Paulo Mendes Campos e a vida quando não vale um cronista
por César Alves
Em 1962, sob o acompanhamento de um
médico, Paulo Mendes Campos experimentou ser invadido pelo “jorro caótico” advindo
das comportas abertas pelo LSD. A experiência teria feito o
cronista sentir “o peso e a nitidez das palavras”, produzindo um “milagre da
voz”. Relatado em artigos da época publicados na revista Manchete – depois
reproduzidos nos livros O Colunista do
Morro e Trinca de Copas –, o
experimento foi para ele como encarnar São Francisco de Assis falando com o
Lobo, “na falta de uma comparação que preste”. E concluía: “O lobo também sabe
que amor com amor se paga”.
Não se engane o leitor
desavisado, pensando tratar-se de um expoente da contracultura brasileira.
Paulo Mendes Campos é um dos principais nomes de nossa crônica. Para muitos, tão
importante quanto Rubem Braga. Viveu e, em sua escrita, fez viver seu tempo como
poucos. Incluindo-se ai as promessas de descoberta interior e autoconhecimento
dos paraísos artificiais. Embora apenas uma pequena passagem dentro de uma
biografia admirável, o episódio lisérgico, no entanto, talvez sirva para
definir a obra atual, multifacetada e não menos admirável, dela advinda.
Correndo o risco pretensioso de profanar as palavras do próprio autor, sua
crônica é como um jorro caótico em intensidade, diversidade de temas, lirismo e
criatividade; nitidez da palavra que se faz texto simples, sem ser banal, e culto
– quase erudito –, sem ser boçal; é o milagre da voz da inteligência,
sagacidade, humor e sensibilidade. Como o lobo, Paulo Mendes Campos não só sabia
que amor com amor se paga, como também sabia de mais algumas (muitas) outras
coisas.
Estivesse vivo para ler este
artigo, talvez Paulo Mendes desse um gole de seu uísque e, com um sorriso
maldoso, dissesse que, assim como a tentativa dele descrever a viagem
psicodélica, tal comparação também “não preste”. Cabe-nos, então, recolhermo-nos
em nossa insignificância e concluir que ao leitor bom mesmo é ir provar direto
de seu barato. Sendo assim, mais que uma grata surpresa é saber que sua obra aos
poucos volta às nossas livrarias em novas edições publicadas pela Companhia das
Letras.
Já estão disponíveis os dois
primeiros títulos, O Amor Acaba e O Mais Estranho dos Países, que revelam
uma crônica rica na diversidade de temas e ainda extremamente atual, apesar de
algumas delas terem sido escritas há mais de meio século. Outra característica
marcante é o lirismo poético e filosófico de sua escrita, que, mais que um
passeio pelo cotidiano, é um passeio pela alma humana. “As crônicas são
servidas por uma erudição fluida que confere a elas a transcendência que é
própria dos bons ensaios. Não é só um bom e bem humorado comentarista do
cotidiano. Ele enfrenta dúvidas existenciais e filosóficas com doses certas de
ceticismo. Sua prosa é decantada em invenção poética e é isso que dá a seu
estilo uma marcante peculiaridade”, diz o jornalista Flávio Pinheiro,
organizador do projeto.
Segundo Pinheiro, a série pretende
resgatar não só sua escrita em prosa, como a poética, faceta pouco conhecida do
autor. “Paulo tem claros compromissos com a poesia. Escreveu poesia de primeira
qualidade. Leu todos os grandes poetas. Foi esplêndido tradutor de poesia. Eu
diria que a poesia o tempo todo fecunda sua prosa. E há mesmo certas crônicas
que são pura prosa poética, no melhor sentido do termo, como "O amor
acaba". Mas se a prosa está muito contaminada pela poesia, sua poesia tem
uma dicção particular”.
Também diretor geral do Instituto
Moreira Salles, o jornalista está diretamente ligado ao projeto de catalogação
do acervo de Paulo Mendes Campos que o instituto detém desde 2011. “O trabalho de
catalogação ainda está em fase inicial. Um item do acervo que nos chama atenção
são os diversos cadernos escritos a mão por Paulo Mendes Campos com anotações
variadas que prefiguram temas de crônicas e outras observações”. Ano passado, o
IMS publicou a bela Carta a Otto – Um
Coração de Agosto, missiva escrita por Mendes Campos ao amigo Otto Lara
Resende o que abre expectativas sobre futuros lançamentos envolvendo s
registros pessoais do cronista, embora ainda não haja projetos em andamento
neste sentido.
Um dos lendários “vintanistas” de
Mario de Andrade ou os “quatro cavaleiros de um íntimo Apocalipse”, como
definiu Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos nasceu em Belo Horizonte no ano
de 1922. O grupo de jovens autores mineiros que, além dele e Lara Resende,
também contava com Fernando Sabino e Helio Pellegrino, migrou para o Rio de
Janeiro, onde ajudaria a renovar as letras e o jornalismo brasileiro na segunda
metade do século vinte. Entre nossos cronistas, é comum dizerem que Paulo
Mendes Campos foi injustiçado em sua época. “Não há dúvida que a obra de Paulo
Mendes Campos mereceria ser mais conhecida porque se trata de um escritor ótimo
e singular. Este clamoroso esquecimento está sendo sanado pelas reedições da
obra. Mas soa estranho que ele tenha uma fortuna crítica tão escassa, mesmo
quando comparada a de outros cronistas”, observa Flávio Pinheiro.
Devolver a um
dos maiores nomes de nossa crônica seu lugar de direito e oferecer às novas gerações a oportunidade
de ter contato com a obra de Paulo Mendes Campos, desde já, faz do projeto uma
das melhores novidades literárias do ano.
Serviço: O Amor Acaba (288 páginas) e O Mais Estranho dos Países (352
páginas), de Paulo Mendes Campos. Editora: Cia. Das Letras.
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