporâneo tantas
décadas depois, os elogios vinham com certo constrangimento diante das tramas
assustadoras e das ações dos personagens imaginados por Otto Lara Resende.
O que justificaria
tal assombro? Seriam as historias de Boca
do Inferno, ainda capazes de impressionar os leitores de hoje?
A leitura desta
nova edição pode oferecer as respostas e, certamente, esclarecer o que causou
tanta discussão, quando o livro veio à luz pela primeira vez, e o que ainda mantém
a obra contundente.
Segundo livro na
carreira do autor mineiro, Boca do
Inferno vinha na sequência de O Lado
Humano (1952). Embora recebido de forma modesta, os contos de seu livro de
estréia deram ao autor lugar de destaque entre os novos escritores da época. Já
reconhecido por seu brilhantismo como jornalista, cronista e excelente frasista
– um dos melhores que este país produziu, diga-se de passagem –, em Boca do Inferno, Otto Lara Resende
transferia o ambiente urbano das tramas de seu primeiro livro para as cidades do
interior e substituía seus protagonistas adultos por crianças.
É justamente na
idade de seus personagens e suas ações que se encontra o estopim do choque
causado pela obra na sociedade conservadora do período. Para o moralismo
vigente no Brasil dos anos cinqüenta eram inconcebíveis os atos dos
envenenadores, psicopatas homicidas, tarados incestuosos e suicidas mirins de
Resende. Para seus detratores, a obra representava uma ofensa explicita a tudo
o que definia a moral e os bons costumes.
Tendo em vista o
conservadorismo vigente nas classes dominantes da época – e talvez ainda hoje,
quando novas Marchas da Família são
planejadas para pedir a volta da ordem sob tutela de uma ditadura militar –, em
sua ousadia, o autor sabia estar se arriscando e que pisava em terreno minado.
Não é preciso avançar muito na leitura para sacar seus principais alvos: a
Igreja (principalmente, no conto que abre e dá título ao livro), a hipocrisia
moral da sociedade e a família.
A maioria dos
críticos insistia na mesma tecla: a de que os personagens eram inverossímeis e
que suas atitudes eram inconcebíveis para crianças. Os Infantes Terríveis de
Lara Resende, no entanto, nem de longe, são inverossímeis, assim como não o são
suas monstruosidades. Mas não é preciso uma leitura muito atenta para perceber
que, para Otto Lara Resende, nos atos dos adultos é que estão engendrados os
monstros da infância. Assim é hoje, como também o era naquela época. Como diz
uma velha canção dos anos oitenta, a
Barbárie começa em casa.
Isto fica claro
nos castigos infligidos pelo padre contra seu afilhado, Trindade, em Boca do Inferno; na mãe e na avó que
reprimem e duvidam de Silvia, quando a menina revela o assédio e abuso
sofridos, inclusive por um parente, em O
Segredo; e na crueldade do tio para com o sobrinho órfão, Chico, em O Moinho.
Principal objeto
de repúdio dos críticos, o conto Três
Pares de Patins, começa numa tarde de diversão no adro da igreja,
transformado em pista improvisada, e culmina com a invasão do cemitério onde,
sobre uma sepultura, irmão faz sexo com a própria irmã e depois a oferece ao
amigo.
Aliás, a
maestria com que Otto Lara Resende conduz suas narrativas, muitas vezes,
passando da delicadeza de uma tarde ensolarada numa cidadezinha interiorana
para o mais sombrio ato de violência, é um de seus principais atrativos. Um dos
melhores e mais surpreendentes contos de Boca do Inferno é exemplo disso.
Em O Porão, a história do pequeno
torturador de animais – com direito a menção ao clássico de Edgar Allan Poe, O Gato Preto – nos é apresentada durante
uma manhã primaveril, culmina num assustador ato de violência e fecha com a
cena familiar da mãe que serve o chá da tarde ao filho.
Conforme sugere
Augusto Massi, no ótimo posfácio escrito exclusivamente para esta edição, em
Otto Lara Resende, o sol de uma bela manhã interiorana se esbarra com o reflexo
solar que se faz cúmplice do assassinato praticado pelo personagem de Albert Camus,
durante a situação limite de O
Estrangeiro.
Ainda impactante
e surpreendente, mesmo para nossos dias, Boca
do Inferno merece figurar entre as mais importantes obras de nossa
narrativa curta. Quase seis décadas depois de sua primeira edição, o livro
ainda transpira frescor, provocação e choque e sua volta às nossas livrarias é
mais do que bem vinda.
Serviço: Livro:
Boca do Inferno – autor: Otto Lara Resende – editora: Companhia das Letras –
188 páginas.
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