A Redenção da Boemia
Um dos melhores escritores europeus do período
entre guerras, Joseph Roth, volta à nossas livrarias com as traduções de A
Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy.
Por César Alves
Você está numa biblioteca ou livraria e, como
que por mágica, um estranho aparece e se identifica como sendo a Morte, avisando-lhe
de que seu tempo está prestes a chegar ao fim. Mas, como é do comportamento do
Ceifador – a Morte odeia se atrasar e por conta disso, sai cedo de casa para
cumprir com seus afazeres –, ele se adiantou demais e informa que você ainda
tem entre vinte minutos e meia hora de vantagem, antes de seguirem viagem.
Sabendo que é muito pouco tempo para qualquer outra coisa, ele sugere que
escolha um livro e faça sua última leitura, já que gosta de ler.
A pegadinha é: Que obra você escolheria?
A brincadeira era feita entre amigos que
gostavam de literatura, normalmente ao redor de uma mesa de bar e com muita
cerveja. Depois de ouvir da maioria que escolheriam seus poemas prediletos de As Flores do Mal de Baudelaire, Uma Temporada no Inferno de Rimbaud,
algo do Bandeira ou um conto de Tolstói e etc, eu dizia que convidaria a
Indesejada para ir comigo até um bar para tomarmos a saideira definitiva e,
dando uma de Compadre da Morte, como no mito folclórico, tentaria ludibriá-la,
embriagando-a e convencendo a danada a cair na farra em direção ao Baixo
Augusta. Não funcionando, escolheria como livro derradeiro o belo A Lenda do Santo Beberrão de Joseph
Roth.
A protocrônica cotidiana acima é só para falar
do grato lançamento – não tão recente, aliás – da Editora Estação Liberdade. Há
alguns meses, a editora lançou por aqui traduções de dois títulos de Joseph Roth;
A Lenda do Santo Beberrão – principal
tema de nosso papo aqui – e Hotel Savoy.
Considerada
“Obra-testamento”, A Lenda do Santo
Beberrão foi o último livro escrito por Joseph Roth, também autor de A Teia da Aranha (1923) e A Marcha de Radetzky (1932) e um dos
grandes autores universais pouco lidos no Brasil.
A escolha da pedida literária para meus últimos
vinte minutos sobre a terra não é apenas por ser uma das minhas preferidas, é
que também é possível ler o livro, do início ao fim e sem pressa, em pouco mais
de um terço de hora. Trata-se de uma belíssima e curta novela de 22 páginas,
capaz de tocar até mesmo aqueles que trazem um bloco de mármore ao invés de um
coração batendo no peito.
Escrita como um misto de fábula e parábola
cristã – mas nada carola é bom frisar –, A
Lenda do Santo Beberrão começa como uma crônica cotidiana ambientada na Paris
das primeiras décadas do século vinte, quando toda a Europa vivia envolta em
névoas de incerteza, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.
Seu protagonista é um mendigo e alcoólatra que
vaga pelas ruas e cantos menos iluminados da Cidade Luz, como os muitos que
assim o faziam na época. Certa noite, quando se abrigava sob uma ponte do Rio
Sena, aproxima-se um senhor muito bem vestido que puxa assunto e lhe oferece
uma grande soma em dinheiro (200 Francos). Segundo o estranho benfeitor, o sem
teto teria sido posto em seu caminho por designação divina, tendo em vista que
ele, sendo um homem de fé, estava a cata de uma ação benevolente a um
desconhecido como que para pagar uma promessa em agradecimento à bondade de
Deus que nunca lhe faltara.
Apesar de suas condições, o miserável recusa a
oferta, não por orgulho, mas por nutrir um profundo senso de retidão e
idoneidade. Jamais aceitaria uma soma monetária por caridade, a ser que pudesse
compensá-la com seu trabalho ou ter como devolvê-la, como um empréstimo, assim
que se encontrasse em melhor situação.
Sendo ambos devotos de Santa Terezinha de
Lisieux, o impasse é resolvido com o mendigo se comprometendo a devolver o
valor que lhe é entregue à caixa de donativos da igreja da santa, no prazo de
uma semana.
Com mais dinheiro do que jamais possuíra, o
pobre coitado aproveita para alugar um quarto num albergue, tomar um banho e
dormir numa cama, como não fazia há anos. Boêmio e incapaz de resistir ao
chamado da boemia, ele torra todo o dinheiro com bebidas e mulheres.
A partir daí, a trama gira em torno do
protagonista, personagens que ele encontra e as situações inusitadas por que
passa durante sua obstinada busca para cumprir com sua promessa. Ele consegue o
dinheiro, às vezes quase que por milagre, mas de uma vez. Mas, sempre que está
prestes a pagar a dívida para com a santa, algo acontece.
Além de ser sua obra derradeira, o motivo de A
Lenda do Santo Beberrão ser considerada a “obra testamento” de Joseph Roth
também diz respeito ao conteúdo autobiográfico da novela. O protagonista da trama,
nada mais é que um alter ego do autor,
tendo com seu criador diversos pontos em comum. Assim como o mendigo, Roth
também mantinha uma vida de andarilho. Embora sua trajetória e carreira tenham
obtido reconhecimento na época, entre a Alemanha e a França, o autor nunca
adotou um endereço fixo ou duradouro, viajando e passando por diversos países
europeus até seus derradeiros dias. Além de religioso, como seu personagem,
Roth também era alcoólatra, entre outras coisas em comum.
Adaptado para o cinema pelo diretor italiano
Ermano Olmi, A Lenda do Santo Beberrão
ganhou o Leão de Ouro de Veneza de 1988. O filme merece ser visto. Além de ser
uma feliz adaptação, também e traz a boa interpretação do holandês Hutger Hauer
como o mendigo.
Filho de uma família judaica de Brody, hoje
parte da Ucrânia, Joseph Roth nasceu em 1894, nos dias finais do Império
Austro-Húngaro. Além de brilhante jornalista, sua obra ficcional foi marcada
por personagens à margem de uma Europa angustiada pelo pesadelo diário que
marcaram os dias do período entre guerras, que o autor conseguiu retratar como
poucos.
Deprimido com os acontecimentos que assolavam o
continente europeu, precedendo a inevitável guerra, principalmente a ascensão
do nazismo na Alemanha, e cada vez mais mergulhado no alcoolismo, Joseph Roth
faleceu em Paris, em 27 de Maio de 1939.
Joseph Roth nas
livrarias:
Como dito acima, apesar de sua importância e
qualidades indiscutíveis, Joseph Roth parece pouco lido ou, no mínimo, menos
comentado e difundido do que sua obra merece. Mas existem bons títulos do autor
em nossas livrarias e, além dos dois títulos lançados pela Estação Liberdade – A Lenda do Santo Beberrão e Hotel Savoy –, sugiro outros dois ótimos
livros da Companhia das Letras abaixo:
Berlim – Ótimo título da não menos ótima coleção
Jornalismo Literário da editora, o
livro compila artigos que revelam o brilhantismo do trabalho de Joseph Roth
como homem de imprensa. Aqui, o autor faz uma crônica da Berlim da década de 1920.
Em suas andanças, o autor destrincha o cotidiano da antiga capital prussiana,
quando coração da recém-inaugurada República
de Weimar. Passeia por bosques e praças e edifícios e bondes, refletindo
sobre o significado da natureza, diante da paisagem artificial da modernidade.
Caminha entre bairros de imigrantes, decifra a vida noturna berlinense e visita
campos de refugiados e faz um tour pela cidade ao lado de um criminoso que
acaba de sair da prisão para, através da ótica de seu companheiro, compreender
a medida das transformações ocorridas na metrópole.
Jó – Aqui, reencontramos o grande
escritor de ficção e fascinante tradutor de seus dias. Usando como pano de
fundo os dias que marcaram o início da primeira guerra, Joseph Roth narra a
trajetória do judeu e muito religioso, Mendel Singer, para criar uma releitura
do livro de Jó. Homem modesto e temente a Deus, Singer vive com sua família
numa cidadezinha russa. Apesar de humildes, são felizes e gratos pela vida que
levam. A tranqüilidade e os bons dias que Singer atribui à benevolência da
Providência Divina acabam com o estouro do conflito e, assim como o personagem
bíblico, o personagem descobre-se face a um teste para comprovar sua fé.
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